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Livro mostra relações históricas entre design brasileiro e alemão

Coletânea discute influências do concretismo da Escola de Ulm na produção do Brasil nos anos 50 e 60

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Flâmula da 3ª Bienal de Arte de São Paulo  (1955), de  Alexandre Wollner & Geraldo de Barro

Flâmula da 3ª Bienal de Arte de São Paulo (1955), de Alexandre Wollner e Geraldo de Barros Acervo da Fundação Bienal de São Paulo/Arquivo Histórico Wanda Svevo/Divulgação

Mario Gioia

Crítico de arte e curador independente

[RESUMO] Livro traça, com admirável riqueza histórica e iconográfica, os pontos de contato entre o concretismo da célebre Escola de Ulm, na Alemanha, e o desenvolvido no Brasil, investigando as interações de diferentes manifestações artísticas (arquitetura, fotografia, pinturas, design) e criadores.

Projetos de futuro. Eles emergem, materiais e utópicos, singulares e colaborativos, libertários e ainda feridos pelos traumas da guerra.

"boa forma gute form: design no Brasil 1947-1968" é pródigo em oferecê-los ao leitor que, ao percorrer as 224 páginas do volume, muito rico em iconografia (a de âmbito histórico é admirável), consegue traçar diversos pontos de contato do concretismo desenvolvido pela lendária Escola de Ulm, na Alemanha —abordado por meio das artes visuais, do design e da arquitetura, entre outras linguagens— e as novas manifestações construtivas que ocorriam no Brasil e em outros pontos do globo.

Menino sobre muro
Waldemar Cordeiro, parque infantil do clube Esperia Marginal Tietê, em São Paulo (1963). Imagem reproduzida no livro 'boa forma gute form' - Analivia Cordeiro/Luciana Brito Galeria/Divulgação

"O propósito de ‘boa forma gute form’, esboçado no início do processo, ficou nítido: adentrar a fascinante convivência, a colaboração profissional, as trocas de ideias desses personagens —artistas, arquitetos, teóricos, designers e poetas—, e, assim, a criação de uma obra de características semelhantes, que confunde os limites entre disciplinas ao mesmo tempo que o design busca sua emancipação", escreve Livia Debbane, organizadora da apurada edição, com pesquisa de fôlego de Bárbara Garcia e Ilana Tschiptschin.

Debbane reuniu 12 ensaístas para dissecarem as variadas e, por vezes, nada óbvias conexões no campo ampliado do concretismo. No panorama da ainda frágil bibliografia sobre design no Brasil, é uma empreitada ambiciosa, que transcende os limites das tradicionais áreas de atuação, pesquisa e produção, ganhando em contemporaneidade.

"O nosso fascínio talvez esteja na compreensão dessa tessitura como sinal de projetos em comum, no limite, projetos de futuro, apesar de suas particularidades. Projeto, uma boa palavra para definir design", escreve a organizadora do volume.

Já de início, na seleção de textos, pode-se ler um depoimento sobre o mestre Max Bill, de autoria de Karl Heinz Bergmiller, designer formado em Ulm, que teve atuação no Rio de Janeiro. O tom é leve e afetivo. Ao descrever a severidade por trás da criação de um "hocker", um simples banquinho, Bergmiller explica a lógica econômica, mas também a habilidade técnica do designer Billao ao desenhar a peça —que "hoje faz parte da história dos assentos modernos", como ressalta Bergmiller.

O professor de design David Oswald, em ensaio sobre os anos primevos de Ulm, sintetiza o espírito persistente na escola alemã, das aulas iniciais, em 1953, até o final, em 1968: "Apesar de todas as diferenças de opinião e mudanças de direção, houve também um grande consenso, que constitui o cerne da Escola de Ulm: o design como uma disciplina socialmente eficaz e, consequentemente, designers responsáveis".

Ele afirma que eram fundamentais as discussões acerca da incorporação do design à ciência e à tecnologia, e, acima de tudo, "da adesão inexorável à ideia de um processo de design racional e, portanto, compreensível".

Nessa linha austera, os projetos de Ulm chegariam ao mercado com peças que viraram clássicos modernos, como o bule de chá TC100 (1959), de Nick Roericht, o barbeador elétrico sixtant SM31 (1962), da Braun, desenvolvido por Hans Gugelot, e o básico banquinho ulmer (1954) de Bill, Gugelot e Paul Hildinger.

Outro aspecto que emerge da leitura de "boa forma" é a robusta produção em diferentes suportes do carioca Almir Mavignier e da paulistana (que passou a infância em Minas Gerais) Mary Vieira. Ambos ex-Ulm radicados na Europa —o primeiro, na Alemanha, e a segunda, na Suíça. Talvez pela distância, a excelência de suas trajetórias talvez ainda não tenha sido devidamente dimensionada no corpus criativo do país natal.

Em 2008, quando veio ao MAC Niterói em razão da coletiva "Poetas da Cor", Mavignier doou 29 cartazes de sua autoria para o acervo da instituição e conversou com a Folha. Na entrevista, destacou a importância de Ulm em sua trajetória, após a intensa experiência que viveu como monitor das oficinas de pintura com os artistas do hospital pisiquiárico do Engenho de Dentro, no Rio, no final dos anos 1940.

"Ulm, no início, foi uma escola cheia de idealismo e tolerância, uma grande criação, uma atmosfera fantástica. Trabalhar diariamente com Josef Albers era extraordinário. A mensagem principal de Albers como professor foi a de que a cor é relativa, mas a adaptação se deu pessimamente. Uma língua horrível, o alemão não tem salvação. Foi duríssimo. Os jovens alemães são muito sérios", contou ele.

Quem escreve o ensaio sobre o artista carioca é a venezuelana Julieta González, atual diretora artística de Inhotim, ex-Tate Modern e Masp. Citando a influência do crítico Mário Pedrosa, com a teoria da Gestalt, e do filósofo Max Bense, com a ideia de estética generativa, a curadora vê principalmente nos cartazes aditivos de Mavignier a contribuição do professor de Ulm na obra plástica do carioca.

"[Os cartazes] trazem a ideia de informação e a codificam em uma forma, em um cartaz de exposição, por exemplo —o que, para ele, consistia em informação tanto constante como variável, a qual então combinava dobrando, girando e repetindo um padrão para configurar outros padrões mais complexos que, por sua vez, criam o que Bense definia como ‘estado estético’", afirma González.

A obra de Mary Vieira ganha ensaio de Malou von Muralt, que lançará biografia da artista e é especialista em seus arquivos. Ela destaca a importância internacional de três cartazes assinados por Vieira, feitos entre 1954 e 1957. O primeiro, "brasilien baut", pertence à coleção do MoMA nova-iorquino. Já "dc7 panair do brasil", de 1957, é referência no ensino de design gráfico e também paradigmático, segundo publicações especializadas. E "brasilien baut brasilia", também de 1957, é referencial com os mesmos atributos das outras peças: economia de recursos na criação de uma obra direta, objetiva e, ao mesmo tempo, marcante por tais relações.

Von Muralt aponta que a artista não ganhou a projeção equivalente à obra de peso dela, já que "Mary Vieira: o Tempo do Movimento", mostra ocorrida em 2005 no CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil), organizada por Denise Mattar, foi uma iniciativa isolada. "Pioneira da arte concreta e cinética no Brasil, Mary Vieira radicou-se na Suíça sem nunca romper os laços com seu país", afirma a biógrafa, salientando o tridimensional "polivolume: ponto de encontro" (1970), instalado no Itamaraty, em Brasília.

No livro, há espaço também para nomes mais celebrados na arte brasileira, como o de Geraldo de Barros, figura importante em meios como fotografia, comunicação visual e design de móveis. A presença marcante do artista em iniciativas e agrupamentos diversos leva a autora do ensaio sobre ele, Mina Warchavchik Hugerth, a considerar que ele talvez tenha sido "o artista mais multifacetado da segunda metade do século 20 no Brasil".

"Barros definiria a arte concreta nos anos 1960 como ‘ideia-objeto’ a partir da associação entre artes visuais e industrialização". Ele conheceu Bill em Zurique, teve aulas informais de artes gráficas com outro importante professor de Ulm, Otl Aicher, e, em 1953, quando o escultor suíço o encontrou novamente em São Paulo, ofereceu-lhe uma bolsa de estudos na escola. Por motivos pessoais, Barros não pôde aceitar e indicou Alexandre Wollner em seu lugar.

Chico Homem de Melo discorre sobre a colaboração entre Barros e Wollner, tanto na forminform, precursor escritório de design no país, fundado em 1958, como em outros trabalhos gráficos, caso da flâmula da 3ª Bienal de Arte de São Paulo (1955). O autor ressalta que há na flâmula uma dimensão lúdica que raramente apareceria na produção de Wollner das décadas seguintes.

Cabe ao curador e crítico Felipe Scovino discutir a questão do papel social de artistas da época nesse contexto —concentrando-se no caso de Barros, de seu colega Waldemar Cordeiro e da carioca Lygia Pape.

O livro trata também de duas iniciativas educacionais pioneiras no terreno do ainda incipiente design brasileiro. A primeira, abordada por Ethel Leon no texto "Concretismo aplicado", é o Instituto de Arte Contemporânea no Masp, considerado a primeira escola de design do país, com atividades iniciadas em 1951.

A abertura foi concomitante a uma emblemática exposição individual de Bill no museu paulista, que influenciou numerosos artistas e profissionais que viriam a se tornar designers. Além de Wollner, passaram pelo instituto nomes como Mario Chamie, poeta, Ludovico Martino, designer, e Antonio Maluf e Mauricio Nogueira Lima, designers e pintores.

A outra iniciativa, no Rio, foi a Escola Técnica de Criação, no nascente Museu de Arte Moderna, com currículo e atividades idealizadas por Tomás Maldonado, argentino que viria a ser reitor de Ulm, e Niomar Moniz Sodré, fundadora da instituição.

A ETC seria o embrião da Esdi (Escola Superior de Desenho Industrial), vinculada ao governo do estado e aberta em 1963 no bairro da Lapa, onde se encontra até hoje. O ensaio da historiadora de arte Aleca Le Blanc traz relevantes dados e informações na formação de tais centros.

Por fim, o professor da Escola da Cidade Alexandre Benoit formula indagações provocativas a respeito de um certo engessamento e normatividade no ideário concreto e relembra, ao fim do texto, a história da mostra de Lygia Clark em Stuttgart, na Alemanha, em 1964, quando a artista encontrou seus "Bichos" pendurados com fios de nylon. Surpresa, ela não hesitou em cortar a expografia à la Calder e descer os trabalhos para o nível do chão. Prova real e cheia de concretude de como arte, vida, design e outras criações se desdobraram de modo peculiar nesta porção do Sul Global.

boa forma gute form: design no Brasil 1947-68

  • Preço R$ 169 (224 págs.)
  • Editora Art Consulting Tool
  • Organizadora Livia Debbane
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