Descrição de chapéu yanomami indígenas

Sonhar com mortos, com premonições e até com 'monstros' faz parte da rotina dos yanomamis

Ter sonhos é natural, mas se lembrar deles é uma prática, diz escritora de livros sobre como indígenas levam os sonhos a sério

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São Paulo

Imagine que na noite passada você sonhou com uma piscina cheia de jujubas, ou que chegava pertinho do seu ídolo, quem sabe até sonhou que viajava para aquele lugar lindo aonde sempre quis ir. Ou, então, não foi sonho coisa nenhuma, mas sim um pesadelo, e nele bem na hora da prova você esquecia tudo que aprendeu, ou tinha que fugir de um tigre gigante que o perseguia pela cidade.

Imagem do livro 'Mari Hi, a Árvore dos Sonhos', ilustrado por Gustavo Caboco - Gustavo Caboco/Divulgação

Daí pense que tudo isso que aconteceu na sua cabeça enquanto você dormia pode virar motivo de conversa entre sua família, ou até mesmo na sua comunidade —tipo uma reunião do seu condomínio. É mais ou menos isso que os indígenas da etnia yanomami fazem no herêamu, uma espécie de discurso feito na casa coletiva da aldeia em que se fala sobre coisas do cotidiano.

"Normalmente o herêamu é no fim do dia ou no início da manhã. E, eventualmente, você conta seu sonho nesse momento porque sente necessidade de compartilhá-lo com a comunidade", explica a antropóloga Hanna Limulja. "Se você sonha com algo, mas não compartilha, é como se o sonho não chegasse a existir."

Hanna escreveu dois livros que falam sobre os yanomamis e o modo com que eles lidam com os sonhos. Um deles é voltado às crianças e se chama "Mari hi - A Árvore dos Sonhos" (editora Ubu, R$ 69,90, 48 páginas). O outro tem linguagem mais adulta e se chama "O Desejo dos Outros - Uma Etnografia dos Sonhos Yanomami" (editora Ubu, R$ 59,90, 192 páginas).

Nos dois, aparece a figura dessa árvore mágica, a Mari hi, que está plantada "nos confins da terra", e de cujas flores desabrochadas nascem os sonhos dos indígenas. A palavra "mari", para eles, significa "sonho".

Nessas reuniões coletivas em que os yanomamis contam seus sonhos, é comum que os mais novos fiquem com vergonha. "Todo mundo sonha, até os animais sonham, então as crianças e jovens também sonham. Só que eles não sabem falar dos sonhos", diz a autora Hanna.

Para os yanomamis, os sonhos podem ser relacionados a algo do passado ou também premonitórios, ou seja, prevendo coisas que ainda vão acontecer. Uma das pessoas entrevistadas por Hanna foi a indígena Fátima. O filho dela foi picado por uma cobra, e Hanna quis saber se ele não teria tido a chance de evitar o acidente se tivesse sonhado com isso.

"Fátima disse que ele deve, sim, ter sonhado com a picada, mas, como era criança, não soube falar do sonho. Quando as pessoas têm esse tipo de sonho, elas não saem, comentam com alguém e essa pessoa diz para ficar em casa. A Fátima explica que, pela incapacidade do seu filho criança de se expressar, não pode tomar a devida precaução e ele acabou picado", conta.

Nos seus sonhos, os yanomamis também podem ter encontros com as pessoas que já se foram. Mas não dá para escolher sonhar com elas, é algo que acontece porque aquele ou aquela que morreu deseja esse contato e "visita" os que ainda vivem —por isso o livro se chama "O Desejo dos Outros".

Também acontece de se sonhar com "coisas malucas", tipo o tigrão do começo do texto. "Nos sonhos os yanomamis encontram seres que não encontrariam em outras circunstâncias. Entre eles está o Tëpërësik, um monstro aquático extremamente assustador", afirma Hanna.

"Esse tipo de sonho obviamente causa muito temor para eles, e, quando eles têm esse tipo de sonho, não costumam passar perto dos rios grandes, porque esse ser costuma viver debaixo dessas águas."

Para Hanna, os moradores das cidades grandes poderiam tirar melhor proveito dos seus sonhos, como fazem os indígenas. "Tem gente que até fala que não sonha, ou que não se lembra dos sonhos. Sonhar é natural, mas se lembrar do sonho é uma prática. Quem presta atenção no sonho sabe disso, que no momento em que está contando você vai se lembrando de partes dele", diz.

"A gente acaba não dando atenção aos sonhos, e acho que fazer isso é fundamental para que a gente perceba que eles dizem muito sobre o mundo em que a gente está vivendo e sobre as coisas ao nosso redor, mas também dizem sobre os outros com quem a gente se relaciona. E é isso que os yanomamis, em certo sentido, nos ensinam através dos sonhos deles."

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