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A evolução
das comunicações não está ajudando só
o malogrado processo de globalização, como também
criando um fenômeno micro que talvez tenha efeitos mais prolongados
e significativos do que mais essa onda de abertura global que, como
todas as outras, passará eventualmente.
A combinação da miniaturização com o
aperfeiçoamento de tecnologias de localização
estão criando, pela primeira vez, o ser humano "always
on". Sempre alerta, como diriam os escoteiros.
Desde a época das cavernas até a popularização
do telefone celular, o homem sempre teve um período do dia
ou, pelo menos, uma época do ano em que estava inachável,
como diria o Magri. Mesmo com a grande revolução da
invenção do telefone, havia uma parte considerável
do dia em que o sujeito estava fora do ar: no carro, no banheiro,
no supermercado, no teatro, e, nas vizinhanças razoavelmente
educadas, todos os dias depois das onze da noite, a não ser
em caso de emergência.
Com a telefonia celular, isso praticamente acabou. Você virou
encontrável a qualquer hora, em qualquer lugar. Havia refúgio
nos aviões, mas esses também já serão,
em breve, equipados com telefonia e acesso para Internet. Para profissionais
onde agilidade é indispensável - como médicos,
advogados e escravos da ciranda financeira - não ter celular
é absurdo, e não atender ao celular, a qualquer hora,
é prova irrefutável de falta de amor pela camiseta,
passível da pena capital: a redução do bônus
de fim de ano. Mas isso não é nada.
Daqui a pouco, seremos também permanentemente rastreáveis.
A tecnologia GPS (Global Positioning System, de orientação
via triangulação de satélites), que permite
a localização de qualquer objeto no globo com uma
margem de erro de um metro ou dois, vai aos poucos migrando das
pontas de mísseis e encouraçados para os pulsos da
população civil. À medida que a tecnologia
fica mais barata e os aparelhos diminutos, aumenta o sentido de
se dar uma unidade de GPS para todos. Pais que querem se assegurar
da segurança de seus filhos, governos querendo monitorar
presidiários, carros de gente que cansou de se perder, etc.
Não é difícil imaginar o dia em que estaremos
totalmente ligados, com obrigação de dar satisfação
a Deus e o Diabo. E aí ?
E aí, pô, que teremos de mudar muito da nossa vida.
O adultério, por exemplo, fica quase impossível, o
que manda pro brejo uma boa dose de casamentos. Não teremos
mais essa sensação de humildade, de perplexidade e
medo frente ao desconhecido porque, mesmo no meio do deserto do
Saara ou no Círculo Polar Ártico poderemos ligar do
celular e pedir pra saber onde está a vendinha com Coca-Cola
mais próxima. Perde-se muito do sentido de exploração.
Perde-se a privacidade, o direito de chegar atrasado e contar uma
mentirinha. Até a pequena transgressão fica mais complicada.
Poderemos monitorar e ser monitorados todo o tempo. Os pais saberão
dos devaneios dos filhos, que saberão onde estão os
seus amigos, e assim por diante, até que sejamos todos nada
mais do que um ponto ambulante em uma tela gigante que saberá,
a qualquer momento, dos caminhos e descaminhos da humanidade.
E talvez chegaremos assim à ironia suprema de ver a civilização
mais individualista de todos os tempos gerar uma sociedade em que
não há individualidade alguma. 1984 talvez chegue
com uns vinte anos de atraso, levado não pelo Big Brother,
mas pela mão invisível do mercado.
Leia
colunas anteriores
03/12/2000 - É uma câmera
no seu banheiro?
26/11/2000 - Um animal social
19/11/2000 - Até
onde vamos ?
12/11/2000 - Muito a leste, e já
se chega ao oeste
05/11/2000 - Ou é burro, ou é mais
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