Ian Bremmer

Fundador e presidente do Eurasia Group, consultoria de risco político dos EUA, e colunista da revista Time.

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Extremismo ainda se assenta em terras vazias e sem lei

Governos poderosos continuam a fingir que a turbulência 'lá fora' pode ser ignorada sem maiores consequências

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Nos dias e semanas seguintes aos ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001 em Nova York e Washington, um consenso emergiu sobre a melhor maneira de prevenir catástrofes semelhantes futuras. Autoridades políticas alertaram que grandes extensões territoriais não controladas por nenhum governo tornam-se áreas de treinamento e multiplicação de extremistas.

Desse modo, alguns países que produzem pouca coisa de valor podem começar a exportar violência, refugiados e turbulência. Foi essa a lógica que levou à guerra de quase 20 anos liderada pelos EUA no Afeganistão, que chegou ao fim seis meses atrás.

Membro de unidade militar do Talibã caminha pelos destroços de uma base da CIA, agência de inteligência dos EUA, após a retirada das tropas americanas do Afeganistão, em 2021
Membro de unidade militar do Talibã caminha pelos destroços de uma base da CIA, agência de inteligência dos EUA, após a retirada das tropas americanas do Afeganistão, em 2021 - Aamir Qureshi - 6.set.21/AFP

A lição poderia ter sido reaprendida quando o Estado Islâmico ocupou áreas do Iraque e Síria onde não existia segurança. Seus militantes ameaçaram semear o caos em vários continentes, e a turbulência intensa no Oriente Médio produziu ondas de refugiados que criaram novos tipos de fardos políticos e econômicos na Europa e em países como a Turquia.

Hoje os EUA estão muito menos dispostos do que logo após o 11 de Setembro a aceitar os custos e riscos decorrentes de travar conflitos sem fim em lugares distantes. A administração Biden está muito mais focada nos desafios criados pela China que nos problemas do Oriente Médio. A Europa, compreensivelmente, está muito mais preocupada com a Rússia no momento.

No entanto, hoje existem mais grandes extensões territoriais desgovernadas do que havia antes de 2001. Vários países possuem territórios consideráveis que poderíamos descrever como "terras vazias", áreas controladas principalmente por homens armados, e não por leis. O exemplo mais óbvio disso ainda é o Afeganistão, onde a queda do governo, seguida pela retirada caótica das forças americanas em agosto passado, devolveu Cabul e algumas partes do país a um Talibã extremista, desorganizado e inexperiente.

Esse novo governo terá dificuldade em impedir a filiada local do Estado Islâmico de atrair militantes de outras partes do mundo para assentar-se em partes do país onde o governo está ausente. Embora os EUA e a China estejam interessados em paz e estabilidade no Afeganistão, nenhum dos dois quer envolver-se diretamente em seu futuro.

Os riscos de terrorismo também são agudos no Sahel, região pouco governada. Conflitos com combatentes islâmicos se alastraram do Mali para toda a região, desencadeando ataques terroristas em grande escala em Burkina Fasso, Níger, Mali e Chade. E criaram um grau notável de instabilidade política: nos últimos 18 meses ocorreram golpes bem-sucedidos em Mali (duas vezes), Guiné e Burkina Fasso, golpes fracassados em Guiné-Bissau e Níger e um putsch menos violento no Chade.

Em cada um desses casos, a instabilidade política abriu oportunidades para extremismo, e o extremismo, por sua vez, aprofundou o caos político.

Também aqui, atores externos relutam cada vez mais em intervir diretamente. Os EUA recuaram depois de 2017, quando quatro soldados americanos foram mortos no Níger. Também a França reduziu sua presença militar. Uma intensificação dessas insurgências ainda tem o potencial de agravar em muito a situação na África Ocidental e a de todos que podem cair vítimas dos militantes que treinam ali para lançar ataques em outros lugares.

A guerra civil que se arrasta há sete anos no Iêmen ficou mais perigosa no último mês, desde que rebeldes houthis apoiados pelo Iraque retomaram os disparos de mísseis contra os Emirados Árabes Unidos, país que se aliou à coalizão liderada pela Arábia Saudita.

Depois de reduzir o apoio militar americano aos sauditas, uma administração Biden confrontada com múltiplas dores de cabeça domésticas e sendo desafiada por Moscou em relação à Ucrânia pouco tem feito para promover um cessar-fogo no Iêmen ou aliviar o sofrimento dos civis encurralados pelos combates.

Os efeitos vão extrapolar o Iêmen. Ataques houthis já danificaram instalações petrolíferas sauditas cruciais para a economia mundial e elevaram as tensões regionais com o Irã. As tentativas de ação contraterrorista no Iêmen continuam a falhar, dando espaço para uma eficiente entidade filiada à Al Qaeda no país.

Mianmar e Etiópia têm governos muito mais fortes que os do Afeganistão, do Iêmen ou dos países do Sahel, mas estão assolados por conflitos civis que fogem de seu controle. Em Mianmar, a junta governista no poder há mais de um ano ainda não conseguiu conter um movimento de desobediência civil e resistência por parte de organizações armadas de minorias étnicas.

Os Estados Unidos têm tratado Mianmar como baixa prioridade, e a China, embora apoie a junta, não tem investido muito em restaurar a ordem fora das maiores cidades do país. Índia e China enfrentam o risco de fluxos maiores de refugiados à medida que as condições internas se agravam.

A Etiópia encara muitos desses mesmos problemas. Em estado de guerra civil há mais de um ano, a vantagem militar ainda oscila entre as forças do governo e as antigovernamentais. A abordagem dos EUA tem sido inconsistente. A China tem dado cobertura diplomática e algumas armas ao governo, alimentando o risco de um conflito que pode gerar fluxos de refugiados com o potencial de desestabilizar todo o Chifre da África.

Finalmente, a crise interminável na Venezuela e no Haiti já lançou ondas de refugiados para a América do Norte e a América Latina. A repressão política e o derretimento econômico na Venezuela impeliram mais de 6 milhões de pessoas a abandonar o país desde 2014.

Os EUA pouco têm se esforçado para buscar uma solução política para a miséria econômica da Venezuela. O Haiti permanece atolado em corrupção endêmica e disputas políticas internas frequentemente violentas que já levaram milhões de haitianos a tentar chegar aos EUA.

Em um "mundo G-zero", em que não existe nenhuma potência isolada ou aliança forte de potências capazes de oferecer liderança global, esses diversos incêndios provavelmente vão arder por mais tempo e mais intensamente. Nas últimas duas décadas o mundo já viu diversas vezes que fronteiras internacionais não são capazes de conter violência política, sofrimento econômico e miséria humana. Em 2022, os governos mais ricos e poderosos do mundo continuam a fingir que a turbulência "lá fora" pode ser ignorada sem maiores consequências.

Tradução de Clara Allain

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