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Essa
história do caixa dois das eleições presidenciais é desculpa propícia
para se discutir um tema mais interessante, que é o papel da imprensa.
As doações, por mais ilegais que sejam - e são - não vão causar processo,
CPI, multa ou impeachment nenhum. Não é tanto o caso da lei "não pegar",
mas sim de se tratar de uma discussão que invariavelmente inclina-se
para o campo político e não legal. E, no campo político, FHC está
bem que chega - ou não mal o suficiente - para não sofrer impeachment
por mais essa denúncia.
Surge aí uma questão válida: se a imprensa sabe que isso não vai dar
em nada, deve escarafunchar ? Presta um serviço melhor à nação expondo
as mais cavernosas entranhas do poder, ou preservando o governo e
as instituições políticas ?
Alguém dirá que cabe à imprensa mostrar tudo e deixar que a justiça
cumpra o seu papel. Mas isso é fantasia: todo dia, os editores selecionam
aquilo que é publicável, dentre um emaranhado de escândalos potenciais.
Ao fazer essa escolha, os meios de comunicação estão implicitamente
julgando o que deve ser apurado e o que permanecerá no anonimato.
E, acredite, a quantidade de sem-vergonhice descoberta é bem maior
do que a publicada (às vezes por falta de provas, às vezes por decisão
editorial).
Entra aí a questão fundamental, que é o juízo por parte do detentor
da notícia da capacidade de compreensão da população. Quando se omite
algo, decide-se que o público não saberá reagir a essa informação.
Seria a instituição que é um dos pilares básicos da democracia assim
culpada do elitismo aristocrático mais óbvio, que é o de achar que
o povo não tem condições de julgar sozinho o que é melhor para si
mesmo ? E, se a resposta a essa pergunta for afirmativa, estamos mal
?
Um dos fundadores da democracia americana - essa que servia de modelo
até a semana retrasada - dizia que, entre um governo sem imprensa
e uma imprensa sem governo, optaria pelo último. Desde que - e esse
apodo é quase sempre deixado de lado - o povo tivesse condições de
entender o que lia.
No Brasil - assim como em todo lugar do mundo - a maioria da população
não está preparada para digerir certos pratos. A manutenção da ordem
social depende dessa filtragem. Pode-se esperar da grande imprensa,
destinada a classe média-alta e feita por gente de classe média-alta,
que mantenha o paternalismo benevolente, por sua própria sobrevivência.
E, enquanto isso, que continue utilizando-se do vestal de pilar indispensável
da democracia e defensora dos interesses populares. Jornalistas, como
todos nós, têm a inclinação a achar que a sua visão particular do
mundo - e suas posologias para a cura das enfermidades do planeta
- são compartilhadas por toda a população, e assim advogar sua posição
pessoal como verdade universal. A única diferença é que o cidadão
comum pratica o exercício com seus amigos e familiares, e o jornalista
dispõe de tribuna com maior difusão.
Cabe ao leitor perspicaz aplicar ao que lê, vê e ouve na grande mídia
os mesmos critérios usados para filtrar conversas de bar. De omnibus
dubitandum em omnibus dubitandum, a galinha enche o papo. Ou, como
diziam os latinos, "Ubi dubium ibi libertas". Onde há dúvida, há liberdade.
Leia colunas anteriores
12/11/2000 - Muito a leste, e já
se chega ao oeste
05/11/2000 - Ou é burro, ou é mais
esperto do que imaginamos
29/10/2000 - Primeiro, derrubemos
a família. Depois...à revolução
22/10/2000 - A um passo do genocídio
15/10/2000 - A
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