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  10 de outubro
  A última do brasileiro
 
Está virando moda: depois do “lobby ao contrário”, surgiu o “leasing às avessas”

“Ufa, Maria, estou a morrer de cansaço.”

“O que houve, Joaquim?

“Corri atrás do ônibus. Como não consegui alcançaire, acabei chegando até aqui. Meu consolo é ter economizado os dois reais da passagem.”

“Mas tu és burro mesmo, hein, Joaquim?”

“Mas, mas...”

“Por que não correste atrás de um táxi? Terias economizado muito mais!”

“Ora pois, não é que tens razão, Maria!”

Gostou da piada? Pois passe-a adiante. Imediatamente. Pode ser a sua última chance de fazer troça com a cara dos portugueses. Ao deslizar os olhos pelos próximos parágrafos, você talvez conclua que não estamos em condições de escarnecer do intelecto alheio.

Os sábios do Itamaraty espetaram na biografia de FHC mais um vexame. Na semana passada, ao pisar o chão de mármore da nova embaixada brasileira em Berlim, o grão-tucano converteu-se no primeiro presidente no mundo a inaugurar uma piada.

Depois do lobby ao contrário, surgiu no anedotário do tucanato o leasing ao contrário. Nessa nem Joaquim cairia.

O Itamaraty precisava de um imóvel para se instalar em Berlim. Pensou em três alternativas. Escolheu a pior, como se verá a seguir.

É preciso descer aos subterrâneos da diplomacia para reconstituir os detalhes que conduziram ao ridículo. Voltando-se no tempo, descobre-se que a coisa começou como um problema, virou um contratempo e terminou ganhando a forma de anedota. Uma anedota cara e sem graça.

*O problema: no início da década de 90, ao farejar os planos do governo alemão de mudar a capital de Bonn para Berlim, a diplomacia brasileira pôs-se a esquadrinhar o mercado imobiliário berlinense. Planejava comprar dois imóveis na cidade: num deles, instalaria a embaixada; noutro, a casa do embaixador. Em fevereiro de 94, já sob FHC, a busca foi intensificada. Por dois anos o Itamaraty bateu à porta do Tesouro. Precisava de dinheiro. Mas não logrou chegar às arcas da Viúva. Economizava-se até no clips.

*O contratempo: o Itamaraty pensou, então, em vender propriedades no exterior. Com os fundos que levantasse, abriria o seu guichê em Berlim. Catalogaram-se bens passíveis de alienação: um terreno na Cidade do México e outro em Bonn, por exemplo. Descobriu-se, porém, que, vendidos os imóveis, o dinheiro não ficaria no bolso do fraque do Barão de Rio Branco. Iria para o caixa geral do Tesouro. Em seguida, os diplomatas teriam de se estapear na Esplanada dos Ministérios, para cavar uma rubrica no orçamento da República para o prédio de Berlim. A tarefa exigia suor demais para a turma dos punhos de renda. Passou-se adiante.

*A anedota: Podendo fazer um leasing (empréstimo com opção de compra), o Itamaraty preferiu alugar o prédio de Berlim. No leasing, como no aluguel, paga-se mensalmente pelo direito de usar o imóvel. Com uma diferença. No aluguel, joga-se dinheiro pela janela. No leasing, amortiza-se a dívida. As prestações mensais, equivalentes às de um aluguel, são dedutíveis do preço do imóvel. Na prática, paga-se o empréstimo aos pouquinhos e, ao final do contrato, fica-se com o imóvel. O que confere ao acerto ares de piada é o fato de que o contrato assinado pelo Itamaraty tem jeito de leasing, tem cara de leasing, mas não é leasing. Ou, por outra, é um leasing de português. Disse de português e já me corrijo: é um leasing de brasileiro.

Quem teve ânimo para atravessar o noticiário da semana passada, saiu da experiência com a impressão de que o Itamaraty encontrou um prédio do seu agrado em Berlim e alugou-o. Não foi bem assim. Na verdade, o prédio foi construído por encomenda do governo brasileiro. O negócio, fechado sem licitação, teve a transparência de um “cristal Cica”. Deu-se assim:

1) Em maio de 1997, o Itamaraty começou a se entender com uma empresa alemã chamada Hanseatica GmbH. Trata-se de uma incorporadora, que detinha preferência de compra sobre terrenos em Berlim. Escolhido o local em que seria erigida a nova embaixada, discutiram-se os detalhes do projeto arquitetônico.

2) Em junho de 1997, assinou-se um documento batizado de “termo de intenções”, no qual o Itamaraty se comprometia a alugar o imóvel antes mesmo que o primeiro tijolo fosse assentado.

3) Com um cliente cativo no bolso, a Hanseatica foi à luta. Obteve um empréstimo do Deutsche Bank, para financiar a obra. As características do negócio chamaram a atenção do banco. A coisa pareceu tão formidavelmente vantajosa, que o Deutsche Bank, valendo-se da Deutsche Grundbesitz Management GmbH, seu braço no mercado imobiliário, comprou o terreno da Hanseatica. E passou a transacionar diretamente com o Itamaraty, esse cliente do outro mundo.

4) Em fevereiro de 1998, assinou-se o contrato de locação. O prédio ainda não havia saltado da prancheta. Mas o Itamaraty alugou-o por 20 anos, a contar de setembro de 2000, data prevista para a entrega da obra, formalmente inaugurada por FHC a 5 de outubro.

O embaixador Gilberto Velloso, subsecretário-geral do Serviço Exterior, disse na semana passada que o Itamaraty não pôde optar pelo leasing. Decisão do TCU (Tribunal de Contas da União) teria impedido o negócio. Conversa fiada, lorota. A decisão a que se refere o embaixador só foi tomada em dezembro de 99, mais de dois anos depois de o Itamaraty ter iniciado entendimentos com a alemã Hanseatica.

O TCU, na verdade, respondeu a uma consulta encaminhada ao tribunal pelo chanceler Luiz Felipe Lampreia. Sem mencionar o caso de Berlim, Lampreia perguntou se o Itamaraty poderia fechar operações de leasing. Havia dúvidas a respeito. A lei 8666, que rege as compras no serviço público, veda a inclusão nos editais de licitação de cláusulas prevendo a obtenção de financiamentos para a execução de obras.

Ao responder à consulta, os ministros se dividiram. Metade seguiu a opinião do relator, ex-senador Guilherme Palmeira, contrário ao leasing. A outra metade, votou com o revisor da causa, Marcos Vilaça, favorável ao leasing. Em voto de desempate, o presidente do TCU, ex-deputado Iran Saraiva, seguiu a opinião de Palmeira.

Já está entendido que a opinião do TCU não influiu em uma única vírgula dos documentos firmados pelo Itamaraty na Alemanha. Mas ainda que fosse anterior ao contrato de aluguel, a decisão do tribunal jamais poderia ter sido interpretada pelo governo como palavra final.

Ao incluir na lei 8666 o artigo que veda a obtenção de financiamentos para viabilizar obras públicas, o legislador quis: a) evitar o início de obras sem previsão no Orçamento da União; b) oferecer isonomia de tratamento entre as empresas, evitando que uma delas, por dispor de financiamento, entrasse na concorrência em vantagem.

Ora, o primeiro empecilho seria vencido com facilidade. Bastaria que o governo incluísse no orçamento a previsão de gasto com as prestações do contrato de leasing. A outra dificuldade seria contornada com uma autorização do Congresso e uma licitação.

Explica-se: de acordo com a Constituição, os órgãos públicos só podem pedir empréstimos no exterior se autorizados pelo Senado. O leasing de Berlim seria recebido com tapete vermelho no TCU se precedido do aval dos senadores. Um aval que, se concedido, conduziria a uma obrigatória licitação.

O contrato Sivam, de triste memória, também dependia de financiamento externo. O caso é rememorado por Marcos Vilaça em seu voto. Envolvia dinheiro mais grosso. Foi aprovado pelo Senado e referendado pelo TCU.

O Itamaraty, porém, não quis se dar ao trabalho. Preferiu fechar negócio com uma empresa escolhida (só Deus sabe como) sem licitação. Usou-se o nome do contribuinte brasileiro para viabilizar o financiamento de um prédio que, depois de pago, dentro de 20 anos, pertencerá ao Deutsche Bank.

A despesa mensal com o aluguel de Berlim é de US$ 130.818,45. Ou, em moeda nacional, R$ 242.014,14. Ouvido, Roberto Abdenur, embaixador na Alemanha, achou o preço bem razoável, “compatível com o momento de austeridade que vivemos”.

Abdenur argumentou o seguinte: paga-se pelo metro quadrado em Berlim (US$ 17) bem menos do que se costuma desembolsar, por espaço idêntico, em Nova York (US$ 55).

Ditas assim, num dos salões do belo prédio de Berlim, as frases do embaixador acalmam como solo de oboé. Se as repetisse no Brasil, no meio de uma praça qualquer, Abdenur se arriscaria, com todo o seu cosmopolitismo, a sair manchado de ovo.

Para um brasileiro obrigado a dormir debaixo da ponte, o dinheiro enterrado no prédio hoje ocupado por Abdenur é fortuna que jamais se poderá apalpar. É coisa que, com muita sorte, só se terá alguma chance de obter em encarnação futura.

Mesmo para um tapuia de classe média, o “razoável” de Abdenur é a economia de uma vida. Gaita preta. Suficiente para comprar um apartamento de dois ou três quartos em Higienópolis, na vizinhança de FHC.

Em duas décadas, a Viúva terá levado à fogueira do inquilinato alemão a bagatela de R$ 58.083.391,80. Algo como uma Mega Sena acumulada. Ou a terça parte de um TRT paulista. Ou ainda 240 apartamentos.

O Itamaraty tinha diante de si três opções: podia correr atrás do “ônibus” da alienação de imóveis próprios, perseguir o “táxi” do leasing, ou sair no encalço do “avião” do aluguel. Esperto, optou pela alternativa mais onerosa. Se gastassem dinheiro do próprio bolso, os diplomatas, Joaquins de nossa piada, talvez corressem atrás de economia. Mas, como lidavam com dinheiro “sem dono”, arrancado do contribuinte, gastaram-no com gosto.


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