Descrição de chapéu Obituário Jean-Luc Godard (1930 - 2022)

Morre Jean-Luc Godard, o grande mestre da nouvelle vague no cinema, aos 91

Diretor franco-suíço marcou a história do cinema com obras como 'Acossado', 'Uma Mulher É uma Mulher' e 'Bando à Parte'

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O diretor franco-suíço Jean-Luc Godard AFP

São Paulo

Jean-Luc Godard, o ícone da nouvelle vague, morreu nesta terça-feira aos 91 anos. Ele teria recorrido ao suicídio assistido, não por estar doente, mas muito cansado, de acordo com o relato de um familiar ao jornal francês Libération. A prática é permitida na Suíça, onde Godard vivia.

O diretor por trás de uma revolução no cinema veio de uma família de banqueiros riquíssima, mas procurou se afastar por completo dessa fortuna e foi como operário que conseguiu financiar seu primeiro curta-metragem.

Mais tarde, já morando em Paris, ele roubou do avô o exemplar de um livro autografado por Paul Valéry especialmente para o parente, de quem era muito amigo. Godard podia ter pedido dinheiro em casa, mas preferiu o furto. Era sua forma de mostrar o desejo de independência.

O cineasta Jean-Luc Godard durante o Festival de Cannes, em 1987
O cineasta Jean-Luc Godard durante o Festival de Cannes, em 1987 - AFP

Quando escreveu seu primeiro artigo para a já mundialmente famosa revista Cahiers du Cinéma, há 70 anos, deu ao seu texto o nome de "Defesa e Ilustração da Decupagem Clássica". Expunha ali as virtudes dos filmes feitos e montados à maneira clássica, pois, como explicitaria quatro anos mais tarde, a montagem e a direção de um filme são a mesmíssima coisa.

Isso ele fez na revista daquele que foi "o pai espiritual" dos jovens redatores —André Bazin, o criador da teoria realista do cinema moderno, para quem a montagem era não mais do que uma trapaça.

Jean-Luc Godard foi assim desde sempre —iconoclasta. Gostava de pôr tudo em questão, até ele mesmo.

Em 1959, questionaria o cinema inteiro com "Acossado", sua retumbante estreia. Tudo era improvisado. Não havia roteiro. Pela manhã, o diretor tomava as notas sobre o que pretendia filmar naquele dia. Encerrava as filmagens quando entendia que a inspiração tinha acabado.

A classe cinematográfica tradicional, tão atacada nos Cahiers pela turma da nouvelle vague, se regozijava com aquele filme que, diziam, seria impossível de montar.

Doce ilusão. Não só "deu montagem", como a mais moderna do mundo. Aquela em que cada "raccord" —isto é, o encontro entre dois planos— parecia desafiar os postulados do "bom cinema" e anunciar o futuro de sua arte.

Desde então mudaram os parâmetros da montagem. Mas também os da filmagem. Com seu fotógrafo, Raoul Coutard, criou um estilo de reportagem, cinema com câmera na mão, sem luz artificial, ou quase. Captou as ruas ao vivo, longe dos estúdios, um tanto de ficção e um tanto de documentário no mesmo filme.

Godard libertou o cinema de todas as convenções que o prendiam a uma determinada forma. Sacudiu a poeira da sua arte com tal ênfase que, com um único filme, se tornou diretor essencial para o conhecimento do cinema.

Sua arte era "a verdade em 24 quadros por segundo", segundo disse. Era também a mais próxima do homem, pois a única que o captava por inteiro em seu tempo e espaço. Mestre das frases de efeito (mas não só de efeito), postulou, com seu amigo Éric Rohmer, a superioridade de sua arte —"o cinema é um pensamento que toma forma, bem como uma forma que permite pensar".

Godard gostava da liberdade. Inclusive da de mudar de filme para filme. Cada filme era um novo experimento. Gostava, por isso mesmo, do cinema mudo, aquele de um tempo "em que o cinema ainda não sabia o que era" e se buscava, filme após filme. Antes de ser arte ou modo de expressão, o cinema se confundia então com a liberdade e a descoberta permanente.

Quando passou da crítica à direção, Godard desafiou todas as regras estabelecidas. Se as regras diziam que não se faz um primeiro plano com lente grande angular, ele fazia. Se diziam que não se pode usar branco para evitar o brilho, ele usava. Cada filme parecia ir em sentido diferente do anterior. A contradição não deixa de ser uma forma de arte.

Além de Coutard, o fotógrafo, sua companheira nessa primeira fase foi a atriz dinamarquesa Anna Karina, por quem se encantou vendo um filme publicitário e com quem se casaria pouco depois, lançando seu rosto já em "Uma Mulher É uma Mulher", de 1961.

O casamento duraria menos do que a parceria. "Alphaville", de 1965, foi o primeiro filme que os dois fizeram depois da separação —e, em não poucos momentos, uma declaração de amor do cineasta por sua musa. Fariam ainda "Made in USA", longa de 1966.

A única fidelidade de Godard, desde então e até agora, foi à atualidade. Podemos vasculhar sua filmografia. É sempre sobre o presente, sobre algo que o atrai ou o inquieta que seus filmes estão falando. Além disso, ele se permitiu sempre ser contraditório.

A contradição atingiu também sua vida pessoal, como relata sua segunda ex-mulher, Anne Wiazemsky. Tão revolucionário na arte, podia ter ciúme doentio em casa. Casa que, por sinal, podia usar como locação. É Wiazemsky, de novo, quem relata a dureza de ser forçada a retomar pelo diretor, em cena, na manhã seguinte, a mesma discussão que tivera com ele no mesmo lugar, na noite anterior.

Para o bem e para o mal, assim construía sua arte. Seu amigo Éric Rohmer, também cineasta, dizia que Godard era como um ladrão, que pilhava uma imagem aqui, uma citação literária ali, depois um trecho de música, depois a imagem de outro filme, juntava tudo e transformava numa ideia própria. Assim montava seus painéis, colando pedaço a pedaço, às vezes desorientando o espectador, que por vezes procurava ali uma profundidade que Godard mesmo nunca procurou. Sua arte era a do olhar, a da pele.

Era, também, do momento. Cada filme de Godard é uma espécie de documentário sobre o momento em que é feito —"O Pequeno Soldado", a Guerra da Argélia; "Alphaville", o totalitarismo informativo; "O Demônio das Onze Horas", a sociedade de consumo; "Weekend", a sociedade automobilística e seus congestionamentos-monstro; "A Chinesa", a ascensão do maoísmo.

A este último, por sinal, Godard aderiu nos idos de 1968. Renegou sua obra anterior, deixou o cinema comercial, passou a fazer filmes coletivos destinados à classe operária, que, verdade seja dita, não se sensibilizava muito com eles.

Godard passou daí às séries em vídeo, quando nenhum cineasta ousava usar a tecnologia. Que importa? Godard experimentava. Foi experimentando que chegou à TV, com as séries "Seis Vezes Dois", de 1976, e "France, Tour, Détour, Deux Enfants", de 1977.

A partir daí, seus filmes podem ser definidos, cada vez mais, por um novo gênero --o ensaio cinematográfico. Nem ficção nem documentário, às vezes os dois, às vezes nenhum. Voltou ao circuito comercial com "Salve-se Quem Puder (A Vida)".

Ora trouxe grandes estrelas, como Johnny Halliday e Isabelle Huppert, ora lançou talentos, como Marushka Detmers. Cada vez mais solitário, se recolheu a sua casa na Suíça e, não raro apenas juntando pedaços de filmes de outros, soube impor pela montagem sua visão das coisas. Falou das guerras na Europa, da ascensão do neoliberalismo, da América, do socialismo.

Desde "Acossado", que sedimentou também o poder de seu ator-fetiche Jean-Paul Belmondo, até os mais recentes filmes-ensaio, é possível gostar ou não de sua arte, "entender" ou não o que está lá, achar chato ou não.

Mas três coisas não se poderá negar: a primeira é que se contam nos dedos os artistas com a inteligência e a inquietude de Godard; a segunda, cada vez que ele pôs a câmera para filmar, combinou cores, moveu seus atores e produziu beleza; a terceira, desde que começou a filmar o cinema nunca mais foi o mesmo.

O solo em que pisamos, quem o fecundou foi Jean-Luc Godard. Com chatices e erros, mas também e sobretudo com gênio e grandeza.

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