São Paulo, 12 de setembro de 1999


 


Professor não vale nada

RUBEM ALVES
especial para a Folha

O que penso sobre avaliação dos docentes de nossas universidades, eu já disse na parábola “O Canto do Galo”, publicada na Folha (na edição de 21/7/1998). Agora vou traduzir “O Canto do Galo” para aqueles que não entendem parábolas.
Avaliar (do latim “valere” = ser digno) é separar as coisas dignas das coisas indignas. A avaliação tem uma função vital. Se o corpo não fosse dotado de uma função de avaliação, ele comeria de tudo, indiscriminadamente. Até os bichos avaliam. Quando o cão ou o coelho cheiram o alimento antes de o pôr na boca, eles estão avaliando, a fim de saber se aquela coisa é digna de ser comida.
Osso é bom para o cão. Não é bom para o coelho. Cenoura é boa para o coelho. Não é boa para o cão. O ato de avaliar é sempre relativo a um sistema vital. Não existe avaliação em abstrato. Quando se fala em avaliação, portanto, é preciso ter em mente o sistema de valores em relação ao qual a avaliação é feita.
Marx notou que os homens se valem de dois sistemas de avaliação: “valores de uso” e “valores de troca”. Os valores de uso são aqueles em que o juiz é o corpo. É o corpo que diz que a maçã é gostosa, que a música é bonita, que a faca é boa. Os valores de uso se referem à relação de um objeto com o corpo. Sua função é vital. Eles são sempre expressos por “juízos de qualidade” do tipo “é bom”, “é bonito”, “é gostoso”, “é útil”.
Os “valores de troca” foram criados pelas relações econômicas. Eles não se referem ao corpo, mas à equivalência numérica no jogo do mercado. 20 kg de maçã = 2 CDs = 1 faca. Essa relação de valor é medida pelo dinheiro. O valor em dinheiro não indica nem utilidade nem prazer. O mercado é um juiz que ignora utilidades e prazeres. Os “valores de troca”, assim, são abstratos e não possuem nenhuma relação com a vida.
O conhecimento nasceu como uma extensão do corpo, para ajudá-lo a viver. O corpo sentiu dor, e a dor fê-lo usar a inteligência a fim de encontrar uma receita para pôr fim à dor. O corpo sentiu prazer, e o prazer fê-lo usar a inteligência a fim de encontrar uma receita para repetir a experiência de prazer. Esse é o início do conhecimento. Foi assim que nasceu a ciência.
Para o corpo, a ciência é uma função vital. Ela é digna, tem valor, quando serve para diminuir o sofrimento e aumentar o prazer.
Há um rigoroso paralelismo entre o desenvolvimento da ciência e o desenvolvimento da economia. No princípio, “conhecimentos” e “objetos” pertenciam ao conjunto dos “valores de uso”. Era o corpo que dizia se eram bons ou maus. Com o desenvolvimento do mercado, os “conhecimentos científicos” e “objetos” (mercadorias) deixaram de ser medidos pelo seu “valor de uso” e passaram a ser medidos pelo seu “valor de troca”. Para se saber o valor de uma mercadoria não se pergunta se ela é gostosa, bela ou útil; consultam-se os números da bolsa de valores das mercadorias. Para se saber o valor de um artigo científico não se pergunta se ele é belo ou útil; consultam-se os números da “bolsa de valores da ciência”. Atualmente, a “bolsa de valores da ciência” são as revistas científicas internacionais. Na bolsa de valores econômicos é indiferente que as empresas produzam músicas ou armas. Vale o número. Na bolsa de valores da ciência, igualmente, é indiferente a função vital do conhecimento. Vale o numero de citações. O número de vezes que seu artigo é citado é o capital que o cientista acumula na sua poupança de valores acadêmicos. É assim que eles sobem na carreira acadêmica.
Em vez de o valor da produção científica ser medido pelos “valores de troca” das revistas internacionais, poderia ser medido pelos “valores de uso”. Nesse caso contagens numéricas de citações perderiam o sentido. “Valores de uso” não se medem por números. Medem-se qualitativamente, pelo bem que podem produzir para a vida, seja de indivíduos, seja de um povo. A opção por um ou por outro sistema de avaliação, em última instância, decorre da comunidade perante a qual o cientista se sente responsável.
O nome é “avaliação de docentes”. Docência é ensinar a pensar. Quem sabe pensar tem mais chances de sobreviver e de ter prazer. Contribui para a qualidade de vida dos indivíduos e do país. Considero a docência o valor mais alto, mais digno. Mas onde se encontra a docência na bolsa internacional dos saberes da ciência? Ausente. Uma vez decretado que o valor mais alto é a publicação de artigos em revistas internacionais, “publish or perish”, os alunos passam a ser trambolhos que atrapalham os cientistas (não mais docentes...) na busca de excelência. Ensinar não tem valor, não é coisa digna. Um pesquisador que publica artigos vale mais que um professor que ensina a pensar. Essa é a minha conclusão diante dos critérios de avaliação dos docentes: professor não vale nada.

Rubem Alves, 64, educador, escritor e psicanalista, é professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).


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