Em ano tórrido, artistas negros dominam e a cena indie se firma

Mostra 'Histórias Afro-Atlânticas' está entre os melhores acontecimentos de 2018 nas artes

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Colagem de Alex Kidd para a retrospectiva de artes plásticas da Ilustrada

Alex Kidd

São Paulo

Uma das performances mais memoráveis do ano não aconteceu num museu ou galeria. E o espaço destinado à arte como reflexo de seu momento também não mostrou nada com a temperatura desses tempos tórridos.

Banksy, o misterioso grafiteiro britânico, orquestrou a destruição espontânea de um de seus trabalhos em pleno salão de leilões da Christie’s, em Nova York. E a Bienal de São Paulo, comandada pelo espanhol Gabriel Pérez-Barreiro, mais pareceu uma anódina mostra de museu, com artistas trocando elogios na jaula moderna de Oscar Niemeyer.

Uma mulher e um homem seguram moldura da qual sai a pintura de Banksy, já parcialmente picotada
Sotheby's apresenta a obra de Banksy, agora chamada "Love is in the Bin", que foi parcialmente picotada após leilão - Ray Tang/Xinhua

Entre as instituições, ao menos, uma lufada de ar fresco. O ano que chega ao fim foi dos criadores negros juntos na monumental “Histórias Afro-Atlânticas”, uma das melhores mostras em décadas.

Isso sem contar a força de espaços independentes, cada vez mais necessários num ambiente de erosão das certezas.

Neste ano em que Marielle Franco foi assassinada e Jair Bolsonaro foi eleito presidente, o circuito artístico ainda mostrou as garras em lugares inesperados, cravando 2018 como grande momento de deslocamentos e inversões.

O espetáculo —ainda que bizarro— migrou para os leilões. Enquanto o truque de Banksy e o recorde de artista vivo atingido por David Hockney representam a alta, o encalhe da tela de Jackson Pollock ofertada por um MAM do Rio falido foi a baixa.

Longe da mais alienada Bienal de São Paulo, mostras e performances de fôlego encheram o circuito paralelo com uma pegada política que, mesmo beirando o oportunismo, aumentou a voltagem em tempos de ultrapolarização.

Um dos endereços mais fervidos, aliás, foi a Casa do Povo, espaço paulistano no coração do Bom Retiro que melhor encarnou o zeitgeist de nossa cultura viciada em tudo ao mesmo tempo agora.

Enquanto tudo ardia em São Paulo, a não ser o parque Ibirapuera, o Rio de Janeiro viu o retorno de uma bobagem chamada “Queermuseu”. A exposição, ressuscitada no Parque Lage por meio de crowdfunding depois de ser interditada em Porto Alegre, só acirrou as guerras culturais que vedam os olhos do público e da crítica para o que mais importa.

O saldo positivo foi deixar claro que a liberdade de expressão sobrevive, mesmo que seja para pagar alguns micos.

Duas pequenas vitórias ainda marcam o ano. O Paço das Artes voltou a ter uma sede, agora em Higienópolis, e a briga entre museus e aeroportos parece ter chegado ao fim, com uma resolução do governo que proíbe a cobrança abusiva de taxas para a entrada de obras de arte no país. Se tudo continuar de pé num futuro próximo, o ano que vem pode trazer belas novidades. 

 

MELHORES DO ANO

‘Histórias Afro-Atlânticas’
Uma das maiores e mais ambiciosas mostras já realizadas pelo Masp, com uma segunda ala montada no Instituto Tomie Ohtake, a exposição reviu séculos da presença negra nas artes desde a escravidão, expondo como a violência racial forjou o cânone visual do Ocidente

‘Mulheres Radicais’
Nomes consagrados como Lygia Pape, Anna Maria Maiolino e Ana Mendieta ganharam a companhia de mulheres que moldaram a experiência estética da América Latina, entre elas María Evelia Marmolejo e Regina José Galindo, que tiveram suas performances viscerais revistas na mostra da Pinacoteca

‘Arte-Veículo’
Na era das fake news, ampla investigação no Sesc Pompeia mostrou como artistas e grupos, entre eles Cildo Meireles, Paulo Bruscky, Jac Leirner e o grupo 3Nós3, sabotaram os mecanismos da grande imprensa para espalhar suas mensagens

Homem segura faz pose e segura celular
Aretha Sadick e Explode! apresentam performance na mostra 'Arte-Veículo' - Divulgação

Hilma af Klint
Recuperação histórica de importante figura nas artes. As pinturas gigantescas da artista sueca redescoberta agora levam o misticismo e o esoterismo à esfera do bom gosto

Irving Penn
Numa revisita às mais de seis décadas da trajetória do fotógrafo, o Instituto Moreira Salles mostrou a maestria de seu trabalho de estúdio em que imperam o domínio de luz e sombra e impressão fotográfica aliadas ao glamour do pós-Guerra

 

PRINCIPAIS EMBATES

Aeroportos e museus
Desde que os aeroportos passaram a cobrar taxas com base no valor e não mais o peso das peças para a entrada de obras de arte no país, museus precisaram ter um advogado sempre a mão para anular a cobrança e viabilizar suas mostras. O problema foi solucionado depois de um acordo político, esclarecendo que a entrada de trabalhos artísticos no país tem um papel cívico-cultural 

Loucurinhas nos leilões
O fato mais memorável do ano foi a performance às avessas em que o grafiteiro Banksy mandou triturar uma de suas obras bem na hora em que o martelo foi batido. David Hockney também fez história ao se tornar o artista vivo com a obra mais cara já arrematada, uma de suas telas das piscinas californianas vendida por US$ 90,3 milhões. Na outra ponta do espectro, a tela de Jackson Pollock que o MAM do Rio tentou vender para sair do buraco encalhou no leilão 

Obra 'No. 16' (1950) de Jackson Pollock
Pintura 'Número 16', de Jackson Pollock - Divulgação

Bienal alienada
Enquanto o circuito paralelo ferveu com mostras de pegada política urgente, entre elas ‘AI-5 - 50 Anos’, ‘Arte-Veículo’ e ‘Estado(s) de Emergência’, a 33ª Bienal de São Paulo mostrou um conjunto de belas obras em total descompasso com a realidade e os atritos fora do Ibirapuera 

Negros no comando
O Masp, que realizou só mostras de artistas negros no ano, liderou um fenômeno do circuito institucional e do mercado para incorporar aos acervos trabalhos de artistas históricos há muito negligenciados, em especial Rubem Valentim, e novos nomes que despontam na cena, como Antonio Obá, Bruno Baptistelli, Jaime Lauriano, Dalton Paula e Rosana Paulino 

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