|
Quando
por ali passei, avisaram-me que pisasse baixinho, sem fazer barulho.
O velho casarão onde estudei, casarão bicentenário, tinha enormes
táboas, seculares táboas que rangiam, gastas pelas alpergatas de
couro dos frades antigos que, depois de mortos, eram promovidos
a fantasmas.
E de tal forma foi que me habituei. Era em frente a uma cela sempre
fechada, a porta parecia uma pedra de tão dura e imóvel. A tranca
enferrujara e se transformara em pedra igual à porta. O que haveria
atrás dela? Ninguém sabia. Ninguém perguntava.
Durante sete, oito anos, eu passava por ali e insensivelmente moderava
o passo, pisava devagar, respeitando aquela soleira que parecia
mais antiga do que as outras, embora fossem todas do mesmo tempo.
Um dia, encontrei-a aberta. Ia distraído, já travara o passo como
sempre, e lá estava, escancarada, a cela misteriosa. Nada havia
dentro dela. Nem mesmo uma janela. Parecia úmida mas nem tanto como
devia. Enfim, uma cela sem nada de especial que me obrigasse, e
obrigasse os outros, a pisar baixinho.
Quando o imperador Tito entrou no Santo dos Santos do Templo de
Jerusalém, onde os judeus nunca entravam ( apenas o Sumo Sacerdote,
e mesmo assim, somente uma vez por ano), ficou admirado porque nada
havia ali. Com a fúria do pagão vitorioso, ele invadiu o espaço
sagrado e nada encontrou o que profanar.
Já me explicaram que uma religião precisa de um lugar assim, um
pode tudo menos isso ou aquilo. Não sei não. Sem ser religioso,
e principalmente não sendo um pagão vitorioso mas um cristão derrotado,
também tenho momentos em que me habituei a pisar devagarinho. Pisar
baixinho, sem fazer barulho, sem despertar sombras acumuladas que
não devo profanar nem esquecer.
Leia colunas anteriores
30/5/2000 -
Bom assunto
25/5/2000 -
A sombra das bananeiras
23/5/2000 -
O papa e o gato
18/5/2000 -
Orquestra típica
16/5/2000 -
Maiúscula e minúscula
|