Está virando moda: depois do “lobby ao contrário”, surgiu o “leasing
às avessas”
Ufa,
Maria, estou a morrer de cansaço.
O
que houve, Joaquim?
Corri
atrás do ônibus. Como não consegui alcançaire,
acabei chegando até aqui. Meu consolo é ter economizado
os dois reais da passagem.
Mas
tu és burro mesmo, hein, Joaquim?
Mas,
mas...
Por
que não correste atrás de um táxi? Terias economizado
muito mais!
Ora
pois, não é que tens razão, Maria!
Gostou
da piada? Pois passe-a adiante. Imediatamente. Pode ser a sua última
chance de fazer troça com a cara dos portugueses. Ao deslizar
os olhos pelos próximos parágrafos, você talvez
conclua que não estamos em condições de escarnecer
do intelecto alheio.
Os
sábios do Itamaraty espetaram na biografia de FHC mais um
vexame. Na semana passada, ao pisar o chão de mármore
da nova embaixada brasileira em Berlim, o grão-tucano converteu-se
no primeiro presidente no mundo a inaugurar uma piada.
Depois
do lobby ao contrário, surgiu no anedotário do tucanato
o leasing ao contrário. Nessa nem Joaquim cairia.
O Itamaraty
precisava de um imóvel para se instalar em Berlim. Pensou
em três alternativas. Escolheu a pior, como se verá
a seguir.
É
preciso descer aos subterrâneos da diplomacia para reconstituir
os detalhes que conduziram ao ridículo. Voltando-se no tempo,
descobre-se que a coisa começou como um problema, virou um
contratempo e terminou ganhando a forma de anedota. Uma anedota
cara e sem graça.
*O
problema:
no início da década de 90, ao farejar os planos do
governo alemão de mudar a capital de Bonn para Berlim, a
diplomacia brasileira pôs-se a esquadrinhar o mercado imobiliário
berlinense. Planejava comprar dois imóveis na cidade: num
deles, instalaria a embaixada; noutro, a casa do embaixador. Em
fevereiro de 94, já sob FHC, a busca foi intensificada. Por
dois anos o Itamaraty bateu à porta do Tesouro. Precisava
de dinheiro. Mas não logrou chegar às arcas da Viúva.
Economizava-se até no clips.
*O
contratempo:
o Itamaraty pensou, então, em vender propriedades no exterior.
Com os fundos que levantasse, abriria o seu guichê em Berlim.
Catalogaram-se bens passíveis de alienação:
um terreno na Cidade do México e outro em Bonn, por exemplo.
Descobriu-se, porém, que, vendidos os imóveis, o dinheiro
não ficaria no bolso do fraque do Barão de Rio Branco.
Iria para o caixa geral do Tesouro. Em seguida, os diplomatas teriam
de se estapear na Esplanada dos Ministérios, para cavar uma
rubrica no orçamento da República para o prédio
de Berlim. A tarefa exigia suor demais para a turma dos punhos de
renda. Passou-se adiante.
*A
anedota:
Podendo fazer um leasing (empréstimo com opção
de compra), o Itamaraty preferiu alugar o prédio de Berlim.
No leasing, como no aluguel, paga-se mensalmente pelo direito de
usar o imóvel. Com uma diferença. No aluguel, joga-se
dinheiro pela janela. No leasing, amortiza-se a dívida. As
prestações mensais, equivalentes às de um aluguel,
são dedutíveis do preço do imóvel. Na
prática, paga-se o empréstimo aos pouquinhos e, ao
final do contrato, fica-se com o imóvel. O que confere ao
acerto ares de piada é o fato de que o contrato assinado
pelo Itamaraty tem jeito de leasing, tem cara de leasing, mas não
é leasing. Ou, por outra, é um leasing de português.
Disse de português e já me corrijo: é um leasing
de brasileiro.
Quem
teve ânimo para atravessar o noticiário da semana passada,
saiu da experiência com a impressão de que o Itamaraty
encontrou um prédio do seu agrado em Berlim e alugou-o. Não
foi bem assim. Na verdade, o prédio foi construído
por encomenda do governo brasileiro. O negócio, fechado sem
licitação, teve a transparência de um cristal
Cica. Deu-se assim:
1)
Em maio de 1997, o Itamaraty começou a se entender com uma
empresa alemã chamada Hanseatica GmbH. Trata-se de uma incorporadora,
que detinha preferência de compra sobre terrenos em Berlim.
Escolhido o local em que seria erigida a nova embaixada, discutiram-se
os detalhes do projeto arquitetônico.
2)
Em junho de 1997, assinou-se um documento batizado de termo
de intenções, no qual o Itamaraty se comprometia
a alugar o imóvel antes mesmo que o primeiro tijolo fosse
assentado.
3)
Com um cliente cativo no bolso, a Hanseatica foi à luta.
Obteve um empréstimo do Deutsche Bank, para financiar a obra.
As características do negócio chamaram a atenção
do banco. A coisa pareceu tão formidavelmente vantajosa,
que o Deutsche Bank, valendo-se da Deutsche Grundbesitz Management
GmbH, seu braço no mercado imobiliário, comprou o
terreno da Hanseatica. E passou a transacionar diretamente com o
Itamaraty, esse cliente do outro mundo.
4)
Em fevereiro de 1998, assinou-se o contrato de locação.
O prédio ainda não havia saltado da prancheta. Mas
o Itamaraty alugou-o por 20 anos, a contar de setembro de 2000,
data prevista para a entrega da obra, formalmente inaugurada por
FHC a 5 de outubro.
O embaixador
Gilberto Velloso, subsecretário-geral do Serviço Exterior,
disse na semana passada que o Itamaraty não pôde optar
pelo leasing. Decisão do TCU (Tribunal de Contas da União)
teria impedido o negócio. Conversa fiada, lorota. A decisão
a que se refere o embaixador só foi tomada em dezembro de
99, mais de dois anos depois de o Itamaraty ter iniciado entendimentos
com a alemã Hanseatica.
O TCU,
na verdade, respondeu a uma consulta encaminhada ao tribunal pelo
chanceler Luiz Felipe Lampreia. Sem mencionar o caso de Berlim,
Lampreia perguntou se o Itamaraty poderia fechar operações
de leasing. Havia dúvidas a respeito. A lei 8666, que rege
as compras no serviço público, veda a inclusão
nos editais de licitação de cláusulas prevendo
a obtenção de financiamentos para a execução
de obras.
Ao
responder à consulta, os ministros se dividiram. Metade seguiu
a opinião do relator, ex-senador Guilherme Palmeira, contrário
ao leasing. A outra metade, votou com o revisor da causa, Marcos
Vilaça, favorável ao leasing. Em voto de desempate,
o presidente do TCU, ex-deputado Iran Saraiva, seguiu a opinião
de Palmeira.
Já
está entendido que a opinião do TCU não influiu
em uma única vírgula dos documentos firmados pelo
Itamaraty na Alemanha. Mas ainda que fosse anterior ao contrato
de aluguel, a decisão do tribunal jamais poderia ter sido
interpretada pelo governo como palavra final.
Ao
incluir na lei 8666 o artigo que veda a obtenção de
financiamentos para viabilizar obras públicas, o legislador
quis: a) evitar o início de obras sem previsão no
Orçamento da União; b) oferecer isonomia de tratamento
entre as empresas, evitando que uma delas, por dispor de financiamento,
entrasse na concorrência em vantagem.
Ora,
o primeiro empecilho seria vencido com facilidade. Bastaria que
o governo incluísse no orçamento a previsão
de gasto com as prestações do contrato de leasing.
A outra dificuldade seria contornada com uma autorização
do Congresso e uma licitação.
Explica-se:
de acordo com a Constituição, os órgãos
públicos só podem pedir empréstimos no exterior
se autorizados pelo Senado. O leasing de Berlim seria recebido com
tapete vermelho no TCU se precedido do aval dos senadores. Um aval
que, se concedido, conduziria a uma obrigatória licitação.
O contrato
Sivam, de triste memória, também dependia de financiamento
externo. O caso é rememorado por Marcos Vilaça em
seu voto. Envolvia dinheiro mais grosso. Foi aprovado pelo Senado
e referendado pelo TCU.
O Itamaraty,
porém, não quis se dar ao trabalho. Preferiu fechar
negócio com uma empresa escolhida (só Deus sabe como)
sem licitação. Usou-se o nome do contribuinte brasileiro
para viabilizar o financiamento de um prédio que, depois
de pago, dentro de 20 anos, pertencerá ao Deutsche Bank.
A despesa
mensal com o aluguel de Berlim é de US$ 130.818,45. Ou, em
moeda nacional, R$ 242.014,14. Ouvido, Roberto Abdenur, embaixador
na Alemanha, achou o preço bem razoável, compatível
com o momento de austeridade que vivemos.
Abdenur
argumentou o seguinte: paga-se pelo metro quadrado em Berlim (US$
17) bem menos do que se costuma desembolsar, por espaço idêntico,
em Nova York (US$ 55).
Ditas
assim, num dos salões do belo prédio de Berlim, as
frases do embaixador acalmam como solo de oboé. Se as repetisse
no Brasil, no meio de uma praça qualquer, Abdenur se arriscaria,
com todo o seu cosmopolitismo, a sair manchado de ovo.
Para
um brasileiro obrigado a dormir debaixo da ponte, o dinheiro enterrado
no prédio hoje ocupado por Abdenur é fortuna que jamais
se poderá apalpar. É coisa que, com muita sorte, só
se terá alguma chance de obter em encarnação
futura.
Mesmo
para um tapuia de classe média, o razoável
de Abdenur é a economia de uma vida. Gaita preta. Suficiente
para comprar um apartamento de dois ou três quartos em Higienópolis,
na vizinhança de FHC.
Em
duas décadas, a Viúva terá levado à
fogueira do inquilinato alemão a bagatela de R$ 58.083.391,80.
Algo como uma Mega Sena acumulada. Ou a terça parte de um
TRT paulista. Ou ainda 240 apartamentos.
O Itamaraty
tinha diante de si três opções: podia correr
atrás do ônibus da alienação
de imóveis próprios, perseguir o táxi
do leasing, ou sair no encalço do avião
do aluguel. Esperto, optou pela alternativa mais onerosa. Se gastassem
dinheiro do próprio bolso, os diplomatas, Joaquins de nossa
piada, talvez corressem atrás de economia. Mas, como lidavam
com dinheiro sem dono, arrancado do contribuinte, gastaram-no
com gosto.
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