Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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Descrição de chapéu The New York Times aborto

Exceções ao aborto quando há risco de vida para a mãe podem funcionar?

Dois médicos contrários ao procedimento podem discordar sobre a gravidade da situação da gestante

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The New York Times

Além de dar nova esperança política aos democratas, a decisão da Suprema Corte que anulou Roe vs. Wade esclareceu o fundamento da discussão pública sobre o aborto.

À medida que defensores do direito ao procedimento pressionaram seu repentino impulso político, três argumentos pró-escolha pareceram especialmente importantes: o sobre o aborto em circunstâncias de risco de vida; o sobre custos físicos da gravidez; e o sobre as virtudes da situação cultural da era Roe.

Manifestantes pró-aborto protestam do lado de fora de sessão parlamentar no Capitólio Estadual de Indiana, em julho deste ano - John Cherry - 25.jul.22/Getty Images/AFP

Cada um merece sua análise, então esta será a primeira de uma série de colunas. (Notavelmente, nenhum deles é realmente sobre a questão de quando a vida, a personalidade ou os direitos humanos começam; todos tendem a apresentar razões que, mesmo que o feto tivesse uma reivindicação moral sobre nós, algum outro interesse necessariamente a supera. Vou tentar abordá-los nesses termos, em vez de apenas remodelar o debate sobre se seres humanos nascituros também são pessoas humanas.)

Em termos do que os americanos em conflito mais podem temer com a proibição do aborto, o argumento mais poderoso é o primeiro, que se concentra em gestações que deram tão errado que a vida da mãe só pode ser salva às custas da do feto.

Esses casos são tratados como exceções em todas as proibições estaduais. Mas essas exceções, argumentam os defensores do direito ao aborto, simplesmente não são amplas ou flexíveis o suficiente para proteger as mulheres de um perigo real. Em vez disso, ao limitar a prática estritamente à emergência médica, eles criam situações em que uma mulher com uma gravidez condenada e perigosa deve esperar que a própria saúde piore antes que a intervenção se torne legalmente possível —esperando por médicos e hospitais temerosos de ações judiciais e processos, numa espécie de tortura.

O contra-argumento pró-vida chama isso de desinformação legal. A exceção sobre a vida da mãe na proibição do aborto no Texas, por exemplo, não exige que o risco de morte ou "deficiência substancial" seja iminente ou imediato; requer apenas que um médico certifique que existe tal risco.

Assim, médicos e hospitais têm a liberdade de intervir mais cedo, não apenas esperar que a ameaça se torne grande demais para agir. Na medida em que há um problema aqui, nos casos reais de mulheres que tiveram a ajuda negada, os pró-vida argumentam que é principalmente um problema de profissionais de medicina que interpretam mal as novas leis, autoridades que não esclarecem seu significado —e meios de comunicação às vezes irresponsáveis que enganam sobre o que a lei realmente permite.

O lado pró-vida está certo de que alguns casos famosos parecem refletir um mal-entendido sobre o que essas leis permitem. Mas apenas ter um debate sobre o alcance de uma exceção sobre a vida da mãe inevitavelmente redunda em benefício do lado pró-aborto, porque concentra a atenção do público em uma área cinzenta, uma zona de ambiguidade na qual nem os oponentes da interrupção da gravidez concordam entre si sobre o que o princípio pró-vida exige.

Essa ambiguidade assume duas formas. Há a incerteza inerente de situações que podem ser fatais ou fisicamente devastadoras, em que a evidência é provisória e não há uma resposta médica simples. Há também a ambiguidade sobre se um meio específico de interromper uma gravidez perigosa satisfaz os compromissos antiaborto.

Na teoria moral católica, por exemplo, o que é permitido em emergências médicas são abortos "indiretos", que matam o embrião ou feto apenas como efeito secundário de um tratamento destinado a salvar a vida da mulher. Mas há um debate considerável, mesmo entre católicos conservadores, sobre o que significa "indireto" e que tipos de abortos ele permite.

Nos dois tipos de casos de áreas cinzentas, dois médicos pró-vida podem discordar sobre a gravidade da situação da mulher ou dois teóricos morais podem discordar sobre os meios lícitos de interromper a gravidez. Os legisladores que tentam criar exceções, portanto, precisam escolher entre um sistema que erra inteiramente pelo lado do nascituro e um que segue a conhecida linha pró-escolha de deixar certas decisões difíceis para "a mulher e seu médico".

E quando os opositores do aborto argumentam que as atuais leis pró-vida permitem aos médicos uma latitude considerável, eles estão efetivamente adotando a segunda opção, que concede algo à filosofia do lado pró-aborto.

A questão é o que essa concessão significa para o debate mais amplo. Um argumento seria que ela tem implicações muito além das exceções médicas: que uma vez que se admita áreas cinzentas em alguns casos e que se submeta a decisão a mulheres e médicos nas situações mais difíceis, não há uma maneira razoável de traçar uma linha e proibir o aborto em qualquer lugar.

Mas não acho que esse argumento faça sentido. Considere o debate de morte assistida e eutanásia. Algumas das questões em jogo no final da vida são obviamente diferentes das que envolvem o aborto. Mas as maneiras pelas quais se sobrepõem são úteis para pensar se é possível permitir casos difíceis e áreas cinzentas dentro de uma restrição geral, uma proibição padrão.

Atualmente, a Suprema Corte dos EUA não reconhece um direito geral de morrer (assim como não reconhece mais o direito ao aborto), o que significa que os estados podem proibir os médicos de ajudar seus pacientes a cometer suicídio, não importa quão difícil esteja a saúde do paciente.

No entanto, o tribunal também reconheceu, ao menos tacitamente, o direito de recusar tratamento médico que salva vidas –que, em certas circunstâncias, sob algumas teorias morais, poderia constituir um ato de suicídio.

Ele permitiu que a decisão de descontinuar o tratamento fosse tomada por terceiros em situações em que o paciente não tem mais competência para decidir, embora dentro das salvaguardas de leis estaduais —decisão que pode equivaler à eutanásia sob algumas teorias e circunstâncias. E reconheceu uma distinção entre ajudar ativamente um suicídio e buscar regimes agressivos de controle da dor.

Todos esses subsídios comprometem a perfeita coerência pró-vida, reconhecendo casos excepcionais e ambíguos mesmo quando a morte assistida é proibida. Como tal, eles são um tanto análogos ao compromisso tácito "pró-escolha" nas exceções sobre a vida da mãe às leis antiaborto. Portanto, é notável que, pelos padrões da guerra cultural americana, a abordagem de fim de vida do tribunal tenha se mostrado relativamente viável.

A morte assistida por médico é legal em dez estados e em Washington, mas permanece ilegal na maior parte do país; essa variação provou ser politicamente sustentável; e as leis contra a morte assistida não geram processos constantes e muito divulgados de médicos ou hospitais que lidam com casos extremos e áreas cinzentas.

Nesse contexto, faria sentido argumentar que, se reconhecermos as ambiguidades morais inerentes aos cuidados de fim de vida, devemos, portanto, aceitar um direito geral ao suicídio, com clínicas disponíveis para pessoas saudáveis de qualquer idade que se sintam tentadas a cometer suicídio? Certamente não.

Mesmo os defensores da legislação sobre morte assistida muitas vezes se esforçam para insistir que ainda estão falando apenas de casos extremos, especialmente situações terríveis. E mesmo os americanos progressistas parecem preocupados com esses países, da Bélgica ao Canadá, onde o direito ao suicídio se tornou mais geral e as pessoas supostamente são submetidas à eutanásia porque estão deprimidas ou solicitam morte assistida por falta de apoio financeiro adequado.

Essa corrente belgo-canadense mostra claramente que há uma tendência cultural-legal sob o liberalismo para que casos excepcionais sejam usados para justificar direitos universais e para que as sociedades desçam uma ladeira moral das concessões das áreas cinzentas para uma cultura da morte.

Mas a experiência americana sugere que essa tendência pode ser repelida e que é possível deixar casos ambíguos passarem sem julgamento sem estabelecer um direito geral ao suicídio. E o fato de que mesmo a maioria dos progressistas parece aceitar esse equilíbrio com questões de fim de vida implica que o mesmo equilíbrio poderia existir com o aborto —ou pelo menos que a existência de emergências médicas e as áreas legais cinzentas que elas criam não se generalizam de qualquer forma em um direito quase universal a tirar uma vida por nascer.

A menos que se possa estabelecer que uma gravidez indesejada é, por sua própria natureza, uma espécie de emergência física —outro argumento que circulou desde a queda de Roe, e que uma coluna futura nesta série abordará.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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