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Professor não vale nada
RUBEM ALVES
especial para a Folha
O que penso sobre avaliação dos docentes de nossas universidades,
eu já disse na parábola O Canto do Galo, publicada
na Folha (na edição de 21/7/1998). Agora vou traduzir
O Canto do Galo para aqueles que não entendem parábolas.
Avaliar (do latim valere = ser digno) é separar as
coisas dignas das coisas indignas. A avaliação tem uma função
vital. Se o corpo não fosse dotado de uma função
de avaliação, ele comeria de tudo, indiscriminadamente.
Até os bichos avaliam. Quando o cão ou o coelho cheiram
o alimento antes de o pôr na boca, eles estão avaliando,
a fim de saber se aquela coisa é digna de ser comida.
Osso é bom para o cão. Não é bom para o coelho.
Cenoura é boa para o coelho. Não é boa para o cão.
O ato de avaliar é sempre relativo a um sistema vital. Não
existe avaliação em abstrato. Quando se fala em avaliação,
portanto, é preciso ter em mente o sistema de valores em relação
ao qual a avaliação é feita.
Marx notou que os homens se valem de dois sistemas de avaliação:
valores de uso e valores de troca. Os valores
de uso são aqueles em que o juiz é o corpo. É o corpo
que diz que a maçã é gostosa, que a música
é bonita, que a faca é boa. Os valores de uso se referem
à relação de um objeto com o corpo. Sua função
é vital. Eles são sempre expressos por juízos
de qualidade do tipo é bom, é bonito,
é gostoso, é útil.
Os valores de troca foram criados pelas relações
econômicas. Eles não se referem ao corpo, mas à equivalência
numérica no jogo do mercado. 20 kg de maçã = 2 CDs
= 1 faca. Essa relação de valor é medida pelo dinheiro.
O valor em dinheiro não indica nem utilidade nem prazer. O mercado
é um juiz que ignora utilidades e prazeres. Os valores de
troca, assim, são abstratos e não possuem nenhuma
relação com a vida.
O conhecimento nasceu como uma extensão do corpo, para ajudá-lo
a viver. O corpo sentiu dor, e a dor fê-lo usar a inteligência
a fim de encontrar uma receita para pôr fim à dor. O corpo
sentiu prazer, e o prazer fê-lo usar a inteligência a fim
de encontrar uma receita para repetir a experiência de prazer. Esse
é o início do conhecimento. Foi assim que nasceu a ciência.
Para o corpo, a ciência é uma função vital.
Ela é digna, tem valor, quando serve para diminuir o sofrimento
e aumentar o prazer.
Há um rigoroso paralelismo entre o desenvolvimento da ciência
e o desenvolvimento da economia. No princípio, conhecimentos
e objetos pertenciam ao conjunto dos valores de uso.
Era o corpo que dizia se eram bons ou maus. Com o desenvolvimento do mercado,
os conhecimentos científicos e objetos
(mercadorias) deixaram de ser medidos pelo seu valor de uso
e passaram a ser medidos pelo seu valor de troca. Para se
saber o valor de uma mercadoria não se pergunta se ela é
gostosa, bela ou útil; consultam-se os números da bolsa
de valores das mercadorias. Para se saber o valor de um artigo científico
não se pergunta se ele é belo ou útil; consultam-se
os números da bolsa de valores da ciência. Atualmente,
a bolsa de valores da ciência são as revistas
científicas internacionais. Na bolsa de valores econômicos
é indiferente que as empresas produzam músicas ou armas.
Vale o número. Na bolsa de valores da ciência, igualmente,
é indiferente a função vital do conhecimento. Vale
o numero de citações. O número de vezes que seu artigo
é citado é o capital que o cientista acumula na sua poupança
de valores acadêmicos. É assim que eles sobem na carreira
acadêmica.
Em vez de o valor da produção científica ser medido
pelos valores de troca das revistas internacionais, poderia
ser medido pelos valores de uso. Nesse caso contagens numéricas
de citações perderiam o sentido. Valores de uso
não se medem por números. Medem-se qualitativamente, pelo
bem que podem produzir para a vida, seja de indivíduos, seja de
um povo. A opção por um ou por outro sistema de avaliação,
em última instância, decorre da comunidade perante a qual
o cientista se sente responsável.
O nome é avaliação de docentes. Docência
é ensinar a pensar. Quem sabe pensar tem mais chances de sobreviver
e de ter prazer. Contribui para a qualidade de vida dos indivíduos
e do país. Considero a docência o valor mais alto, mais digno.
Mas onde se encontra a docência na bolsa internacional dos saberes
da ciência? Ausente. Uma vez decretado que o valor mais alto é
a publicação de artigos em revistas internacionais, publish
or perish, os alunos passam a ser trambolhos que atrapalham os cientistas
(não mais docentes...) na busca de excelência. Ensinar não
tem valor, não é coisa digna. Um pesquisador que publica
artigos vale mais que um professor que ensina a pensar. Essa é
a minha conclusão diante dos critérios de avaliação
dos docentes: professor não vale nada.
Rubem Alves, 64, educador, escritor e psicanalista, é
professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
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