'Tive verdadeiro choque ao ler' Lispector, escreveu Antonio Candido em 1944

Crítico literário foi colunista da Folha da Manhã de 1943 a 1945

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O crítico literário, ensaísta, professor e sociólogo Antonio Candido (1918-2017) foi colunista da Folha da Manhã de 1943 a 1945. No início de 1960, as Folhas da Manhã, da Tarde e da Noite se uniram sob um só título, Folha de S.Paulo.

Na seção Notas de Crítica Literária, Candido tanto comentava livros recém-lançados quanto elaborava reflexões densas sobre a literatura nacional.

Seu primeiro livro, "Brigada Ligeira" (1945), reúne os textos publicados no jornal. Nas décadas seguintes, ele lançou obras fundamentais da crítica do país, como "Formação da Literatura Brasileira" (1964) e "Dialética da Malandragem" (1970).

retrato em preto e branco de adolescente em rua de paralelepípedos. ele veste terno, gravata e blazer e tem os cabelos escuros penteados com muito cuidado. ele está sorrindo, com a mão direita no bolso e faz pose descontraída
O crítico literário Antonio Candido, aos 18 anos, em Poços de Caldas (MG) - Reprodução

Escritores como Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto e Guimarães Rosa, hoje canônicos e à época estreantes, tiveram seus livros analisados e celebrados pelo crítico carioca em suas Notas de Crítica Literária.

Como parte da série Colunas Eternas, que celebra os 100 anos da Folha recuperando textos de importantes colunistas do jornal, republicamos o texto "Língua, pensamento, literatura".

Em princípio, o ensaio discute o que na língua portuguesa, afinal, "faz da nossa uma literatura de escritores sem inteligência real e sem criação estilística".

Mas ao fim, tratava-se do anúncio de um livro que desencadeara toda a reflexão: "Perto do Coração Selvagem", primeiro romance de Clarice Lispector. O livro chocou o crítico por sua ficção que "não é um exercício ou uma aventura afetiva, mas um instrumento real do espírito, apto a nos fazer penetrar em alguns dos labirintos mais retorcidos da mente".

No artigo seguinte, afirma, iria explicar melhor "a que ponto a escritora conseguiu o seu intento".

Notas de Crítica Literária - Língua, pensamento, literatura

25.jun.1944

É sabido que uma das tragédias de quem escreve em português é o fato da nossa ser uma língua que, a bem dizer, ainda não foi suficientemente polida pelo pensamento. O português ainda não foi suficientemente pensado, como as outras línguas europeias.

Ora, os vocábulos são como os seixos dos rios. A princípio, duros e ásperos calhaus cheios de pontas e arestas. A água, todavia, passa longa e pacientemente sobre eles. Os anos sucedem aos anos, e os seixos vão se arredondando, as suas anfractuosidades se atenuam, toda a pedrinha como que amacia e se torna um pequeno bloco polido, doce ao contato e à vista.

Também as palavras sofrem esta erosão: no seu caso, da corrente do pensamento.

Quando lemos um escritor como André Gide, sentimos que atrás dele houve outros há séculos e séculos, que vieram lentamente desbastando a expressão das suas durezas, aplicando-a afincadamente a exprimir um pensamento sempre à busca de maior e maior clareza, maior e maior significação.

Para expor seu método, Descartes foi obrigado a disciplinar sua língua, metendo-a em certas veredas pouco frequentadas antes; como Pascal; como Voltaire —no desejo de fazer da palavra um instrumento expressivo e adaptado às necessidades elocutivas.

Em português, praticamente não tivemos um só pensador que, dotado de originalidade, fosse obrigado a dobrar o idioma às sutilezas do seu pensamento. Os grandes mestres do pensamento português e brasileiro pensam de segunda mão, e a sua linguagem concorda em gênero e modo...

Não temos, sobretudo, esta coisa rara e feliz: o pensamento literário —característicos dos escritores que, não sendo filósofos nem cientistas, possuem contudo um certo cabedal de ideias cuja expressão depende estritamente da beleza ou da justeza vocabular.

Não há um Montaigne, um Carlyle, um Nietzsche, um Leopardi em língua portuguesa. Debalde [em vão] buscaríamos um Ganivet, um Unamuno, um Matthew Arnold, um Frederico Schlegel.

Não encontraríamos um sistema literário de pensamento dotado de expressão própria. Teríamos, de um lado, o cientista ou o filósofo a fazer retórica; de outro, o literato a se tornar sentencioso.

Entendeu-se por espírito filosófico, em Portugal e no Brasil, o do indivíduo que faz literatura em torno de certos grandes chavões do pensamento. Ora, um literato nem sempre pode, no domínio das ideias, apresentar a originalidade de um verdadeiro pensador. O que faz a sua grandeza específica é, numa forma bela e conveniente, dar valor literário, dar um tom sui generis, ao que nas mãos do filósofo seria expressão técnica do pensamento.

Assim, em Anatole France não encontramos talvez uma só ideia original. O que encontramos é uma vitalização das ideias, uma apresentação estética de certos lugares comuns do pensamento francês e clássico, que os torna valores profundamente literários e lhes dá categoria mais humana e mais comunicativa.

No Brasil, temos fenômeno parecido em Machado de Assis. No sr. Ciro dos Anjos encontramos qualquer coisa de mais polido e integrado —o pensamento recebendo de fato um tratamento estético.

No gênero ensaio e reflexão, é preciso confessar que somos pobres paupérrimos, não passando além das banalidades dolorosas do malogrado Vicente Licino Cardoso ou da sopa fria do sr. Gilberto Amado —para não falar dos remeleixos do professor Afrânio Peixoto.

Esta falta de língua pensanda e de pensamento bem vestido, num país em que o pensamento se reduz ao ribombo da palavra, faz da nossa uma literatura de escritores sem inteligência real e sem criação estilística.

Um sr. José Lins do Rego é um grande romancista, não há dúvida, e o sr. Jorge Amado talvez ainda seja maior. Nada ficam devendo aos múltiplos Steinbecks de todos os hemisférios.

Mas, justamente como todos os Steinbecks [John Steinbeck, escritor dos EUA, ganhador do Nobel], lhes falta aquela funda densidade de pensamento, aquela capacidade de pensar com a sensibilidade e sentir com a inteligência que faz o romancista de primeira água, o romancista que não dissocia o pensamento da sensibilidade nem vê o mundo alternadamente com uma ou com outra, mas segundo um único movimento de compreensão, que é a maturidade do pensamento e força da criação, é profundidade psicológica e é espontaneidade afetiva.

Lhes faltando esta posição rica e fecunda, lhes falta forçosamente a justeza de expressão, a capacidade de fazer da língua um instrumento de pesquisa e de descoberta. A sua, como a dos demais romancistas brasileiros e de quase todos os outros modernos, pode ser muito plástica, muito bonita, mas pouco ajuda o leitor a penetrar melhor e mais fundo na vida e nele mesmo.

Esta força admirável, que é pensamento afinado e sensibilidade penetrante —um enriquecendo o outro sem cessar—, depende de uma tradição histórica, que compreenda elementos mais opulentos que os das magras literaturas portuguesa e brasileira, na primeira das quais é preciso chegar ao século 19 para encontrar prosadores realmente à altura dos demais da Europa.

Assim é que no panorama da literatura moderna, num momento em que começamos realmente a valer alguma coisa, não é no Brasil que devemos procurar os ensaístas e os romancistas que exprimam uma verdadeira riqueza intelectual, uma verdadeira conquista do mundo através do pensamento.

Debalde [em vão] procuraríamos alguém para opor ao fenômeno extraordinário de um Silone, de um Kafka, de um André Malraux —escritores que "acrescentam" alguma coisa de efetivo e de definitivo ao mundo da expressão e do pensamento literário, apenas arranhado exteriormente pelos Hemingway, Egrenburg, Jorge Amado, Steinbeck, José Lins do Rego, Huxley.

Ora, parece certo que o início de uma verdadeira reforma do pensamento literário tem de começar por um forjamento da expressão adequada. Nem de outra maneira agiram Ronsard, Malherbe, Goethe, Proust, James Joyce, Charles Morgan.

No Brasil, notamos um certo conformismo estilístico. As tentativas modernas que pareceram bravatas tão arrojadas aos tímidos amantes do Serviço de Trânsito Literário, é forçoso convir que não passaram de uma limitada amplitude. Dentro dela, cada um se exprimiu mais ou menos saborosamente, segundo o seu talento, mas ninguém aprofundou a expressão literária.

Isto é, ninguém disse mais e melhor do que Machado de Assis e Aluísio de Azevedo. A qualidade que mais impressionou foi o vigor: a certa desenvoltura com que, por exemplo, os romancistas da década de 1930 lidaram com os vocábulos e as construções, adaptando uns e outros ao seu temperamento literário mais expansivo.

Quase ninguém, todavia, chegou a dar uma demonstração de verdadeira força mental, e não física ou emocional (talvez Antônio de Alcântara, se não morresse, pensam os melancólicos). Possivelmente o sr. Mário de Andrade foi o único que fez algo de certo valor, com "Macunaíma" (1928). O sr. Oswald de Andrade, em escala menor, produziu o "João Miramar" (1924).

Noutro sentido o sr. Ciro dos Anjos andou relando, assim como o sr. Graciliano Ramos. Os demais deram belos exemplos de vigor e de sensibilidade. Nada me agrada mais do que ler "Fogo Morto" ou "Terras do Sem Fim" —outra coisa que já fiz repetidas vezes.

Mas a contribuição do pensamento, que faz a verdadeira obra durável, que distingue a confissão de Stavroguine dos gritos pungentes de Helen Grace Carlisle, fazendo da primeira uma criação superior ao espírito, em contraposição ao rumor de entranhas da segunda; que distingue o velório de Luigi Múrica da admirável prisão de Vitorino Papa-Rabo porque aquele se enquadra numa visão geral da sociedade e da existência, enquanto esta não é mais do que um retalho da humanidade transposto pela arte —esta contribuição do pensamento, eu a procuro em vão nos nossos mestres do romance, semelhante nisto aos seus colegas norte-americanos e à maioria dos europeus.

E talvez se pudesse concluir dizendo que enquanto, numa literatura, não se estabelecer um movimento de pensar efetivamente o material da ficção e de pensar ao mesmo tempo no material verbal: enquanto não se passar da afetividade e da observação para a síntese de ambos, que se processa na inteligência, segundo a cultura e a consciência do mundo —não é possível encará-la "sub specie aeternitatis" [da perspectiva do eterno, universal], mas "quodam aeternitatis" [uma eternidade específica].

Volto à posição inicial.

Enquanto não for pensanda convenientemente, uma língua não estará apta a coisa alguma de definitivo, nem dará asa a nada de mais sólido do que a literatura periférica, ou seja, aquela que dá voltas em torno de um problema essencial sem conseguir pôr a mão sobre ele.

Para que a literatura brasileira se torne uma grande literatura, é necessário que o pensamento afine a língua e a língua sugira o pensamento por ela afinado. Uma dupla corrente, da qual saem as obras-primas e sem a qual dificilmente se chega a uma visão profunda e vasta da vida dentro da literatura.

Nos romances que se publica todo dia entre nós, podemos dizer, sem medo, que não encontramos a verdadeira exploração vocabular, a verdadeira aventura da expressão. Por maiores que sejam, os nossos romancistas se contentam com posições já adquiridas, pensando naturalmente que o impulso generoso que os anima supre a rudeza do material.

Raramente nos é dado encontrar um escritor que, como o português Antonio Pedro, ou o Oswald de "João Miramar", ou o Mário de "Macunaíma", procura estender o domínio do vocábulo sobre regiões mais complexas e mais inexprimíveis, ou fazer da ficção uma forma de conhecimento do mundo e das ideias.

Por isso, tive verdadeiro choque ao ler recentemente um livro publicado já há alguns meses, mas que só agora me caiu sob os olhos. Quero referir-me ao romance diferente que é "Perto do Coração Selvagem", da sra. Clarice Lispector, escritora completamente desconhecida para mim, da qual não tenho a mais leve informação.

Com efeito, este romance é uma tentativa impressionante de levar a nossa língua canhestra para domínios pouco explorados, forçando-a a adaptar-se ao pensamento cheio de mistérios, para o qual, se sente, a ficção não é um exercício ou uma aventura afetiva, mas um instrumento real do espírito, apto a nos fazer penetrar em alguns dos labirintos mais retorcidos da mente.

A que ponto a escritora conseguiu o seu intento, procurarei falar no próximo artigo.

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