Descrição de chapéu Filmes Televisão

Como evangélicos, de 'Vai na Fé' a cinema, ganham espaço e exorcizam os estereótipos

Crescimento de grupo religioso pressiona o audiovisual, que quer fazer as pazes pondo crentes e pastores em evidência

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Bruna Mascarenhas em cena da segunda temporada de 'Sintonia', da Netflix Divulgação

São Paulo

Saias que terminam próximas aos pés, cores insossas e discretas, jeito acanhado mas incisivo e Bíblia na mão. Essa é a imagem do evangélico consagrada pela mídia depois de décadas de representações em segundo plano e, com frequência, estereotipadas.

Regatinha e jeans, rosto maquiado, jeito extrovertido e microfone na mão. É assim, no entanto, que a protagonista crente de "Vai na Fé", vivida por Sheron Menezzes, se apresenta.

Sheron Menezzes caracterizada como a personagem Sol de 'Vai na Fé'
Sheron Menezzes caracterizada como a personagem Sol da novela 'Vai na Fé', da Globo - Globo/João Miguel Júnior

Nova novela das sete da Globo, a trama ilustra uma mudança de espírito recente na televisão e no cinema brasileiros. Se antes obras de ficção recorriam a clichês ou ignoravam completamente os evangélicos, hoje há claras tentativas de exorcizar o preconceito e se reaproximar, diante de seu avanço nos dados demográficos.

Se eles beiravam 15% dos brasileiros nos anos 1990, já são ao menos 31%, segundo pesquisa Datafolha de dois anos atrás. Até 2032, a expectativa é que sejam o maior grupo religioso no país, destronando os católicos.

"Nossa matéria prima é o Brasil e o brasileiro. Representar a sociedade de maneira contemporânea, inclusiva e afetiva é fundamental para a nossa missão. As transformações da sociedade brasileira sempre foram retratadas pelas obras de dramaturgia da TV Globo. Com a transformação religiosa em andamento, não será diferente", diz Amauri Soares, diretor da emissora.

Ele afirma que a direção não intervém no trabalho dos dramaturgos, mas que resultados de pesquisas e análises sobre os espectadores são compartilhados para que sirvam de "insumo para o processo criativo".

O fato de a maior emissora do país ter se ajoelhado diante dos números é bastante significativo, mas não é um caso isolado. Na semana retrasada, o Star+ também deu a bênção ao grupo com a série "Santo Maldito". A Netflix já havia feito o mesmo com "Sintonia". Nos cinemas, "Nas Ondas da Fé", "Céu de Agosto", "Divino Amor", "Medusa", "O Pastor e o Guerrilheiro" e "Mato Seco em Chamas", que estreia agora, engrossam o coro.

Há ainda projetos guardados para o futuro, como "O Clube das Mulheres de Negócios", filme de Anna Muylaert que terá mulheres representando pilares da sociedade brasileira, como a Igreja Evangélica, e "Pedágio", em que Carolina Markowicz vai filmar a relação de uma mãe protestante com o filho LGBTQIA+.

Cada obra encontrou um caminho para incorporar a fé na trama, com diferentes níveis de destaque. Nem sempre o roteiro fala sobre religião, mas ela está lá, mesmo que apenas como característica para que o público compreenda as motivações e atitudes de determinado personagem.

Em "Mato Seco em Chamas", por exemplo, a trama é moldada a partir de figuras reais de Ceilândia, nos arredores de Brasília. Como várias delas frequentam templos, pareceu natural que os diretores Adirley Queirós e Joana Pimenta levassem a câmera para dentro de um deles.

Lá, puseram a lente no rosto de uma personagem que passa bons minutos cantando hinos de louvor, mesmo que aquilo não faça a história andar, e, na sequência, gravaram a mesma moça falando sobre o "rodízio de mulheres" que é sua vida amorosa, andando de moto, cantando funk e expressando o desejo de abrir um bordel.

"Historicamente, a gente tem uma visão estereotipada dos evangélicos. É um erro tremendo que a classe cinematográfica cometeu, fazendo parecer que esse universo é um monólito", afirma Queirós, que se incomoda com o lugar de "idiota" ao qual se convencionou pôr esses personagens, com frequência vistos como alívio cômico.

É com essa ideia que "Nas Ondas da Fé" brinca e, por fim, subverte. O filme ri com os evangélicos, e não deles. Assim, Marcelo Adnet interpreta um narrador de rádio gospel que mobiliza uma massa de fiéis, mas fica claro que ele o faz por ser, ele próprio, um homem do povo. Enquanto se distancia de uma igreja já estabelecida, o personagem vai mostrando que é possível compartilhar a palavra de Deus sem recorrer a caminhos pecaminosos.

Em "O Pastor e o Guerrilheiro", vemos um líder religioso que é preso pela ditadura militar –erroneamente, mas nem por isso ele deixa de confortar e se solidarizar com a jornada de seu companheiro de cela, este sim um membro da luta armada. Em "Medusa", meninas que cantam numa igreja percebem que é possível questionar as regras engessadas e extremistas que seguem.

Na série "Santo Maldito", o divino e o ceticismo são postos frente à frente quando um professor ateu remove um tubo de respiração da mulher, em coma no hospital, fazendo com que ela volte do estado quase terminal em que estava. Ao ver um vídeo do ocorrido, um pastor de uma comunidade periférica, cheio de nuances, o aborda, crente em seu poder de evangelização.

"É muito perigoso a gente se isolar na nossa bolha, e todo artista quer falar para o maior público possível", diz o diretor da série, Gustavo Bonafé, ao que Augusto Madeira, que pela segunda vez interpreta um pastor, responde que "na classe artística há um preconceito muito grande, não acho que já exista um equilíbrio".

Jasmin Tenucci, do curta premiado em Cannes "Céu de Agosto", prepara um longa-metragem que bebe da mesma fonte. Ela concorda que existe preconceito e chama de "condescendência elitista" o retrato consagrado dessas pessoas no cinema e na TV, que os vê como limitados e enganados. Ou pior, como fanáticos, violentos e intolerantes.

Foi assim em "Meu Bem Querer", novela da Globo da década de 1990 que trazia, pela primeira vez, um pastor protestante que preparava um aprendiz vilanesco. Em 2008, "Duas Caras" foi além ao mostrar uma evangélica, de Bíblia na mão, chamando um homossexual e uma ex-usuária de drogas grávida de "filhos do demônio" e incitando uma multidão a espancar os dois. "Eu sou a mão da Justiça divina", diz ela antes de arremessar uma pedra.

A cineasta, no entanto, percebe uma mudança, que ela credita não só a dados demográficos, mas também à influência da religiosidade na eleição de Bolsonaro há cinco anos. Com isso, não só o audiovisual, mas a esquerda como um todo percebeu que dialogar era necessário, afirma Tenucci.

E, claro, é impossível ignorar o crescimento da Record, que com suas novelas bíblicas viu estourar sua audiência e emplacou filmes religiosos entre as maiores bilheterias do cinema nacional. Priscila Chéquer, professora na Universidade Estadual de Santa Cruz, na Bahia, que estuda o fenômeno, diz que a emissora foi essencial para transformar os evangélicos em mercado consumidor aos olhos do audiovisual.

Ela diz ainda que é importante destacar a pluralidade desse grupo dito "evangélico". Apesar de parecer uma massa homogênea para quem está fora, essa parcela da população é plural, seguindo um emaranhado de doutrinas, ritos e costumes que se distanciam por vários motivos.

Eleito deputado federal pelo PSOL do Rio de Janeiro, o ator, escritor e pastor Henrique Vieira afirma que a vertente neopentecostal é, além da que mais cresce no país, aquela que mais recebe atenção da mídia, em detrimento de batistas, metodistas, presbiterianos e tantos outros. E há nesses grupos igrejas progressistas, com sacerdotes e fiéis engajados em causas como a luta racial, os direitos LGBTQIA+, o feminismo e até mesmo a legalização do aborto.

"É importante dizer que existe um campo de fundamentalismo evangélico no Brasil que é muito perigoso e violento, e muitas pessoas carregam traumas por conta disso. Eu não estou aqui para romantizar a experiência evangélica, mas para mostrar que ela é uma religião diversa e de caráter popular", afirma ele, que interpretou um frei no longa "Marighella", de Wagner Moura.

Curiosamente, os evangélicos parecem trilhar o mesmo caminho dos LGBTQIA+, que nos últimos anos têm conquistado espaço nas telas e posto um fim à tentação de recorrer aos estereótipos que os subjugaram a papéis cômicos, vilanescos ou trágicos.

Questionado se a maior atenção aos espectadores evangélicos pode comprometer a aparição de pautas progressistas nas telas, Vieira diz torcer para que isso não aconteça, mas que dependerá da disposição de criadores e produtoras em enxergar esse público sem preconceitos.

"Eu espero que eles não peguem a perspectiva conservadora e transformem na única experiência existente no campo evangélico. Isso seria terrível, daria um sinal para a sociedade de que ser evangélico é isso e que não há outra possibilidade. Seria um gol contra, um desserviço para a própria democracia."

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.