É um absurdo jornalista ter que se camuflar, diz leitora sobre cobertura de governo Bolsonaro

Grupo de leitores participou de conversa com o editor de Política, Eduardo Scolese

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Americana (SP)

As peculiaridades da cobertura jornalística do governo Jair Bolsonaro (PL) e das eleições de 2022 foram tema de uma conversa de um grupo de leitores da Folha com o editor de Política, Eduardo Scolese.

Na Folha desde 1998, Scolese cobriu os dois mandatos do ex-presidente Lula em Brasília, como repórter, e tornou-se editor justamente quando começava o governo Bolsonaro, em 2019.

Para ele, as eleições presidenciais deste ano são atípicas por dois motivos: nunca na história brasileira houve uma disputa entre um ex-presidente e um presidente, e as relações entre a imprensa e o governo jamais atingiram tamanho nível de tensão.

Reprodução de tela de videoconferência mostra homem branco em plano médio; ele tem olhos claros, cabelos pretos com uma mecha branca e usa óculos de aros prateados; ele olha para baixo na direção da direita e veste camisa azul
Eduardo Scolese, editor de Política, participa de papo com leitores da Folha - Reprodução

"Eu era o repórter que cobria o governo Lula de perto, em Brasília. Vivia mais no Palácio do Planalto do que em casa. E era uma relação complicada, de tensão o tempo inteiro, inclusive com situações de tensionamento entre seguranças e os jornalistas", explicou Scolese. "Sempre tivemos uma relação dura com os governos pelo fato de a Folha fazer um jornalismo crítico na essência, mas nada que se compara com essa gestão."

"É uma eleição gigantesca em termos de peso; são dois líderes muito populares, numa eleição muito polarizada, em que os demais candidatos simplesmente desaparecem nas pesquisas. É uma cobertura em que a gente tem que usar o projeto editorial da Folha sempre debaixo do braço, mas sabendo diferenciar que tem um candidato que ameaça a democracia, que é Bolsonaro, e demais candidatos que não fazem isso, mas que também devem ser tratados de maneira crítica."

Gostaria de cumprimentar a Folha por essa iniciativa de colocar o leitor frente a frente com vocês que estão trabalhando na Redação, é uma iniciativa muito valorosa e bacana

Marcelo Guibu

leitor

Scolese lembrou que os ataques de Bolsonaro começaram antes mesmo de ele assumir, quando chegou a dizer que a Folha ia acabar. "É um governo que passa informações de modo totalmente diferente, a relação com a imprensa é frágil, é um presidente que mente muito e é muito agressivo nas declarações. Fomos aprendendo a lidar com isso, então chegamos à eleição com uma casca, uma vivência."

A servidora pública Lília Sendin, do Rio de Janeiro, questionou com que critérios a Folha determina o destaque a ser dado a declarações de Bolsonaro que ela qualificou como "fora da casinha" ou "aberrações". "Como isso é ponderado? Às vezes a gente vê uma manchete e se questiona por que aquilo está na manchete", disse.

"Não é uma ciência exata", respondeu Scolese. "Nem tudo o que Bolsonaro fala a gente dá destaque ou noticia. Mas quando ele fala uma aberração é do nosso entendimento que, por ser aberração, a gente tem que noticiar. A gente não pode esconder ou banalizar as ameaças. Às vezes a gente precisa é gritar: o presidente deu uma declaração de tom golpista, ele está ameaçando o STF [Supremo Tribunal Federal], questionando as urnas, confrontando os outros poderes."

Nesse contexto, os jornalistas também precisam ser muito críticos aos demais poderes, disse Scolese –ao STF, que às vezes se aproveita do confronto com o presidente para dar passos controversos, e ao Congresso, que é omisso e se aproveita da fragilidade do governo para abocanhar o Orçamento.

Nem tudo o que Bolsonaro fala a gente dá destaque ou noticia. Mas quando ele fala uma aberração é do nosso entendimento que, por ser aberração, a gente tem que noticiar. A gente não pode esconder ou banalizar as ameaças. Às vezes a gente precisa é gritar: o presidente deu uma declaração de tom golpista

Eduardo Scolese

editor de Política

O leitor João Jaime Almeida Filho, de São Paulo (SP), afirmou ter notado uma inflexão no tom da cobertura eleitoral da Folha nas últimas semanas, no sentido de amenizar as críticas à chapa Lula-Alckmin e de adotar uma linguagem mais incisiva contra o governo Bolsonaro.

Ainda assim, criticou o que chama de "antipetismo", que ele vê refletido nas manchetes e nas escolhas das pautas do jornal.

"Num momento como este, tão crucial, o antipetismo foi combustível para eleger Bolsonaro e é combustível para o golpismo de Bolsonaro. Eu acho que a Folha precisa modular, cuidar de não alimentar, de não regar a planta do antipetismo, porque ela é, sim, um perigo à democracia. É preciso respeitar que o petismo, como força política como expressão, tem legitimidade para existir, e às vezes ele é tratado com ironia e desdém", opinou.

Ele citou como exemplo o destaque a seu ver exagerado dado à declaração feita por Lula de que o PSDB acabou.

Os leitores da Folha Enaide Hilse, Leonilda Simões, Odete dos Santos, Lília Sendin, João Jaime Almeida Filho e Marcelo Ghibu participam de papo com editor de Política, Eduardo Scolese - Reprodução/Arquivo pessoal

O antipetismo foi combustível para eleger Bolsonaro e é combustível para o golpismo de Bolsonaro. Eu acho que a Folha precisa cuidar de não regar a planta do antipetismo, porque ela é sim um perigo à democracia. É preciso respeitar que o petismo, como força política como expressão, tem legitimidade para existir, e às vezes ele é tratado com ironia e desdém

João Jaime Almeida Filho

leitor de São Paulo (SP)

"Estamos vivendo uma eleição diferente, em que cada passo em que ser muito medido, muito checado e muito pensado. Isso cabe não só à Folha, mas aos candidatos também", ponderou o leitor Marcelo Guibu. "Hoje há uma máquina de fake news, de uso de redes sociais. Também cabe aos partidos que fazem oposição tomar cuidado com suas falas, discutir muito sobre o que vão expor, para que isso não seja pinçado e provoque um incêndio."

A leitora Leonilda Simões, de Florianópolis (SC), concordou. "Os americanos tiveram o 6 de janeiro [invasão do Capitólio por apoiadores do ex-presidente Donald Trump, em 2021]. Nós corremos sério risco, depois das eleições, de ter algo parecido. Os políticos têm que pensar muito no que falam. A pessoa que está liderando contra um governo desse nível tão baixo tem que se convencer de que não pode errar, tem que falar a coisa certa", afirmou.

"Existe esse risco de os ânimos se alterarem de tal forma que as pessoas que têm autorização, por assim dizer, do presidente para se armar, possam perder a razão", opinou ela.

Guibu quis saber que cuidados a Folha tem tomado não apenas do ponto de vista jornalístico, mas da própria segurança dos jornalistas, diante do quadro de tensão eleitoral. "Será que vai precisar sair de capacete e colete de imprensa?", questionou, em tom de brincadeira.

Eu acho um absurdo jornalista ter que se camuflar. Isso quer dizer que estamos em uma ditadura real. Eu tenho 63 anos; na época da ditadura, a coisa funcionava mais ou menos desse jeito: você tinha que se esconder. Passou da hora de unirmos todos os esforços para derrubar esse fascista que está aí [Bolsonaro]

Odete dos Santos

leitora de Guarulhos (SP)

"A cobertura de atos com os apoiadores do Bolsonaro é sempre cercada de muita tensão e de hostilidades à imprensa. Então aprendemos a cobrir esses eventos com muita cautela", explicou Scolese.

Isso significa sair à paisana, sem bloco de anotações da Folha e com o crachá guardado na bolsa. Ele lembrou que os veículos de imprensa deixaram de fazer a cobertura no chamado "cercadinho", na porta do Palácio da Alvorada, devido ao risco à segurança dos jornalistas.

"Eu acho um absurdo jornalista ter que se camuflar. Isso quer dizer que estamos em uma ditadura real", opinou a leitora Odete Santos, de Guarulhos (SP). "Eu tenho 63 anos; na época da ditadura, a coisa funcionava mais ou menos desse jeito: você tinha que se esconder. Passou da hora de unirmos todos os esforços para derrubar esse fascista que está aí [Bolsonaro]."

Conversa com Leitores é uma iniciativa da editoria de Interação para realizar um papo periodicamente com leitores sobre assuntos em evidência, seja política, economia, internacional, sociedade, cultura, dentre outros. Fique de olho no site e nas redes da Folha para participar dos próximos. ​

O que os leitores querem

  1. Investigações sobre Arthur Lira e o Orçamento secreto

  2. Questionamentos sobre a atuação do STF na crise institucional

  3. Continuidade a investigações jornalísticas

  4. Apurar as motivações de Bolsonaro ao dar indulto a Daniel Silveira

  5. Posicionamento mais crítico sobre a atuação das polícias sob Bolsonaro

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