Descrição de chapéu Conversa com leitores Rússia

Desafios da cobertura na Ucrânia são tema de papo de leitores com a Folha

Daigo Oliva, editor de Mundo, falou sobre os perigos da desinformação

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Americana (SP)

​Os desafios da cobertura jornalística da guerra da Ucrânia em meio a uma avalanche de informações, vídeos e fotografias que chegam pelas redes sociais, sem cair nas armadilhas do enviesamento e do maniqueísmo, foram tema de conversa de um grupo de leitores da Folha com o editor de Mundo, Daigo Oliva, 37, nesta terça-feira (22).

"É intrínseca a um conflito a guerra de narrativas e a desinformação, e isso vem muito amplificado pelas redes sociais. Não podemos achar que é uma briga entre mocinho e vilão, em que as peças já estão estabelecidas", afirmou Daigo.

"As duas partes fazem guerra de desinformação, e o projeto Folha tem essa preocupação muito grande de dar espaço para os dois lados sem deixar de fazer um jornalismo crítico com contrapontos."

Tela de videoconferência mostra homem em plano americano, cabelos castanhos escuros anelados, olhos castanhos, óculos redondos; ele veste uma camisa caqui e máscara azul e sorri com os olhos
O editor de Mundo, Daigo Oliva, conversa com leitores da Folha - Reprodução

A Folha cobriu os momentos iniciais do conflito com o repórter especial Igor Gielow, em Moscou. Agora, o fotojornalista André Liohn reporta de dentro da Ucrânia –neste momento, em Zaporíjia. Na Redação, a equipe mais do que dobrou de tamanho, para dar conta do noticiário.

Diariamente, os jornalistas recebem uma enxurrada de imagens da guerra; umas verídicas, outras, não. "Como dependemos de fontes terceiras para que a veracidade seja confirmada, temos sempre um compasso de espera", explicou.

Daigo citou o caso, no início do conflito, em que um tanque era visto atropelando um carro em Kiev, capital ucraniana. Na ocasião, veículos ao redor do mundo –entre eles, a Folha– noticiaram que se tratava de um tanque russo. Apenas recentemente foi confirmada a informação de que o veículo militar era, na verdade, ucraniano.

"Nesse ambiente hipercompetitivo, em que as pessoas têm que publicar as coisas o mais rápido possível, tentamos ter uma certa parcimônia e sempre duvidar da imagem que estamos vendo", afirmou Daigo, lembrando que isso não exime o jornal de cometer erros.

"Fazer jornalismo é fazer contenção de erros. Temos a máxima 'não caçoarás do erro alheio', porque o próximo pode ser seu."

Nesse sentido, o leitor Sidney Dupeyrat de Santana, do Rio de Janeiro (RJ), perguntou sobre o papel do fotojornalismo profissional em meio ao caldeirão das redes sociais.

"É possível fazer fotos enviesadas, da mesma forma que é possível fazer textos enviesados. A fotografia é um recorte da realidade; você escolhe um enquadramento, e aquilo que você quer mostrar e aquilo que você não quer mostrar, principalmente", avaliou Daigo, que já foi fotojornalista e editou Fotografia no jornal.

É possível fazer fotos enviesadas, da mesma forma que é possível fazer textos enviesados. A fotografia é um recorte da realidade; você escolhe um enquadramento, e aquilo que você quer mostrar e aquilo que você não quer mostrar, principalmente

Daigo Oliva

editor de Mundo

"Quando você tem uma grande quantidade de registros sendo compartilhados sem filtro, um profissional de imprensa independente é ainda mais valioso, mesmo que não se entenda o valor dessa pessoa no conflito."

​Daigo relatou conversa que teve com Liohn, em que o enviado especial comentou que essa era uma guerra com acesso mais difícil, justamente porque os Exércitos julgavam não precisar dos jornalistas, tamanha a distribuição em massa e em tempo real de informações.

"Como as redes sociais já estão fazendo o papel de divulgadores das posições de cada país, os soldados não viam a presença da imprensa como algo necessário", contou o editor.

Segundo Daigo, "o que a gente sente pelo relato do enviado é que um certo cuidado que existia com os jornalistas em situação de guerra agora não está acontecendo, e talvez por essa não necessidade tão crucial de depender de um jornalista para contar a sua versão".

É muito interessante esse diálogo com os leitores, a gente se apropria mais do trabalho jornalístico

Marcos Schmidt de Aguiar

geógrafo e professor de Porto Alegre (RS)

O estudante de jornalismo Jorge Neto, 20, de João Pessoa (PB) quis saber como o jornal faz para filtrar o conteúdo enviesado que chega tanto por agências quanto por redes sociais.

Daigo citou como exemplo de viés a forma romantizada de olhar para o líder de um país que está sendo invadido (o presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski), como se ele fosse um ser perfeito, sem erros, adotada por parte da imprensa ocidental.

"De fato a cobertura da mídia ocidental está supertendenciosa. É um fato que, em tempos de guerra, a imprensa americana realmente toma um lado, e as redes sociais da mesma forma", afirmou.

Para ele, a saída da Folha é adotar um posicionamento crítico e contextualizar as notícias com o máximo de informação disponível para que o leitor possa formar sua opinião.

Já a jornalista Natália Ramos, 32, que mora em Utrecht, na Holanda, questionou que histórias paralelas ao conflito armado devem ou merecem ser contadas para o público brasileiro. "Em meio a tanta informação, quais enfoques ganham espaço no noticiário e por quê?".

Em meio a tanta informação, quais enfoques ganham espaço no noticiário?

Natália Ramos

jornalista em Utrecht (Países Baixos)

Na avaliação de Daigo, a crise dos refugiados é dos fronts mais importantes dessa cobertura. Estima-se que 3,5 milhões de pessoas já tenham deixado o país.

"E há aspectos dessa crise que também são relevantes. Você tem um deslocamento de pessoas que são em sua maioria, brancas, europeias, e você tem um acolhimento por outras nações europeias diferente do oferecido a refugiados do Oriente Médio ou da África", ponderou, citando a crise dos refugiados da guerra da Síria, em 2015.

Aspectos geopolíticos adjacentes ao conflito militar também são importantes para que se entenda o que vai acontecer no futuro. Entre eles estão o papel do presidente francês, Emmanuel Macron, como porta-voz do Ocidente, às portas de uma eleição presidencial, e do presidente americano, Joe Biden, que enfrenta uma guerra de grandes proporções no segundo ano de governo.

"E isso sempre deságua na China. O que vai ser da amizade sem limites que Rússia e China tinham construído antes do início da guerra?", questionou.

O editor citou ainda o impacto econômico do conflito, que já está sendo sentido no Brasil com o aumento do preço dos combustíveis. Há uma preocupação muito grande também com a segurança alimentar, já que Rússia e Ucrânia são grandes produtores de grãos, e a agricultura brasileira depende da importação de fertilizantes russos.

Tela de videoconferência mostra homem em plano americano, cabelos castanhos escuros anelados, olhos castanhos, óculos redondos; ele veste uma camisa caqui e máscara azul; à direita, quatro quadradinhos na vertical mostram outros participantes
O editor de Mundo, Daigo Oliva, conversa com leitores da Folha - Reprodução

O estudante de jornalismo Luan Oliveira, 21, de Maceió (AL), avaliou que os critérios de noticiabilidade dos jornalistas às vezes expõem contradições. "Como explicar a decisão de cobrir extensivamente o conflito ucraniano enquanto outras questões, como a do Iêmen, ficam em segundo plano ou sequer são cobertos?", questionou.

"Este é o maior conflito na Europa desde a Segunda Guerra Mundial e pode desembocar em uma Terceira Guerra Mundial, e ela tem desdobramentos gigantescos. Este não é um conflito comum", respondeu Daigo.

"A atenção dispensada para esse conflito é porque ele tem um valor de notícia maior. Pode ser um pouco duro dizer isso, mas essa é, na matemática da notícia, aquilo que devemos priorizar: qual é o evento que tem as maiores repercussões, humanitárias, geopolíticas e econômicas."

Este é o maior conflito na Europa desde a Segunda Guerra Mundial e pode desembocar em uma Terceira Guerra Mundial. A atenção dispensada para esse conflito é porque ele tem um valor de notícia maior. Pode ser um pouco duro dizer isso, mas essa é, na matemática da notícia, aquilo que devemos priorizar: qual é o evento que tem as maiores repercussões, humanitárias, geopolíticas e econômicas

Daigo Oliva

editor de Mundo

O geógrafo e professor Marcos Schmidt de Aguiar, 52, de Porto Alegre (RS), manifestou preocupação sobre um eventual risco de rompimento das comunicações que venha a impedir o trabalho dos jornalistas na Ucrânia.

Daigo explicou que os jornalistas têm conseguido acessar a internet dos hotéis em que estão hospedados ou dos Exércitos e que, até o momento, não houve problemas relatados. Uma prática do passado, de comunicação por satélite, já não é mais necessária.

"Agora, da forma como os russos vêm atacando, visando principalmente a infraestrutura do país, como energia e comunicação, isso pode vir a acontecer sim, e aí vai ser um grande problema", ponderou.

"É muito interessante esse diálogo com os leitores, a gente se apropria mais do trabalho jornalístico", avaliou Marcos.


Conversa com Leitores é uma iniciativa da editoria de Interação para realizar um papo periodicamente com leitores sobre assuntos em evidência, seja política, economia, internacional, sociedade, cultura, dentre outros. Fique de olho no site e nas redes da Folha para participar dos próximos.

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