Descrição de chapéu
Folha, 100 Cartas para o futuro

Desejo para 2031 o reconhecimento do negro como um ser complexo

Enquanto não houver coexistência pacífica, justa e igualitária, não haverá futuro

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Matheus Moreira

Repórter de Cotidiano e autor do blog Vidas Negras Importam. Já integrou a equipe de Interação e de Ciência. É cofundador do Prêmio Neusa Maria de Jornalismo.

Este texto faz parte da série Cartas para o Futuro, em que colunistas, repórteres e editores da Folha imaginam os cenários das suas respectivas áreas de atuação em 2031.

19 de fevereiro de 2021.

Caro leitor,

Em 2015, um jovem negro desce no ônibus na avenida Francisco Morato, importante via da capital paulista, por volta das 23h, próximo à Chácara do Jóquei, logo após uma senhora com seus aproximados 50 anos e branca. Ambos caminharam na mesma direção, ela à frente, desconfortável. Depois de alguns passos, a senhora se virou e disse “eu não tenho nada. Não tenho nada”, temendo um assalto. O jovem, que chegava tarde na casa da namorada apenas para dar oi após o dia de aulas na faculdade de jornalismo, chorou ao passar pela porta.

A situação descrita é real. Aconteceu em 2015, mas também em 2016, quando outro jovem negro de tranças corria atrás do seu ônibus que já saía do terminal Sacomã. A polícia no local o parou por achar que ele havia assaltado uma moça branca que corria logo atrás dele e afirmou depois que ambos pegavam o mesmo ônibus e que não havia sido assaltada ou incomodada por ele.

Também aconteceu em 2017, em 2018, 2019, 2020 e nos anos e décadas que os antecedem. O Brasil é um país estruturalmente racista em 2021 e se nada mudar, o será daqui a 10 anos. Esse racismo, levado ao extremo, causa a morte de cinco pessoas negras por hora, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2020.

Ilustração mostra braço e mão pretos em fundo branco com um olho no meio da palma
É convidativo acreditar que os racistas são sempre os outros, em especial quando o outro é conservador - Catarina Pignato

Para 2031 desejo que que negros possam caminhar na mesma calçada que uma pessoa branca sem que ela acelere o passo ou atravesse a rua por medo. Que jovens negros, homens e mulheres, tenham as mesmas oportunidades que os jovens brancos. Desejo que mais jornalistas negros como eu estejam nas Redações de jornais e telejornais. Que negros possam ter guarda-chuvas pretos sem que o objeto seja confundido com um fuzil. Que pais negros possam andar com a família de carro sem serem alvejados com 80 tiros disparados pelo Exército.

Sobretudo, desejo que as demais Ágatha, os Marcos Vinícius, os João Pedro, as Emily e as Rebecca possam chegar à próxima década com vida. Porque as vidas negras importam.

Que os próximos governos federais, estaduais e municipais sejam não somente sensíveis ao sofrimento e dificuldades dos povos negros do Brasil, mas sim compostos por negros que possam ampliar o debate racial que se faz urgente no país para que todas as raças, etnias e grupos, como os indígenas, os amarelos e os imigrantes e refugiados, possam ter uma vída plena de direitos e finalmente possam ser humanos aos olhos da lei e dos homens.

É convidativo acreditar que os racistas são sempre os outros, em especial quando o outro é conservador, mas é um erro crer que a esquerda política e os progressistas não são racistas. Basta olhar para os quadros políticos dos principais partidos de esquerda para ver que os negros não são tão presentes quanto são na população brasileira.

Que as Ágatha, os Marcos Vinícius, os João Pedro, as Emily e as Rebecca possam chegar à próxima década com vida

Matheus Moreira

Repórter da Folha

Há, entre os diversos grupos e movimentos negros, a sensação de que a esquerda, assim como a direita, não age pelos negros, mas sim que os usa para ganhar apoio necessário dessa parcela brasileira tão expressiva.

Há também os que discordam disso, que acreditam que há apenas boa intenção na esquerda. E é natural que essa discordância exista, porque pessoas negras não se movem como abelhas numa colmeia. Cada ser humano negro é um universo particular, assim como cada branco, indígena, amarelo, etc.

É possível que ambos estejam certos, porque as pessoas de esquerda também são indivíduos complexos, únicos, com discordâncias.

Entre os desejos para a próxima década está, definitivamente, o reconhecimento do negro como um ser complexo, cada qual com seus sonhos, desejos angústias e alegrias.

Que ao reler este texto daqui a dez anos possamos elencar avanços como numa lista de coisas a fazer. Mas não sejamos ingênuos, o racismo no Brasil existe desde sua fundação, não será extinto nos próximos dez anos, mas uma década é suficiente para plantarmos as sementes para um novo ecossistema diverso e equilibrado. Enquanto não houver coexistência pacífica, justa e igualitária, não haverá futuro.

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