Descrição de chapéu
Paulo Venancio Filho

Obra de Tunga é imantada por energia que tudo atrai e articula para criar poesia

Curador analisa trajetória do artista que morreu em 2016, aos 64 anos

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Paulo Venancio Filho

Curador, crítico de arte e professor titular de história da arte da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Autor, entre outros livros, de “A Presença da Arte” e “Primos entre Si: Temas em Proust e Machado de Assis”. É curador da mostra “Tunga: Conjunções Magnéticas”, em cartaz no Itaú Cultural até 10 de abril de 2022

[resumo] Curador de exposição de Tunga em cartaz no Itaú Cultural analisa como a ideia obsessiva do corpo nu marcou toda a obra do artista, numa busca por reinstaurar o corpo na escultura impondo sua poética de elementos estranhos e incongruentes.

A obra toda de Tunga se desdobra em torno do corpo nu. Tal ideia, que perseguiu e da qual nunca se desvinculou, estava já expressa em texto de 1976, intitulado "Prática de Claridade sobre o Nu"; lançar uma nova luz sobre um corpo e explorá-lo até a sua reaparição reinventada; reinstaurar o corpo na escultura —o corpo é a escultura e vice-versa.

Toda a obra busca a ideia obsessiva do nu, desdobrando-se a cada momento, a cada trabalho. Trata-se da cena erótica primordial, resumida na frase de Georges Bataille: "A ação decisiva é o desnudamento".

Os primeiros desenhos de Tunga (1952-2016), abstratos e intimistas, intrigantes figuras, recordam, por afinidade, a noiva da cena erótica de "O Grande Vidro" —ou "A Noiva Desnudada por seus Celibatários, Mesmo"— de Marcel Duchamp, tão admiradas por Tunga.

É para aí que se sentia atraído, para o "outro" Duchamp, aquele da "imagérie" erótica não literal, insinuada por figuras desprovidas de um apelo sensual senso comum —"cosa mentale", poderia se dizer, e que, naquele início, indicava uma afinidade eletiva que se reuniria a outras companhias ao longo de toda a obra, prática constante, intensa, obsessiva, que vai prosseguir e determinar toda ela do começo ao fim.

O Duchamp, desenhista eventual, André Masson e Henri Michaux: em tais nomes percebe-se a escolha e valor que Tunga atribuía a uma certa lateralidade artística, distante da centralidade das influências daqueles anos 1970 e que é uma marca das admirações de Tunga. Tais escolhas, improváveis combinações especialíssimas, se encontram nos indícios primeiros que influenciaram a formação do jovem, ainda adolescente, artista.

Transcorria nesses mesmos anos a transição e mesmo a superposição entre a pop art e a arte conceitual da qual, estranhamente ou deliberadamente, não participava. Sua ligação transversal e idiossincrática com as margens do surrealismo estruturava a poética que caracterizaria seu trabalho dali em diante.

Portanto, não foi o Duchamp conceitual tão evidente na arte contemporânea que o atraiu, e sim aqueles trabalhos que constituem a "mitologia" duchampiana: os objetos menores, um tanto excêntricos, enigmáticos, plenos de possíveis descobertas reveladoras do mundo do erotismo polimórfico que, de agora em diante, vai se manifestar na criteriosa escolha e no uso dos materiais.

Uma ansiedade ambiciosa já se encontrava mesmo nas menores obras, aquelas tridimensionais que Tunga denominou "Objetos do Conhecimento Infantil"; uma grandiosidade íntima que em alguns momentos, mais tarde, atingiria a suntuosidade —o grande e o pequeno são variações homotéticas indistintas em sua obra.

Na seleção criteriosa dos materiais, brutos e refinados, na esmerada e meticulosa execução, se acentuava um programa deliberado que daria à obra uma autoridade, relevância material e o desejo de restaurar certa magnificência à arte contemporânea.

Daí a recusa, por um lado, à unilateralidade conceitual e à banalidade decorrentes muitas vezes do "ready-made" e, por outro, a busca de um mitologia afim da vasta e intrincada narrativa duchampiana.

Se a diversidade de seus interesses o levava para áreas remotas, divergentes, incongruentes —ciência, filosofia, literatura, ocultismo, religião—, todas eram reconduzidas como fontes de energia que se unificavam no trabalho e nele se metabolizavam. Essa erudição produtiva, fluída, inclassificável, se expandia e se fixava em cada ideia a cada momento da transmutação plástica, imersa no fluxo de obra a obra.

Esse domínio refinado de interesses deu à sua obra esse ar inconfundível de preciosidade longamente elaborada, destinada a durar e permanecer. Faltasse esse refinamento específico seria falsa, inconsequente, artificial, insuficiente, sem a densidade do efeito que busca provocar.

Suas primeiras esculturas já indicavam uma prática divergente, heterodoxa. Articulando a matéria mole do feltro a esquemas geométricos "duros", Tunga realizou suas primeiras esculturas, os "Albinos", corpos recortados no feltro e remontados por meio de parafusos e cordões em diversas variações.

Neles, a oposição entre a geometria estruturada das formas e a matéria flexível do feltro sugeria uma possível tensão e reação do inanimado em se reivindicar como coisa viva —fenômeno semelhante aos "Bichos", de Lygia Clark. Não é também sugestivo que o branco do feltro recordasse os nus das esculturas clássicas gregas?

Aí se iniciava uma profunda ligação de Tunga com a matéria, ou as matérias. Serão muitas aquelas que vão identificar, de agora em diante e à primeira vista, um trabalho seu.

Logo, certas obsessões peculiares vão estabelecer uma família de fetiches: cabelos, por exemplo, são um dos mais notáveis. Em torná-los matéria escultórica —o que em certa medida já são—, o trabalho entrelaça, como sempre, corpo e escultura.

Portanto, suas famosas "Xifópagas Capilares entre Nós" só poderiam estar unidas pelos cabelos, sendo os fios os condutores da "energia" que envolve as adolescentes em uma atmosfera lírica, musical, encantatória tal uma mesma melodia repetida e repetida —uma ode à puberdade, pois se supõe que só nessa idade os cabelos manifestam sua pura sensualidade nascente.

Ambas encontram-se envoltas num halo de liberdade e fraternidade que só a elas é dado e só elas conhecem e vivenciam —seria a revisitação da infância que as fantasiaria unidas pelos cabelos, sua mãe e tia, irmãs gêmeas? Estaria Tunga aí resinificando na sua imaginação, num mito pessoal ou fábula imemorial?

Essa dualidade estranha, heterodoxa, não familiar, vai percorrer toda a obra, assumindo formas variadas em seus fascinantes amálgamas heteróclitos. Os cabelos vão perseguir o imaginário com a força e a insistência do fetiche.

Tal processo intrincado de comunicação entre as coisas, o trabalho apresenta literalmente muitas vezes e, em primeiro lugar, como trança. Entrelaçamento que se repete de tranças em tranças, de dimensões e formatos diferentes, tal como a variação dos penteados, estes também —e por que não—, esculturas.

Tranças que supõem um escalpo, o corte violento do objeto fetiche; escultura metálica, mas flexível, sinuosa, muitas vezes amarrada —um toque final—, com um irônico, gracioso e perverso laço de seda colorido.

Logo mais, ocorre a "descoberta" do ímã, a matéria por excelência da prática de Tunga. Nenhum outro material resume tão bem o fundamento do trabalho: unir, conectar, ligar, transmitir, conjugar etc. O imã como a matéria última, o próprio pensamento materializado, a pedra filosofal da sua prática artística.

Deve-se conceder a Tunga o título de "inventor" do ímã na escultura contemporânea —pela descoberta, pela constância e intensidade do uso. Só esse material "avesso" à escultura poderia chamar sua atenção, magnetizá-lo; a matéria "ready-made" que "in-corpora" à sua prática.

Com ele, torna-se desnecessário qualquer elemento que ligue as partes. O ímã já é a parte e o todo, ele próprio a "cola" que dispensa qualquer intermediário. É o elemento material daquilo que Tunga chamava de energia de conjunção ou cola poética —o ímã como metáfora, assim poderíamos chamar o processo escultórico de Tunga. É esse fenômeno magnético que vai dar "corpo" à escultura e tudo colar.

A presença dos ímãs como elemento da "energia de conjunção" expressa fisicamente o equivalente processo mental de aproximar realidades distantes, físicas e imaginárias, e amalgamá-las na matéria e na substância dos trabalhos.

Uma matéria que manifesta a "energia", como o ímã, teria que ter uma vida longa na obra e, como tal, é entendido como uma manifestação poética da natureza, uma dádiva a ele concedida e em troca constante, dando e recebendo. Tal é o espírito daquilo da "energia de conjunção", Eros, em outras palavras.

Para ele, assim como escreveu Bataille, "o sentido último do erotismo é a fusão, a supressão dos limites".
Os elementos da escultura —uma categoria um tanto limitada para definir sua obra— eram já entendidos como relíquias, troféus, fetiches. Dentes, ossos, cabelos são elevados ao grau mais alto da preciosidade, o de verdadeiras joias.

Daí tranças, a parte do corpo feminino ostensivamente nua, que só o pudor implícito na trança pode dissimular. As tranças trazem rememorações do conhecimento infantil, contêm sua possível reinstauração imaginária e ocorrem em diversos formatos e tamanhos. Nelas, as qualidades metálicas são exploradas como nenhuma outra.

É como se fizessem ressurgir a potência de uma matéria única na sua dureza, brilho, peso, maleabilidade, volume, formas. A sinuosidade plástica do metal pode deslizar para uma tradução e extensão biológica em "Vanguarda Viperina", nada menos que uma escultura viva, que não é senão a simulação da cópula ofídica, o abraço sensual de duas cobras, uma refletida na outra como verdadeiras gêmeas.

Em "Ão", o trabalho já clássico de Tunga, experimentamos uma viagem por dentro de uma escultura —uma escultura "nua". Fita de Moebius topológica, "Ão" é a infindável diuturna circulação dentro de um túnel e de uma canção, "Night and Day", onde não se sabe se é dia ou noite, movimento incessante que parece levar a algum lugar e leva a lugar nenhum.

Voltas e voltas, incalculáveis, inumeráveis, mesméricas, intoxicantes. Percurso estranhamente monótono e excitante. Nesse experimento fílmico, delirante, só a película que circula pela galeria dá a dimensão da realidade. Somos lançados no interior de um carrossel fantástico vindo de um laboratório de outros tempos.

"Ão" é um palíndromo espaço/visual, sem letras, palavras, vazio, nu —o toro despido. Um "outro" "Nu Descendo uma Escada", de Duchamp, vertido em um processador topológico.

A aspiração à monumentalidade, a uma expansão da escala que não é só física, insiste também na construção de uma mitologia, uma narrativa que se desenvolve como o movimento de uma espiral envolvendo elementos anteriores, etapas autofágicas da obra que se desdobram.

Trabalhos anteriores são resgatados em outro plano, rearticulados e ampliados, conectando-se um ao outro, formando um todo do que antes estava separado, desmembrado, e que se volta a reunir em observação à seletividade intrínseca da obra. A cada etapa, o corpo (o corpo é escultura e escultura é corpo) retorna como uma unidade final e provisória, à espera de uma nova realização adiante.

Diríamos que o verbo "imantar" é aquele que designa e simboliza a junção dos elementos dispersos, o processo da energia agregadora do qual o ímã é apenas a matéria física, uma das partes. A outra é a "cola poética" da livre imaginação.

Uma se enreda na outra, penetrando, desdobrando-se na outra, obedecendo à lógica da magnetização, que, como exemplo, faz da escultura um complexo sustentado por placas metálicas verticais fixadas por ímãs e atravessadas por fios, lembrando um gigantesco e anacrônico arcaico gerador de energia ou, combinação tão frequente, a plena nudez de uma monstruosa máquina erótica.

Assim é "Gravitação Magnética", exibida na 19ª Bienal de São Paulo, em 1987. Como em um único gesto, o desenho de fios metálicos se eleva, desce do teto do edifício e se esparrama pelo chão. A monstruosa cabeleira termina na cabeça decepada do artista —novamente o "corte" reaparece— e se une a um corpo desenhado por ímãs no chão.

Totem imprevisto, surpreendente, "Gravitação Magnética" impunha ao ambiente sua presença imponente, intimidante, quase ameaçadora.

A trajetória da escultura metálica se encerra em um "grand finale" em "À la Lumiére des Deux Mondes". Exibida sob a pirâmide do Museu do Louvre em 2005, é como o retorno antropofágico do nativo ao seu lócus de admiração, o provocante totem da reverência e da emancipação, regresso audacioso do filho pródigo.

Tal efeito só poderia ser consequente na França, em Paris, no Louvre, nada menos que no primeiro grande museu da cultura do Ocidente. Toda arte ali acumulada estava presente, revirada e reposta naquele magnificado objeto originário da escravidão colonial (o balagandã) e no tipiti e na rede indígenas.

Tal como antes, em "Gravitação Magnética", a obra surge como um monumento estranho, irônico e lúgubre, majestoso e decadente, contemporâneo e anacrônico, luminoso e subterrâneo. Todas as antípodas que essa obra unifica são, por assim dizer, a "summa" e o cadáver da escultura em metal de Tunga.

É notável como a palavra "poética" aparece tão frequente e insistente na ideação, descrição e qualificação que Tunga faz de seus trabalhos, o exercício da "cola poética" como prática artística. É a colagem moderna elevada a outro plano plástico, discursivo, espacial e simbólico.

Tudo, a princípio, pode ser "colado". Em tudo, há "cola", e a "poesia" é o agente universal dessa "cola". Nota-se, então, novamente uma atitude anticonceitual, antiminimalista, mais próxima das articulações da arte "povera", mas de um requinte e refinamento peculiares, retornando e ampliando as intenções plurais do surrealismo —tudo que determina, como poucas, a prática heterodoxa de Tunga no ambiente artístico contemporâneo.

Já na série "From la Voie Humide", uma das últimas que Tunga realizou, voltam a se revelar as tonalidades dos primeiros desenhos —azuis, verdes, laranjas—, cores que engendram uma delicada ordenação espacial, quase em suspensão, obras no ar, líricas, luminosas, totens contemporâneos.

Neles, o tripé sugere o trípode oracular da antiguidade pagã, consagrando não mais aos deuses, mas aos olhos contemporâneos ávidos e carentes, uma beleza autêntica e verdadeira.

Variante vertical e gigante dos balagandãs, de materiais e formas e cores diferentes, onde o tripé é o sustentáculo dos elementos conectados a ele, suporte e ligação —a "brutalidade" do imã dá lugar a uma delicada justaposição das partes.

O artista plástico Tunga, na galeria Luhring Augustine, em Nova York (EUA) - Marcos Augusto Gonçalves/Folhapress

São corpos abertos com seus diversos órgãos à mostra, ou ainda órgãos sem corpo; restos de um massacre, esquartejamento; o exemplo último de uma escultura por "conjunção"; nenhuma outra antes continha tamanha variedade de elementos na sua ficha técnica —um mix de cerâmica, resina, metal, cristais, pérolas... a "conjunção" na sua maior extensão.

A transversalidade de referências e materiais na obra de Tunga manifesta esse contágio metamórfico. Toda matéria contém uma simbologia, toda simbologia se manifesta nas matérias. Nenhum material se esgota nele mesmo, no seu silêncio e na imobilidade. Cada um deles é evocado para outro plano e se revela, renovado e ampliado, a cada trabalho.

Tal é a natureza deslizante da obra, do desenho para o objeto, do objeto para a escultura, da escultura para as instalações, das instalações para as instaurações, das instaurações para o desenho, sem qualquer tipo de hierarquia. Nada menos que fazer da arte uma rigorosa e delirante "mathesis universalis" poética.

Ao final, toda a obra são "tranças", "magnéticas", "palíndromos", "xifópagas" —palavras-título de seus trabalhos—, imantadas pela "energia de conjunção", o "ímã" universal da obra que tudo atrai, reúne e articula.

É a energia que faz a conjunção do estranho, do incongruente, do improvável, e os reverte para uni-los no trabalho, o qual Tunga reivindicava chamar, legitimamente, de poesia.

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