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Carlos Heitor Cony
cony@uol.com.br
  1º de junho
  A cela profanada
   
   

Quando por ali passei, avisaram-me que pisasse baixinho, sem fazer barulho. O velho casarão onde estudei, casarão bicentenário, tinha enormes táboas, seculares táboas que rangiam, gastas pelas alpergatas de couro dos frades antigos que, depois de mortos, eram promovidos a fantasmas.
E de tal forma foi que me habituei. Era em frente a uma cela sempre fechada, a porta parecia uma pedra de tão dura e imóvel. A tranca enferrujara e se transformara em pedra igual à porta. O que haveria atrás dela? Ninguém sabia. Ninguém perguntava.
Durante sete, oito anos, eu passava por ali e insensivelmente moderava o passo, pisava devagar, respeitando aquela soleira que parecia mais antiga do que as outras, embora fossem todas do mesmo tempo.
Um dia, encontrei-a aberta. Ia distraído, já travara o passo como sempre, e lá estava, escancarada, a cela misteriosa. Nada havia dentro dela. Nem mesmo uma janela. Parecia úmida mas nem tanto como devia. Enfim, uma cela sem nada de especial que me obrigasse, e obrigasse os outros, a pisar baixinho.
Quando o imperador Tito entrou no Santo dos Santos do Templo de Jerusalém, onde os judeus nunca entravam ( apenas o Sumo Sacerdote, e mesmo assim, somente uma vez por ano), ficou admirado porque nada havia ali. Com a fúria do pagão vitorioso, ele invadiu o espaço sagrado e nada encontrou o que profanar.
Já me explicaram que uma religião precisa de um lugar assim, um pode tudo menos isso ou aquilo. Não sei não. Sem ser religioso, e principalmente não sendo um pagão vitorioso mas um cristão derrotado, também tenho momentos em que me habituei a pisar devagarinho. Pisar baixinho, sem fazer barulho, sem despertar sombras acumuladas que não devo profanar nem esquecer.


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