Em 1965, Ruth Guimarães escreveu coluna contra fim das feiras livres

Poeta, tradutora e autora de "Água Funda" foi colunista da Folha na década de 1960

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A escritora Ruth Guimarães (1920- 2014) publicou seus primeiros versos ainda aos dez anos de idade, nos jornais A Região e a Notícia, publicações de sua cidade natal Cachoeira Paulista (SP).

"Mulher, negra, pobre e caipira – eis as minhas credenciais”, foi como Ruth Guimarães se descreveu em 1987, quando seus versos publicados em jornais do interior já haviam se multiplicado e desdobrado em romances, traduções, crônicas, contos e textos de não-ficção, baseados em suas pesquisas do folclore e da cultura brasileiros.

retrato em preto e branco de mulher negra, de óculos
A escritora, poeta e tradutora Ruth Guimarães - Arquivo Pessoal

Formada em letras clássicas pela FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas) da USP, a escritora transitava, com suas pesquisas e textos, entre o canônico e o popular, o histórico e o cotidiano. Traduziu contos de Balzac e Dostoievski, e foi autora de um dicionário de mitologia grega; escreveu o romance "Água Funda" (1946), que afirma ser um romance de "acontecências", e o livro "Lendas e Fábulas do Brasil" (1989).

Tornou-se, assim, uma das primeiras escritoras negras a ter projeção nacional no Brasil.

"A história negra está por fazer, a literatura negra está por fazer, a poesia está por fazer", afirmou Ruth em 2007, em um evento promovido pelo Museu Afro Brasil, "Eu, depois de velha, resolvi pesquisar e, para isso, eu estou contando e escrevendo histórias, tentando fazer um fabulário brasileiro".

Ruth Guimarães foi colunista da Folha ao longo da década de 1960. Em seu espaço no jornal, publicava crônicas semanais sobre as "acontecências" nacionais, misturando o fazer literário ao olhar jornalístico.

Como parte da série Colunas Eternas, duas crônicas de Ruth são agora publicadas. A primeira, "Segunda sem feira" propõe um passeio pelas feiras livres para explicar por que não podem deixar de existir, pois são o "método democrático de negociar" e uma forma de praticar "o analfabetismo mais gostoso e brasileiro".

A segunda é uma crônica de viagem, em que a autora nos mostra como descobrir lugares novos é também uma forma de viajar no tempo e contemplar nossas origens e ancestralidade.

Leia abaixo os dois textos na íntegra.

Segunda sem feira

10 de janeiro de 1965

Há muito tempo que estão falando em acabar com as feiras, uns desejando e outros temendo que acabem mesmo. Não sei que providências foram ou não foram tomadas —elas estão aí. Inicia-se agora uma espécie de hiato, a extinção desse comércio livre às segundas-feiras, para descanso da companhia, isto é, dos feirantes, que não estão pleiteando descanso nenhum.

Um até respondeu a uma pergunta que não lhe foi feita, dizendo que o descanso pode ser espontâneo, e ele não vê motivo para que seja compulsório.

Os jornais falam da necessidade do intervalo de um dia, falam de leis trabalhistas, e também se noticia que se está em remanejamento. Aliás, a tal história do descanso das segundas-feiras, como nos teatros, é medida de caráter experimental. Remanejamento não sei o que é, talvez o meu Aulete dê. Caráter experimental, já vi muito disso, e alguns que duraram anos e anos a fio.

Os argumentos contra as feiras são principalmente três: primeiro que os preços são os mesmos das quitandas, segundo que atravancam as ruas, e depois a desordem que deixam. Oh! Que sujeira, que coisa desagradável, que cheiro de peixe! E quanto lixo, folhas e cascas, depois do meio-dia!

Mas querer acabar com as feiras por causa da sujeira resultante, ora essa! Então não temos prefeitança, nem caminhões da limpeza, nem água, nem lixeiros?

O primeiro argumento a favor das feiras é que se trata de um método democrático de negociar. O povo vendendo para o povo. Comprar na feira é praticar o analfabetismo mais gostoso e brasileiro que possa haver. Errar nas contas, no troco, pechincar, reclamar, divertir-se. As notas fiscais me tiraram muitas ilusões. Eu estava certa de que os feirantes não sabiam nem ler.

E a delícia completa de poder escolher? O mais caro, o mais barato, o mais verde, o mais doce, o mais fino, o mais viçoso, o mais engraçado, o mais claro, o mais miúdo, a pilha mais alta, o arranjo mais perfeito. E que lindos pregões, sonoros, em vozes fortes de tenor e de barítono, que lindos pregões!

Tudo isso em meio de uma ruidosa alegria matinal, livre, lírica, todos falando alto, à vontade, sem inibição nenhuma, o sol nos cabelos e os olhos repousando na abençoada fartura das pilhas coloridas de frutas, e a desajorada, descomedida abudância de verduras frescas, tão verdinhas!

Lugar de ver mulher risonha, de rosto lavado, com os cabelos apanhados de qualquer jeito, nesse gracioso despenteado de que os cabelereiros todos têm o segredo hoje em dia. Há muita pobre coitada cujo único passeio é ir a feira (às vezes também dão um pulinho até a maternidade).

Pois é. Estão falando em acabar com as feiras livres. Mas me parece que nós, as donas de casa, ainda não fomos consultadas a respeito e ninguém ignora que somos os ministros das Finanças.

​Viagem no Tempo

12 de março de 1966

Parodiando Wells, é só acionar uma alavanca, isto é, comprar um bilhete na estação rodoviária, para, num salto súbito, viver a maravilhosa aventura no tempo. E, para completar a ilusão, quando chegar ao século passado, não ler os jornais.

São Luis do Paraitinga ficará por muitos anos ainda como está, com seu ar de velhinha doce que se embala na rede de tabôa, amarrada com embira. Tem os prédios antigos, lindos, coloniais, com os janelões imensos e um mistério, um silêncio, uma paz, um rio que desliza muito manso, uns verdes em torno, à espreita, e uma gente que fala cantando sem pressa.

Lá para trás, fica a serrania nos longes. Serra-do-mar. Antes de chegar, numa estrada que é direitinho um sacarrolha, está o ponto mais alto de toda a região, no espigão, que é um esplendor. A cidade é boca de sertão, é um escoadouro de produtor sertão-dentro, um ponto de encontro de roceiros calados, vindos de não sei que fins do mundo, de grotões desertos, de vertentes onde Judas perdeu as botas.

As coisas que esses homens e mulheres silenciosos aprenderam! Como sabem tecer e trançar balaios e esteiras e redes e coros e cestos e peneiras. E modelar o barro, como oleiros primitivos, afeiçoando-os mão, a modos de vasos e panelas, de figurinhas de presépios, de santos de feição ingênua. As peças de caxixi, espécie de miniatura de vasilhas de barro, são muito apreciadas nas cidades, para servirem de cinzeiro e de enfeites. E pelas crianças então, lá mesmo no povoado, sossegado, nem se fala.

Dia de semana, o mercado é um deserto. O piso quebrado, um chafariz todo de ferro, caído a um canto, um ar de abandono. Dia de "saudo" ou de domingo, vira formigueiro, de formiga-correição, que é a mais desinquieta... Enche de gente que é um despropósito, uma imundícia. Em torno dele, os burros filosofam de manso, mastigando milho do bornal.

Os jacás e balaios vêm cheios de cada coisa engraçada, gente! Tanta coisa engraçada, e fora de moda, aparece vinda do sertão. A burrada com as bruacas e os sirigotes. Tropeiro de cócoras ao pé do seu fogão de três estacas, onde ferve no ar a panelinha preta de três pés. Aparecem umas velhinhas e umas mulheres mais novas, sentadas no silhão de banda. O bladeiro fica de cócoras negociando.

Chegar a São Luís é como ter viajado no tempo para trás. Ainda estão ali, com a mesma feição e as mesmas cores, o casarão de 100 anos e a casa onde nasceu Osvaldo Cruz. E sobrados e mais sobrados, subindo cansadas ladeiras.

E aquela rua calçada de grandes pedras irregulares. Como o seu avô ou bisavô, há 100 ou duzentos anos, a oleira Antoninha Mulata modela o barro; como seu avô bugre, o balaieiro corta o bambu e trança as peneiras; como a sua gente sertaneja, Benedito Corote tece a palha. Clementina Santeira trabalha a tabatinga para fazer os santos. É desses artesanatos, velhos como o homem no mudo, que vive muita gente na velha-velha cidade. Duvido que qualquer deles saiba que existem atos institucionais e outros frioleiras. Nem sabem se o Amazonas fica para lá ou para cá de Taubaté. Não vivem menos nem pior por isso. Trazem-nos a pureza, o encanto, o indescritível encanto das artes primitivas.

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