Por causa dos pais, cantora Hilda Maria sempre soube que valia tanto quanto os outros

'A menina pegou a minha Barbie negra, falou que ela ia ser a empregada e eu fiquei muito brava', lembra

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São Paulo

A cantora e compositora Hilda Maria lançou seu primeiro disco, "Feita de Rendas", em 2016. Já cantou em navio de cruzeiro, em palcos do Sesc, estudou canto lírico e não dispensa um baião. Nesta sexta (19), lançou o single "Ouça" —a música reproduz várias perguntas que as crianças negras, como Hilda já foi um dia, fazem às suas famílias, com temas desde a forma dos cabelos até a cor da pele.

Eu nasci em Santos. Tenho três irmãos, todos homens, o Emanuel, o Emiliano e o Mario. Eu morava com meu pai, minha mãe e eles. Eu gostava muito de ir pra escola, minha mãe conta que, no meu primeiro dia de aula, quando ela chegou pra me pegar, eu falei pra ela ir embora, que ela não precisava mais vir.

No meu tempo livre, eu cantava bastante, brincava com meus vizinhos do prédio, gostava de criar coisas, de desenhar, de fazer casinhas de boneca, de ver filmes, de encontrar com meus primos. Não me lembro de alguma criança me xingar ou falar palavras feias pra mim com relação à minha cor, mas eu me lembro de duas situações que me marcaram, e foram por causa da minha cor, com certeza.

Hilda Maria até pensou em ter outra profissão, mas já aos 11 anos sabia que queria ser cantora - Eduardo Knapp/Folhapress

Eu tinha uma vizinha que pegava muito no meu pé, e só no meu pé, eu era a única menina negra do meu prédio. Ela adorava fazer piada comigo, qualquer coisa relacionada a mim. Teve um dia que eu não aguentei e pedi pra minha mãe me defender. Eu estava me sentindo muito mal.

Outro momento que me deixou bem brava foi um dia em que eu estava brincando de Barbie com uma menina, eu era a única menina negra na brincadeira. Eu tinha uma Barbie negra numa época —hoje tem Barbie de todo tipo, mas, quando eu era criança, só tinha Barbie branca, loira, ou no máximo branca com o cabelo preto.

E eu tinha essa Barbie negra que parecia até uma modelo bem famosa na época, a Naomi Campbell. Eu amava essa Barbie, e essa menina pegou a minha Barbie, nem perguntou se eu queria brincar com ela ou não, e falou "Essa aqui vai ser a empregada", e eu fiquei muito brava.

Aquilo batia em mim também, né? No meio da brincadeira, era como se eu também tivesse que ser a empregada. Eu me senti muito revoltada, na hora eu revidei, falei que ela não sabia o que estava falando, e que a minha Barbie era a mais linda justamente por ser daquele jeito. No geral, eu me revoltava, não me deixava abater.

Eu nunca me senti menor valorosa por ser negra graças aos meus pais. Meu pai é negro e minha mãe é branca, e ela é apaixonada pela cultura e pelo povo negro. Então, ela sempre me elogiou muito, falou o quanto eu sou bonita, o quanto minha pele é linda, que meu cabelo é bonito. Meu pai sempre incentivou esse sentimento dentro de mim e dos meus irmãos. Sempre tive muito apoio e incentivo pra que eu gostasse de como eu sou.

Eu pensava em ser muitas coisas. Alternei de querer ser passista de escola de samba, jornalista, mas sempre tinha aquele gosto por cantar e ser cantora. Quando eu tinha 11 anos, já fazia aula de canto, então, já tinha na cabeça bem firme que eu queria ser cantora.

As pessoas diziam que eu cantava bem. Lembro que, um dia, eu estava jantando na casa de uma amiga, e todo mundo começou a falar o que queria ser quando crescesse. Eu falei "cantora", e todo mundo deu risada de mim. Eu fiquei muito brava, estufei o peito e disse "Eu vou ser cantora igual à Daniela Mercury e vocês vão ver!".

Hilda Maria aos dez anos de idade cantando em bingo de igreja, em São Paulo - Arquivo pessoal

Eu pensava em como seria o caminho para realizar esse sonho, e imaginava que nesse caminho teria muitas coisas difíceis. Eu tinha por um lado um superapoio da minha família, dizendo que eu podia realizar esse sonho, me dedicando e estudando.

E, por outro, eu tinha essa sensação de saber que era boa, mas ter dúvida se iam me escolher mesmo. Eu ficava um pouco confusa. E, só crescendo, consegui pensar bastante em mim e nas minhas qualidades, e me senti merecedora de realizar meus sonhos.

Percebi que estava realizando meu sonho quando fui contratada como cantora de um navio de cruzeiros. Eu cantava num bar e num teatro enorme. Teve um dia que eu pisei o palco desse navio e senti a luz no meu rosto, o palco no meu pé, e meu coração dizia "Esse é o seu lugar, Hilda".

Digo para as crianças negras uma frase de uma música minha: "Cresça para o sol". Ponha todos os seus desejos pra fora, pra mostrar o quanto vocês são maravilhosas. Nunca abram mão do direito de viver e de ser feliz.

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