Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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Afinal, o poliamor é possível em tempos de #MeToo e Judith Butler?

Liberdade sexual 'ética' que surgiu em contraposição à libertinagem estilo Playboy faz sentido na teoria, mas não na prática

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The New York Times

A morte de Hugh Hefner e o início da era #MeToo coincidindo em meados de 2017 pareciam marcar um ponto de inflexão na história da liberdade sexual nos Estados Unidos.

Finalmente, saiu de cena a utopia sexual positiva de Hefner, a alegria de "não há pudores aqui" e a promiscuidade a que se aspirava e que ligava sua "filosofia Playboy" às comédias eróticas dos anos 1980, revistas masculinas dos anos 1990, as desculpas para o priapismo de Bill Clinton e o avassalador triunfo cultural da pornografia.

Manifestação do movimento #MeToo em Hollywood, Los Angeles - Lucy Nicholson - 12.nov.2017/Reuters

Entrou o feminismo #MeToo, fundado na indignação com o estupro e a violência sexual, mas inclinado a considerar a cultura de "ficar" como uma zona de perigo, o desejo masculino como uma força que necessita correção e controle, e o simples consentimento como um critério insuficiente para a moralidade sexual.

Desde o início, o movimento #MeToo foi criticado, geralmente de uma perspectiva libertária ou liberal clássica, por reviver impulsos socialmente conservadores sob uma roupagem feminista e progressista.

Mas foi justamente essa mistura que tornou o movimento interessante. O #MeToo pegou o que costumava ser entendido como uma crítica conservadora da revolução sexual —que enfatizava as maneiras como o "hefnerismo" facilitava a vida para canalhas e libertinos, forçando jovens mulheres a aceitar expectativas sexuais masculinas em nome da liberdade— e prometeu fazê-la servir a uma visão mais progressista e igualitária.

A questão, sete anos depois, é se essa visão realmente existe —se a liberdade pode encontrar um padrão para a moralidade sexual que seja melhor para o florescimento humano do que o simples consentimento, e um mecanismo para conter o mau comportamento sexual que seja mais eficaz do que a ênfase tradicional na monogamia e castidade.

Para ilustrar em que pé está a busca por essa visão, considere três reportagens de capa recentes da revista New York.

A primeira é um perfil de Andrew Huberman, um neurocientista pop, podcaster e influenciador masculino em geral. A autora, Kerry Howley, faz um grande trabalho escavando as múltiplas limitações de Huberman —como coach de estilo de vida e guru médico (não confie na eficácia dos suplementos que ele endossa!), amigo e colega (não espere que ele cumpra suas promessas!), e especialmente como namorado e amante (ele controla; ele mente; ele sai com seis mulheres ao mesmo tempo e trai todas elas).

O retrato de uma figura como Huberman seria interessante sob quaisquer circunstâncias. Mas o foco em sua vida sexual, o depoimento detalhado de namoradas supostamente maltratadas, marca o texto como um perfil feito pós-#MeToo.

Huberman não é acusado de nenhum crime; ao que tudo indica, ele é só um idiota controlador que trai as namoradas. Mas esse tipo de mau comportamento é tratado como essencial para qualquer julgamento de sua vida pública. Seja quais forem as novas regras do sexo, está claro que devemos julgar o estilo de vida do canalha como retrógrado, deplorável e perverso.

Então, que tipo de estilo de vida é preferível? Bem, aqui podemos voltar algumas edições, para uma reportagem de capa da mesma revista de janeiro, sobre poliamor. O texto traz tanto um perfil de uma pessoa específica que pratica o poliamor como um abrangente guia para "abrir" seu relacionamento ou casamento.

Quando o perfil de Huberman foi publicado, alguns nas redes sociais sugeriram que havia um paradoxo entre publicar um texto tão crítico a um homem que mantém seis namoradas ao mesmo tempo alguns meses depois de celebrar justamente esse tipo de relacionamento múltiplo. Na verdade, as duas reportagens são totalmente coerentes.

A crítica implícita ao professor de neurociência não é apenas que ele tem relações sexuais com muitas mulheres diferentes, mas que o faz de forma enganosa e egoísta —em vez de seguir o tipo de processo aberto e complexo de negociação que é eticamente necessário para ser o tipo de pessoa que tem relações sexuais com seis pessoas diferentes ao mesmo tempo.

Essa ideia de sexo como processo, com o ato sexual em si inserido em uma espécie de "melhores práticas" de diálogo e interação, parece ser onde a liberdade se estabeleceu, por enquanto, em sua tentativa de criar uma cultura sexual pós-hefneriana.

Assim, a fascinação geral com o poliamor, manifestada em inúmeros artigos de tendência, livros e ensaios, não é só uma questão de chocar o público. Também reflete um desejo de manter a ética sexual permissiva que homens como Hefner usaram para seus próprios fins exploradores, mas torná-la mais saudável e terapêutica, mais amigável às mulheres e igualitária, mais segura e mais estruturada.

O tamanho do problema de tentar estabelecer formas ditas "seguras" de liberdade sexual é apontada por uma terceira reportagem de capa da New York, a mais controversa de todas. Trata-se de "Liberdade do Sexo", recente ensaio de Andrea Long Chu, uma escritora transgênero, que defende permitir que crianças com disforia de gênero passem por intervenções como bloqueadores de hormônios e mastectomias, independentemente das análises médicas ou psicológicas sobre de onde vem o desejo de mudar de sexo.

Contra os céticos liberais que enfatizam a lacuna entre nossa compreensão da disforia de gênero e a extensão dos tratamentos oferecidos a menores, Chu insiste que o direito de escolher seu sexo (o que implica um direito de não passar pela puberdade) é tão inalienável quanto qualquer outro e não pode ser subordinado a algum tipo de concepção médico-terapêutica rígida do que realmente está no melhor interesse da criança ou adolescente disfórico.

"Não importa de onde venha esse desejo", escreve Chu sobre, por exemplo, a preferência de um adolescente de 12 anos por ter um corpo masculino em vez de um feminino, apesar de ter dois cromossomos X. Se isso reflete um conceito terapêutico intitulado "identidade de gênero" ou simplesmente os desejos únicos do indivíduo, se leva à felicidade ou ao arrependimento ou a ambos, em uma sociedade livre, a escolha pessoal deve ser honrada, a puberdade indesejada prevenida, o direito de escolher seu sexo, preservado.

O que Chu está atacando, em nome de uma liberdade mais radical, é a maneira como a transição da juventude tem sido apresentada ao público ao longo da última década —como uma ciência certa, "resolvida", como uma prática terapêutica recomendada e respaldada por estudos cuidadosos e expertise confiável, na qual o desejo tenso e transformador de um adolescente pode ser concedido desde que as salvaguardas corretas estejam em vigor.

Isso corre em paralelo com a maneira como o poliamor é frequentemente apresentado: como a forma segura de se libertar, a promiscuidade aprovada pelo terapeuta, com potenciais riscos e arrependimentos mais limitados do que se a libido individual fosse simplesmente solta.

O problema disso, no caso das questões transgênero, é que as instituições liberais, especialmente na Europa Ocidental, estão cada vez mais céticas sobre a estrutura científico-terapêutica na qual a transição está ocorrendo. A ciência não está realmente resolvida; as salvaguardas não são necessariamente eficazes; a decisão de interromper a puberdade ou prosseguir para a modificação cirúrgica carrega todos os tipos de riscos possíveis.

Nesse caso, a corrente que defende a liberdade não pode simplesmente prometer o que vem tentando oferecer desde o #MeToo: uma forma absoluta de liberdade individual envolta em uma carapaça protetora de gerenciamento especializado e processo terapêutico.

Você pode ter uma cultura de forte restrição moral, uma ordem conservadora que impõe normas que limitam intencionalmente a liberdade humana —permaneça fiel ao cônjuge escolhido, viva com o corpo que lhe foi dado. Ou você pode ter o tipo de cultura que maximiza a liberdade, removendo limites e restrições, mas criando novos arrependimentos, novos tipos de sofrimento, novos perigos para os vulneráveis e os mais fracos.

O que provavelmente não se pode ter é o mundo onde Judith Butler se une à Associação Médica Americana em um regime estável de segurança permissiva ou onde o poliamor "ético" transforma o impulso de trair seu cônjuge em um ato socialmente benéfico. Ao menos esse mundo permanece uma terra desconhecida —fervorosamente teorizado, mas até agora fora de alcance.

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