Mapa do vinho brasileiro se expande além do Sul e quase metade do país já produz a bebida

Diversidade de terroirs proporciona ao consumidor encontrar mais estilos da bebida

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Vinhedo da vinícola Terranova, do grupo Miolo, em Casa Nova (BA) Divulgação

São Paulo

As gaúchas Deisi da Costa, 33, e Michele Zanella Cordeiro, 30, mal se conheciam quando decidiram fazer uma viagem de carro juntas, que levaria nove meses, para conhecer as vinícolas de todo o Brasil. Apresentadas poucos dias antes em um jantar, tinham pouca coisa em comum.

Deisi havia sido eleita "melhor sommelier do Rio Grande do Sul", enquanto Michele, embora formada tecnóloga em enologia, estava afastada da área havia anos.

A vinícola Terroir Pantanal fica na Serra de Maracaju, no distrito de Camisão, em Aquidauana, na entrada do Pantanal do Mato Grosso do Sul - Divulgação

"Mas, alguns minutos de conversa foram suficientes para percebermos que pensávamos de maneira muito parecida", conta Michele. "Saímos do jantar já sabendo que queríamos montar um projeto juntas."

Na primeira reunião, decidiram por uma expedição cultural batizada de "Vou de Vinho - Uma Experiência entre Vinhos e Vinhedos", e que resultou em um livro a ser lançado na feira Wine South America, em setembro próximo, em Bento Gonçalves (RS).

A viagem durou de setembro de 2021 a junho de 2022 e passou por cem vinícolas em dez estados e no Distrito Federal. Um projeto divertido, garantem ambas. "A dor de cabeça foi escolher quais seriam as cem vinícolas. Só no Rio Grande do Sul há mais de 700", diz Deisi.

Houve um "boom" na produção de vinhos finos de qualidade por todo o país nas duas últimas décadas. Com isso, o mapa vitivinícola brasileiro sofreu uma expansão e ganhou uma enorme diversidade de terroirs.

Até o início dos anos 1980, a produção comercial de vinhos finos se concentrava exclusivamente na Serra Gaúcha.

"Nessa época começaram a surgir algumas iniciativas na Campanha Gaúcha, na Serra do Sudeste (RS) e no Vale do São Francisco, na divisa da Bahia com Pernambuco", conta o pesquisador da Embrapa Uva e Vinho Jorge Tonietto, responsável pelos processos de Indicação de Procedência e Denominação de Origem.

"Logo vieram Santa Catarina e Campos de Cima (RS). E, nos anos 2000, chegaram os vinhos de inverno. Aí foi uma explosão. Em 2020, identificamos 12 núcleos de produção de vinhos de inverno com características próprias, um terroir único que, no futuro, pode vir a ser indicações de procedências. É tudo muito dinâmico. Se naquela época tinham 12, hoje já deve ter mais."

Em São Paulo e Minas Gerais, por exemplo, eles identificaram sete regiões vinícolas, sendo a Serra da Mantiqueira a região comum aos dois estados. Lá ficam Andradas e São Bento do Sapucaí, por exemplo.

São Paulo ainda tem vinhedos na Alta Mogiana (Ribeirão Preto), na região Leste-Nordeste (Espírito Santo do Pinhal) e na região Sudoeste Centro-Sul (Itaí). Já Minas tem produção de vinhos finos no Sul (Cordislândia), na Alta Paraibana (Serra da Canastra) e no Vale do Jequitinhonha (Diamantina). Em todas essas regiões, impera o vinho de inverno.

Mas o que são os vinhos de inverno? O Brasil é o único país do mundo que tem três sistemas de viticultura diferentes: a tradicional, a tropical e a de inverno (veja arte).

A viticultura tradicional é aquela praticada desde a antiguidade em regiões onde a planta produz frutos no verão e entra em dormência no inverno. Por questões climáticas, no caso das uvas europeias, muito sensíveis às chuvas, esse sistema sempre foi difícil de ser implantado em boa parte do país —chove demais na época da colheita.

Um sistema de dupla poda desenvolvido pela Epamig tornou possível colher a uva no meio do ano em regiões onde o inverno é seco, faz calor de dia e frio à noite como São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia, Goiás e Distrito Federal.

E, em breve, teremos vinhos de colheita de inverno também no Mato Grosso e no Mato Grosso do Sul.

"Agora a gente precisa entender quais as variedades certas para cada microrregião", diz o enólogo Daniel Panizzi, presidente da Uvibra (União Brasileira de Vitivinicultura). "Quais se adaptam melhor. Qual o melhor manejo. Só o tempo vai nos dizer isso."

Cada pequena região tem um terroir diferente e rende um vinho único. "Falar de Minas, por exemplo, é falar de um país inteiro, com diferentes regiões e diferentes climas", diz o enólogo Cristian Sepúlveda da Vinícola Terra Nossa (Espirito Santo do Pinhal), que dá consultoria para projetos em vários estados.

"Podemos citar lugares de altitude como Caldas, ideal para espumantes. Ou falar de São Gonçalo de Sapucaí, com clima mais ameno e solos pesados, e sua vocação para vinhos tintos premium. Ou, ainda, de Passos de Minas, onde os solos são pesados e o clima, mais quente, ótimo para tintos encorpados, como cabernet sauvignon."

A disseminação de vinhedos pelo país não pode ser explicada exclusivamente pela criação da tecnologia de colheita de inverno. Muito se deve também ao efeito cascata que iniciativas de sucesso provocam.

Tanto que em lugares onde não é possível colher no inverno porque faz frio demais no meio do ano, como a Campanha Gaúcha, a Serra Catarinense e Curitiba, também houve uma proliferação de empreendimentos.

"Atualmente a produção de vinhos finos em Santa Catarina ultrapassa um milhão de garrafas ao ano", conta a sommelière Néa Silveira.

"São 250 hectares de vinhedos, distribuídos por vinícolas de pequenas produções. Tudo elaborado de forma artesanal, privilegiando a qualidade."

Várias dessas vinícolas são frutos de investimentos pesados de empresários de outras áreas apaixonados pelo vinho.

No Nordeste, por sua vez, o que prevalece é a viticultura tropical. Principalmente no semiárido, onde chove pouco. Ali a irrigação é necessária, não há período de dormência e são duas colheitas por ano.

Por ali também se nota uma expansão da produção, com projetos em Alagoas, Sergipe e Paraíba. "A expansão é menor do que no Sudeste e no Centro-Oeste, porque o valor agregado dos vinhos do semiárido é mais baixo", diz o pesquisador da Embrapa Giuliano Elias Pereira, responsável por muitos anos pelas pesquisas no Vale do São Francisco.

A região produz muito espumante de entrada, vinhos jovens, com aromas de frutas tropicais que, apesar de serem de consumo rápido, são honestos e têm preços que agradam muita gente. Isso também é diversidade.

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