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Betty Milan

Betty Milan: Zé Celso devorou outras artes com seu teatro brasileiro

Em sua obra-prima 'Os Sertões', vendo o chão do Oficina coberto de areia, imediatamente nos transportamos para o sertão

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Betty Milan

Escritora e psicanalista, é autora de “O Papagaio e o Doutor” e “Baal”; membro da Academia Paulista de Letras

Por que foi que, aos 86 anos, Zé Celso se casou com Marcelo Drummond, oficializando uma relação de 40 anos e fazendo dele o seu legatário universal? No século 19, houve uma pandemia, que Dostoiévski previu no último capítulo de "Crime e Castigo", escrevendo que uma praga originária da Ásia cairia sobre o mundo e as pessoas morreriam por causa de um ser invisível que entrava no corpo humano.

Como todo grande artista, Zé Celso era vidente. Acredito que tenha antevisto o fogo que incendiou mais da metade do seu corpo.

Zé Celso em 2020 - Karime Xavier/Folhapress

Iniciou a carreira de dramaturgo aos 21 anos com "Vento Forte para Papagaio Subir", de 1958. Daí por diante, o vento não parou de soprar, a exaltação da terra dei pappagalli por Zé Celso, que cantou de mil e uma maneiras o Brasil. Vou me deter em sua obra-prima, "Os Sertões" —por ter acompanhado o processo de produção e escrito sobre a peça.

A primeira parte de "Os Sertões" é "Terra". Lembro quando as portas azuis do teatro se abriram e os atores, dançando e sambando, foram nos buscar. Vendo o chão coberto de areia, imediatamente nos transportamos para o sertão.

Ouvimos Marcelo dizer: "Os Sertões foram escritos por Euclides da Cunha, nos raros intervalos de folga. Irritam-me as meias verdades que não passam de mentiras. Autores que citam os fatos, mas desfiguram a alma. Quero ser bárbaro entre os bárbaros. Mais antigo do que os antigos".

Já com isso, o Teatro Oficina fez a língua soberba de Euclides da Cunha ressoar, dita pelas crianças do Bexiga, de rua ou dos cortiços da região. O espectador foi logo introduzido no espaço do Vaza-Barris, às margens do qual ficava Monte Santo.

Euclides da Cunha –Marcelo vestido de terno e chapéu preto– e o [Antônio] Conselheiro –Zé Celso com um lençol branco e um cajado– entraram em cena para ficar face a face e, no contexto do espelhamento, pedir o fim da maldição de que é vítima o sertão. Tratava-se evidentemente de uma metáfora à maldição de que é vítima o nosso eterno país do futuro.

Nesta primeira parte da peça, discutiam a terra, o rio, as árvores e as flores. Todos os seres ditos inanimados eram personagens, como todos os atores eram narradores. Subitamente, apareceu um e o Conselheiro falou do mal de não ser amado e da jura de não matar ninguém.

Vários atores o encarnaram contando sua história trágica. Além de ter sido o maior homem de teatro brasileiro, Zé Celso foi um humanista e um educador. Sem nunca ser nacionalista, ele ensinava o Brasil.

À "Terra", seguiram-se "O Homem", "O Transhomem", "Luta 1" e "Luta 2". Em "Homem", Zé Celso fez pouco do "brasileiro típico", dizendo que não passa de um mito. Ele insistiu na diferença que é o nosso tesouro. Nessa parte, graças à insistência do diretor, o trabalho dos atores foi excepcional por encarnarem o personagem com a maior convicção e serem capazes de se desnudar em público –como só o ator se desnuda.

  • Sabem, graças ao seu ofício, que o ator se torna avergonhado e deve renascer com sua inocência em cena. A contribuição das crianças, decerto, foi decisiva para a aprimoração dos adultos e permite dizer que o Oficina é o "Teatro Brasileiro da Inclusão".

Como "O Homem", "A Terra" é uma metáfora. Mostra que Canudos é aqui. Os sem-terra estão no campo e os sem-teto espalhados pela cidade, na rua Jaceguai, na frente do Uzyna Uzona, que é uma usina de formação e de paz.

O "Trans-homem", o espectador assistiu se transformando. O espetáculo, que durou sete horas, poderia ter durado mais sete. Shakespeare queria que o espectador gostasse da peça e permanecesse no teatro, onde podia comer e beber. O mesmo se passava no Oficina que fazia pensar no Globe Theater, além de resplandecer como um templo de amor e paz. Evoé, Buda!

No papel de Conselheiro, Zé, vestido de azul, viveu a sua saga, indiferente aos perigos, alimentando-se mal, dormindo à beira dos caminhos porque a vida se compreende melhor pelo "incompreensível dos milagres". Mais parecia um anjo, quando ele, com uma coroa de folhas, encontrou Marcelo —no papel de Euclides da Cunha.

Quem sabia da paixão entre os dois —uma paixão que sustentou o Oficina— olhava a cena, escutando que a multidão precisa de alguém para traduzir os seus anseios indefinidos e conduzir nos trilhos do céu. Profeticamente, o Conselheiro disse: "As águas do mar se tingirão de sangue. A terra se confrontará com o céu. Haverá chuva de estrelas e será o fim".

Antes de a matança começar, o teatro-corredor foi atravessado por uma procissão gozosa, ao som de um expressivo violino e uma esteira se desenrolou no chão para oferecer ao público um banquete de frutas brasileiras.

No catálogo do espetáculo seguinte, "A Luta 1", Zé Celso evocou quarenta anos de tropicalismo e a influência de Oswald de Andrade, a quem ele dedicou a peça. As atrizes eram impressionantes, sobretudo quando apareceram enroladas num mesmo pano que também servia de xador, dando vida a uma muçulmana de muitas cabeças, uma figura onírica que reenviou ao Oriente de todas as guerras e universalizou Canudos.

Zé Celso alcançou mais uma vez, nesta parte da epopeia, a meca da grande arte, que se materializou em cenas poéticas porque, para Zé Celso, o que interessava não era a significação que importa, mas o sentido. Não é o co-nhecimento, mas o cu-nhecimento —o saber que passa pelo corpo, ou seja, a sabedoria.

Por fim, "Luta 2" representou o ataque ao portal das luzes das Cunañas. As cenas do espetáculo eram quadros pintados pelo diretor e pelos atores. Acompanhei os bastidores e vi como Zé Celso liberava o ator, ensinava a dizer o texto a partir da música e apontava na atuação o seu gesto mais expressivo.

As imagens que resultaram desse trabalho, em que Zé Celso era tão dependente dos atores quanto estes dele, arrebatavam como as imagens dos cineastas, cuja referência é a pintura. O teatro de Zé Celso também foi cinema, além de ser ópera. Ele não se limitava ao que se convenciona chamar de teatro, porque antropofagicamente devorava os outros gêneros.

O elenco todo era bom, além de bonito. Formados no credo oswaldiano do pensamento ávido da totalidade, do humor e da vertigem, os atores do Oficina são únicos. Estão preparados para fazer o público entender que as tropas, sejam elas quais forem, rumam sempre para a morte.

Com eles, Zé Celso conseguiu fazer da história real de Canudos uma história metafórica e universal. Prova disso é o sucesso de "Os Sertões" na Alemanha. Primeiro em Recklinghausen, que fica no coração da indústria militar alemã e produziu as armas utilizadas na Guerra de Canudos. Ali, para apresentar "Krieg im Sertao", o produtor reconstruiu o espaço do Oficina tal como foi concebido por Lina Bo Bardi.

Obrigada, Zé. Apesar de mortal, você foi um Deus. Seu culto vai continuar.

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