São Paulo, domingo, 12 de setembro de 1999


 

Ciência e numerologia

IVAN CHAMBOULEYRON
especial para a Folha

O número de citações de trabalhos científicos é um critério a mais para qualificar o mérito do cientista, e nunca o único critério de relevância. Um autor pode, por exemplo, ter um número elevado de citações por razões que pouco tenham a ver com a sua competência ou relevância científica. Por exemplo, a de participar como co-autor ou autor não principal em trabalhos que foram muito citados. A literatura contém artigos que viraram “citation classics”, contendo autores cujos nomes desapareceram depois.
Essa situação ocorre com maior freqüência nos estágios de jovens pesquisadores no exterior em equipes ou laboratórios de grande importância científica. Essas equipes são sempre lideradas por um grande cientista e trabalham sobre temas “quentes”. Na verdade, as publicações dessas equipes são as que, de certa forma, criam a “moda” científica, e são muito mais citadas do que as outras, relativas a temas menos “quentes”.
O novo ranking da Folha inclui citações de trabalhos de pesquisadores brasileiros produzidos em períodos em que eles estagiaram no exterior. Muitos dos que regressam ao Brasil tentam reproduzir aqui as atividades de pesquisa que realizaram no Primeiro Mundo. A experiência mostra que essas tentativas não são muito bem-sucedidas. Esses fracassos nada têm a ver com a qualidade do pesquisador, mas sim com a percepção que ele tem da ciência nos países periféricos.
O que realmente interessa à sociedade é o quanto beneficiou o país aquela experiência num grande laboratório do Primeiro Mundo. Desse ponto de vista, a iniciativa da Folha pode induzir a um grande erro, a menos que se publiquem em listas separadas as citações conseguidas durante o estágio no Primeiro Mundo e as conseguidas com publicações originadas na pesquisa realizada no Brasil. Assim, o leitor poderá comparar o impacto produzido pelas pesquisas da mesma pessoa fora e dentro do Brasil, e perceber duas coisas: primeiro, o grau de “senioridade” do pesquisador formado no exterior e, segundo, que as citações dos trabalhos aqui realizados são muito mais “suadas” do que as citações de trabalhos feitos no Primeiro Mundo.
A numerologia das citações fornecida pelo ISI é fácil de ser feita, mas a realidade acadêmica não é tão simples. Um pesquisador atinge o nível de excelência almejado pela Folha não somente pelas citações, mas também por outros indicadores de prestígio: distinções acadêmicas, palestras a convite, prêmios dentro e fora do Brasil, participação nos comitês de programa de congressos da especialidade, títulos honoríficos, “fellowships” etc. Esses indicadores não são fornecidos pelo ISI e são de contabilização mais difícil, mas indispensáveis para um julgamento válido, pois ajudam a entender o grau de inserção e reconhecimento do pesquisador nacomunidade.
A pesquisa no Terceiro Mundo tende a “copiar” os temas pesquisados no Primeiro Mundo, que muitas vezes não são relevantes num contexto de desenvolvimento diferente. Muitas vezes, as revistas de prestígio internacional nos levam a publicar trabalhos em determinadas áreas, e não em outras que, apesar de serem altamente relevantes no nosso contexto, “cabem mal” na ciência internacional. Trabalhos científicos bem-feitos, de alta relevância na realidade brasileira, podem não ser aceitos nas melhores revistas. E, mesmo sendo aceitos, não terão grande número de citações, uma vez que fogem dos temas em voga. Esse é um dos aspectos trágicos da ciência nos países subdesenvolvidos. Os próprios cientistas nem sempre são conscientes e parecem ajudar a perpetuar um sistema inadequado. Os países do Terceiro Mundo precisam desenvolver sistemas de avaliação de atividades de ciência e tecnologia diferentes dos importados do Primeiro Mundo, que incluam a natureza dos problemas fundamentais da sociedade e o hiato científico-tecnológico.

Ivan Chambouleyron, físico, é pró-reitor de pesquisa da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas)


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