Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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Ross Douthat
Descrição de chapéu aborto

A sociedade americana precisa do aborto?

Nada é tão importante quanto garantir que milhares de vidas não nascidas possam ser encerradas no útero todos os anos?

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Em uma audiência do Comitê de Bancos do Senado logo após o vazamento do esboço de opinião da Suprema Corte que derrubaria Roe vs. Wade, a secretária do Tesouro Janet Yellen alertou que restringir o direito ao aborto "teria efeitos muito prejudiciais à economia".

As mulheres que tivessem negado o direito ao aborto perderiam oportunidades educacionais e teriam maior "probabilidade de viver na pobreza" ou "necessidade de assistência pública". E isso teria consequências para seus filhos, que então "cresceriam na pobreza e se sairiam pior na vida".

Os comentários de Yellen oferecem um bom lugar para começar o ensaio final da minha série, desmembrando os principais argumentos sobre o direito ao aborto que circularam desde a decisão de Dobbs. As duas primeiras colunas se concentraram em questões físicas e psicológicas, discussões sobre os fardos pessoais suportados por mulheres solicitadas a levar até o fim uma gravidez indesejada.

Ativistas pelo direito ao aborto protestam em frente a evento anual pró-vida em Washington
Ativistas pelo direito ao aborto protestam em frente a evento anual pró-vida em Washington - Drew Angerer - 13.set.22/Getty Images/AFP

Esta se concentrará mais em questões econômicas e sociológicas e, particularmente, na crença de que elementos cruciais do nosso atual estilo de vida americano –prosperidade econômica, oportunidades femininas, estabilidade social– dependem da pronta disponibilidade do aborto.

Essa tese tem vários pontos a seu favor. A primeira é a realidade geral de que, enquanto muitos outros países desenvolvidos têm leis de aborto um pouco mais restritivas do que os estados mais liberais dos Estados Unidos, quase nenhum país tem as proibições abrangentes buscadas pelo movimento antiaborto, do tipo que tenta limitar o procedimento às situações mais excepcionais ou perigosas. Em geral, as políticas de prosperidade, modernidade e direito ao aborto aparecem como um pacote.

Existem exceções notáveis –a Irlanda antes de 2018, o Chile hoje, a Polônia–, mas em geral os objetivos do movimento antiaborto são revolucionários, até mesmo utópicos, em relação ao padrão do mundo desenvolvido após os anos 1960. E um certo ceticismo é sempre apropriado quando o sistema proposto por alguém não tem muitos modelos existentes e o mundo que conhecemos tende no outro sentido.

Depois, há a evidência específica de que o uso do aborto pode estar associado a melhores resultados socioeconômicos para algumas mulheres. Na última coluna desta série, mencionei o Turnaway Study, investigação que compara a vida de mulheres que tiveram abortos negados com mulheres em situação semelhante que os obtiveram, afirmando que suas evidências não apoiam necessariamente o quadro simples de direitos ao aborto em que muitas vezes é colocado.

Mas esse estudo reforça as reivindicações econômicas de Yellen, mostrando que as mulheres que têm o aborto recusado enfrentam dificuldades socioeconômicas subsequentes em relação às mulheres que o obtêm. Portanto, se você simplesmente generalizar a partir desses resultados individuais para o nível social, esperaria que uma sociedade antiaborto fosse um pouco mais pobre e mais estratificada.

De fato, até mesmo firmes adversários do aborto às vezes admitem que esse talvez seja o caso. Em um ensaio no New York Times, Matthew Walther argumentou que os oponentes da prática precisavam estar preparados para a realidade de que "uma América sem aborto" poderia muito bem "significar mais mães solteiras e mais partos de mães adolescentes, maior pressão sobre o Medicaid e outros programas assistenciais, taxas de criminalidade mais altas, uma força de trabalho menos dinâmica e flexível, um aumento nas emissões de carbono, notas mais baixas nos testes dos alunos e Deus sabe o que mais".

O princípio de que não se deve matar um nascituro, argumentou ele, necessariamente perturbará uma sociedade construída sobre a negação do direito à vida e, portanto, os oponentes do aborto precisam estar preparados para uma difícil transição para a sociedade mais justa e decente que procuram.

Há sabedoria nessa perspectiva; um movimento com ambições utópicas precisa do reconhecimento de que busca uma sociedade genuinamente diferente, assim como um conjunto de leis diferente.

Ao mesmo tempo, porém, concede muito à visão de mundo de Yellen a análise do aborto como benefício econômico. E uma razão para acreditar nisso vem do trabalho da própria Yellen. Em 1996, ela e o marido, George Akerlof, juntaram-se ao economista Michael Katz num artigo intitulado "Uma análise da criação de filhos fora do casamento nos EUA". Eles tentaram explicar o que parecia um enigma: em um mundo em que as estratégias para controlar a natalidade melhoraram significativamente, com a contracepção disponível e o aborto legal, por que tantas mulheres estavam tendo filhos fora do casamento?

Criar filhos sozinha é difícil, e a maternidade solo impõe fardos econômicos substanciais, então você pensaria que, ao dar às mulheres mais opções quando levarem a gravidez a termo, mais mulheres escolheriam fazê-lo com o pai da criança casado e presente. Em vez disso, estava acontecendo o oposto, com a América pós-1960 e pós-Roe vendo um aumento sem precedentes na proporção de crianças nascidas fora do casamento –alta que seguiu por mais de uma década após 1996, antes de enfim se estabilizar em cerca de 40% do total de nascimentos, em comparação com 5% em 1960 e 10% em 1970.

Parte da explicação que o artigo propunha era que houve uma mudança fundamental nas obrigações recíprocas de homens e mulheres. Um sistema em que o sexo poderia ser separado da fertilidade, com o aborto garantido para quem o quisesse, tornava muito mais difícil para as mulheres que desejavam compromisso e filhos fazer exigências de longo prazo aos homens que quisessem fazer sexo com elas.

Como Yellen e Akerlof escreveram em um resumo da política para o Instituto Brookings, adaptado do artigo original, o antigo cenário de "casamento forçado", em que a sociedade esperava que os homens "prometessem casamento em caso de gravidez", dependia de um senso de obrigação inerente. Mas se qualquer gravidez indesejada pudesse terminar pela livre escolha da mulher, então o homem poderia razoavelmente negar a existência de qualquer obrigação definida de sua parte.

"Ao fazer do nascimento da criança a escolha física da mãe", concluíram Akerlof e Yellen, "a revolução sexual tornou o casamento e o sustento da criança uma escolha social do pai".

Essa mudança, sugeriram eles, não poderia ser desfeita; qualquer conservadorismo social aparece em sua análise como uma tentativa provavelmente fútil de "fazer o relógio tecnológico andar para trás".

Mas a nova liberdade feminina teve um custo para as mulheres que queriam fidelidade e filhos e não queriam fazer abortos; para elas, o mundo pós-revolução sexual era menos favorável, com normas agora redefinidas para funcionar contra as expectativas de monogamia, compromisso e sustento.

Os homens também podem perder nessa nova cultura. Assim como a mulher que quer compromisso vê sua posição enfraquecida quando o aborto é uma alternativa normal e esperada, o mesmo acontece com o homem que quer envolvimento, obrigação, uma expectativa que ele pode cumprir –e a quem, em vez disso, é dito, em todos os casos em que a mulher optar pelo aborto, para simplesmente esquecer qualquer angústia ou instinto paterno, para se desligar inteiramente da vida que ele ajudou a criar.

O homem confrontado com o que numa cultura diferente seria a obrigação mais importante de sua vida ouve, na nossa, que é no máximo um fardo econômico, uma questão de pagamento de pensão alimentícia –e, se ele tiver sorte e ela optar pelo aborto, nem mesmo isso.

Pode-se contrapor que se o aborto é uma liberdade fundamental, um requisito da igualdade, nada disso deveria importar. Qualquer custo para a prosperidade e a estabilidade social é superado pela necessidade de emancipar as mulheres, e nós só temos que aceitar que ainda estamos tateando no caminho para uma alternativa estável à ordem patriarcal que derrubamos com razão (ou ainda não terminamos de derrubar).

Mas essa é apenas a versão do direito ao aborto no argumento de Walther –que às vezes a Justiça exige aceitar a desestabilização e a desordem– e deveria ser reconhecida como tal, em vez de ser disfarçada como uma defesa da prosperidade e do crescimento burgueses.

Uma réplica mais sutil poderia indicar que nada é simples aqui. Assim como a revolução sexual original foi multifatorial, a atual alienação dos sexos não pode ser somente sobre o aborto; é moldada por tudo, desde o efeito da globalização nos salários dos trabalhadores de colarinho azul até o efeito da internet na atual vida social dos jovens adultos. O artigo de Yellen-Akerlof-Katz pode ter sido uma análise plausível, mas não pretendia medir um efeito "Roe vs. Wade" exato, separado de todas as outras forças que moldam o cenário socioeconômico moderno. E, como argumentaram Yellen e Akerlof ao tirar conclusões favoráveis ao direito ao aborto, não se pode assumir que tal efeito poderia ser revertido apenas pela reversão da política do aborto; não sabemos quanto da mudança foi promovida só pela pílula anticoncepcional, ou que efeito teriam as leis antiaborto quando ocorresse a transição cultural que eles descrevem.

Mas também não se pode presumir que o caminho após a década de 1960 é inevitável e impossível de redirecionar, que estamos no único caminho que uma sociedade economicamente avançada pode seguir. Não se pode insistir que os benefícios econômicos imediatos de interromper uma gravidez devam ser contados a favor de Roe vs. Wade, mas qualquer uma das mudanças negativas maiores no acasalamento, casamento e criação de filhos associadas ao aborto não pode ser considerada parte da discussão.

Aqui, o próprio utopismo da causa antiaborto, seu objetivo de uma sociedade para a qual ainda não existe um modelo definido, pode ser um recurso analítico, enquanto o realismo praticado no lado dos direitos ao aborto pode funcionar como desculpa para os aspectos infelizes do status quo. Se você se encaixa totalmente nos paradigmas dominantes de nossa sociedade, então parece que o aborto deve ser bom para a economia; a mulher que faz um aborto tem mais tempo e dinheiro para sua própria educação, o nascituro poderia ter sido pobre e caro para o Estado assistencialista —e assim por diante.

Mas saia dessas estruturas, tente olhar na direção mais ampla do mundo desenvolvido –até mesmo tente se imaginar aprovando os julgamentos da História com H maiúsculo sobre nossa sociedade de um ponto de vista privilegiado daqui a alguns séculos. O que se pode ver dessa perspectiva é um mundo em que o crescimento econômico desacelerou sob o domínio do liberalismo social e várias formas de estagnação se instalaram. Um mundo claramente obscurecido pelos efeitos da ruptura familiar e da atomização social, com a solidão e o desespero perseguindo igualmente jovens e velhos.

Um mundo rico, cujo principal problema econômico nas próximas gerações é o envelhecimento da população, o declínio da população, cidades sem filhos, interiores vazios e uma vasta pirâmide demográfica invertida sobre os ombros dos jovens.

E então você também veria, desse ponto de vista do arco da história, as vozes mais influentes em nossa sociedade envelhecida, infeliz e sombreada pela estagnação –as mais educadas, apaixonadas e articuladas, as mais conscientemente dedicadas à ideia de progresso– comprometendo-se e reafirmando-se com a visão de que nada é tão importante quanto continuar garantindo que centenas de milhares de vidas não nascidas possam ser encerradas no útero todos os anos. Concluo esta série com um apelo aos leitores assim comprometidos. Dando o devido peso a todas as razões pelas quais vocês se apegam tão firmemente a esse princípio, rogo-lhes que considerem que estão cometendo um erro.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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