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Mídias sociais não devem me dizer se estou certo ou errado, afirma Branko Milanovic

Especialista em desigualdade fala à Folha sobre guerra comercial, crise política e papel das mídias

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São Paulo

As decisões do Twitter e do Facebook de, respectivamente, banir e suspender os perfis de Donald Trump, ex-presidente americano, foram um ato de censura potencialmente muito grave.

A opinião é do economista Branko Milanovic, um dos maiores especialistas em desigualdade de renda, em entrevista que integra a série Fuga para a Frente, um dos projetos do centenário da Folha.

O economista Branko Milanovic, autor de “Capitalismo sem Rivais” (ed. Todavia) e “Global Inequality" - Simone Padovani - 22.ago.17/Awakening/Getty Images

Em seu livro mais recente, “Capitalismo sem Rivais” (ed. Todavia), Milanovic propõe que, embora tenha dominado o mundo, o sistema econômico baseado no livre mercado ganhou duas versões distintas lideradas, em lados opostos, por americanos e chineses.

Se já protagonizavam conflitos relacionados a seus modelos diferentes, os EUA e a China acabam de entrar em uma nova Guerra Fria, deflagrada pela pandemia do coronavírus, segundo ele.

Tanto as atitudes de Twitter e Facebook quanto a escalada nas tensões entre os dois países preocupam o economista, que também afirma nunca ter se convencido dos motivos que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff (PT) no Brasil. Leia entrevista ou assista ao vídeo.

Quais são as semelhanças e diferenças entre os dois tipos de capitalismo que o senhor identifica?

Os partidos de esquerda e comunistas, no século 20, transformaram os países que foram colonizados e eram semifeudais ou feudais de duas formas.

Em primeiro lugar, os liberaram do colonialismo e, em segundo, se livraram das instituições do feudalismo. Então, muitos deles estavam construindo o socialismo, mas, ao longo do tempo, o capitalismo foi mais eficiente e eles se moveram na direção do setor privado e dos mercados. Esse foi meu argumento sobre como a China se tornou capitalista no sentido da infraestrutura, da produção, enquanto politicamente, permaneceu um sistema autoritário ou o que chamo de capitalismo político.

Já os países do Ocidente, em particular os EUA, passaram de sistemas social-democratas para outros mais neoliberais, ou o que chamo de capitalismo meritocrático liberal.

Por que ambos aumentam a desigualdade de renda? 

A parcela crescente de renda que vem do capital gera uma transmissão quase automática para a desigualdade porque as pessoas que a recebem estão no topo da distribuição. Há outras forças, incluindo casamentos entre pessoas que são tanto muito instruídas quanto ricas e, claro, o controle do processo político.

Na China, a desigualdade é resultado de um desenvolvimento rápido, do movimento da mão de obra da agricultura para a indústria, do aumento do desemprego, do aumento do retorno à educação, de uma larga parcela de renda do capital, mas também de uma corrupção muito forte.

Há evidências de que a desigualdade é ruim para o desenvolvimento? 

Um número crescente de estudos mostra que países muito desiguais são mais vagarosos em termos de crescimento.

Outro argumento empírico é que sociedades com desigualdade muito alta têm oportunidades desiguais. O Brasil é um exemplo muito bom. Os resultados das pessoas são influenciados por onde elas nasceram, quem são seus pais, se são brancas, pretas, miscigenadas e elas não conseguem desfazer isso com seus esforços.

Um terceiro argumento muito importante —e, de novo, o Brasil talvez seja um bom exemplo — é que, quando há uma desigualdade muito alta, as pessoas que são ricas tentam controlar o processo político.

Pertences de moradores de rua no centro de São Paulo embaixo de viaduto grafitado com Donald Trump brincando de marionete com Jair Bolsonaro - Lalo de Almeida - 23.jun.2019/Folhapress

Como a eleição de Bolsonaro se encaixa nos acontecimentos globais dos últimos anos? 

Não conheço a política brasileira muito bem. Mas, minha impressão, como muitas pessoas mencionaram, é que ela se encaixa na eleição de políticos como Trump ou [Narendra] Modi, na Índia, ou mesmo [Vladimir] Putin, na Rússia, e [Recep] Erdogan, na Turquia.

Também preciso dizer que eu nunca estive convencido em relação ao impeachment de Dilma.

Por quê?

Porque me pareceu que o ponto contra ela, como outras pessoas têm dito, foi relativamente fraco. O que descobriram que ela fez foi o mesmo que muitos outros tinham feito. Não foi para engrandecimento pessoal, foi uma classificação inadequada de recursos.

Como o senhor vê os conflitos frequentes entre governo e a mídia tanto nos EUA de Trump, quanto no Brasil de Bolsonaro?

Vou falar sobre os EUA. Vivo aqui há muito tempo e a grande mídia dominante tradicional se posicionou contra o Trump de uma forma que nunca havia visto em relação a outro presidente. Ele também se comportou de uma forma muito diferente, heterodoxa, se envolveu em brigas diretas, inventou mentiras.

Mas estou muito infeliz com o que vimos bem no fim da presidência, quando o Twitter, o Facebook e outras mídias começaram, essencialmente, uma censura. Isso é, potencialmente, muito grave. Não acho que esse seja o papel da mídia social, que é uma ferramenta, da mesma forma que um jornal é uma ferramenta.

Quando uso um jornal para escrever o que seja, seu dono não me dirá se o que escrevi é certo ou errado. O mesmo vale para as mídias sociais. Elas não devem me dizer se estou certo ou errado. Esse papel de discordar é seu, da sua mídia, dos comentaristas, de outros ouvintes, mas não da ferramenta.

Que papel a mídia tem desempenhado nas mudanças históricas que o senhor documenta? 

Acho que as mídias sociais têm exercido um papel importante liberando crescimento, nos levando a conhecer opiniões, indivíduos, trabalhos, artigos de todo o mundo. Ainda acho que as mídias sociais e a mídia de forma geral, seja a impressa ou em outros formatos, desempenharam um papel extremamente importante durante a história. Você não pode revelar coisas, não pode aprender coisas, se não puder compartilhá-las.

Quais foram as principais lições dos acontecimentos dos últimos anos? 

É muito difícil dizer. Os jornais e a mídia impressa originalmente sempre foram divididos ideologicamente.

Você não pode ser apenas um repórter porque, ao escolher um tópico em vez de outro, está fazendo uma escolha e mostra sua visão sobre o que é importante e o que não é.

Você não pode revelar coisas, não pode aprender coisas, se não puder compartilhá-las

Branko Milanovic

Economista, especilista em desigualdade

Então, compreendo e, na verdade, sou a favor de termos não a chamada mídia neutra porque isso é uma presunção. Sou a favor de termos mídia de esquerda, direita, centrista, extrema direita, extrema esquerda, como você quiser chamá-la. O que me preocupa é quando a ferramenta —o Twitter ou o Facebook— começa a impor as condições.

Isso me lembra a Idade Média ou o comunismo, quando, para te dar um exemplo, em alguns países, a pessoa encarregada da máquina de xerox era considerada culpada se outra a usasse para copiar alguma publicação contrária ao Estado.

A pandemia do coronavírus influenciará ou mudará tendências?

Até agora, descobrimos que é bem viável você fazer seu trabalho remotamente. Fazíamos isso antes, mas muito pouco. Isso significa que podemos começar a ter um mercado global em algumas profissões.

A segunda coisa que irá mudar, infelizmente, é a relação entre EUA e China porque seu conflito foi exacerbado e nós estamos, basicamente, no início da Segunda Guerra Fria.

Uma coisa que eu talvez tivesse mudado no livro é a opinião muito negativa sobre a renda básica universal (RBU). Ainda acredito que ela é muito cara, que a esquerda e a direita a veem de forma inteiramente diferente, e que uma sociedade onde talvez 10% ou 15% das pessoas iriam, por escolha, nunca trabalhar não é boa. Mas vi como os pacotes de estímulos, incluindo no Brasil, teriam sido muito mais simples se existisse a RBU.

Que países estavam mais bem preparados nessa crise? 

Há uma divisão entre a Ásia do Leste e o resto do mundo. Precisamos de explicações sobre por que os Estados Unidos, países europeus e da América Latina —principalmente, o Peru, mas em seguida o Brasil e a Argentina— estavam tão despreparados e, um ano depois do início da crise, continuam despreparados.

A China se tornará ainda mais importante globalmente?

A China, no longo prazo, será um perdedor da pandemia, apesar do fato de que tenha lidado com ela muito bem. O problema é que não era do interesse da China começar a Segunda Guerra Fria, e essa pandemia contribuiu para isso.

O senhor realmente acredita em uma nova Guerra Fria?

Eu não tenho dúvidas de que entramos na nova Guerra Fria porque o tema entre a China e os EUA não se refere mais a tarifas ou propriedade intelectual. Por causa da população e do governo americanos, isso se tornou um tema de valores.

Então, os EUA irão atrás da China em um terreno completamente diferente, dizendo que o país não é democrático, que sufoca minorias. Quando você tem um conflito sobre o nível de tarifas, há uma solução. Quando você tem um conflito de valores, você não tem uma solução para ele. Isso que é assustador.


RAIO X

Branko Milanovic, 67

Doutor em economia pela Universidade de Belgrado, na Sérvia, é professor da Universidade da Cidade de Nova York (CUNY) e pesquisador no Stone Center on Socio-Economic Inequality. Foi economista-chefe do departamento de pesquisa do Banco Mundial. É autor de “Capitalismo sem Rivais” (ed. Todavia) e “Global Inequality: A New Approach for the Age of Globalization”.

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