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Daniel Golovaty Cursino

Como Esquerda radical incorporou antissemitismo nazista

Após Segunda Guerra, bloco soviético passou a propagar a mentira de um complô internacional sionista para submeter povos árabes

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Daniel Golovaty Cursino

Historiador formado pela USP e psicanalista. Membro do coletivo Golem e dos Amigos Brasileiros do Paz Agora

[RESUMO] O autor pontua que a Grande Mentira, técnica nazista de imputar aos judeus características deletérias, foi propagada por outros grupos em momentos diversos da história, da esquerda totalitária do pós-Guerra aos dias atuais, como as acusações antissionistas que fomentam a guerra entre Israel e Hamas.

"A Grande Mentira" é o nome pelo qual ficou conhecida a alegação nazista de que a Alemanha não perdera a Primeira Guerra Mundial no front de batalha, pois, na realidade, a derrota se deveria a uma "apunhalada pelas costas" desferida ao país pelos judeus alemães.

Essa acusação, no entanto, era apenas a ponta aparente de algo muito maior —a saber, a imputação, ao povo judeu, de um conjunto de características deletérias, que o singularizariam não "apenas" como traidor da Alemanha, mas como a verdadeira raiz do mal no mundo. Portanto, para que o "problema judaico" fosse resolvido, seria preciso, necessariamente, a completa aniquilação dos judeus.

Na realidade, a Grande Mentira não era uma mentira, afinal os nazistas fizeram exatamente tudo aquilo de que acusavam os judeus. Eles falavam a verdade, mas a verdade sobre eles mesmos (mecanismo projetivo).

Suas principais fontes eram a falsificação apócrifa conhecida como "Os Protocolos dos Sábios de Sião" e o panfleto do notório antissemita Henry Ford, denominado "O Judeu Internacional".

"Os Protocolos" estabeleciam os clichês fundamentais do antissemitismo radical moderno, enquanto o panfleto de Ford introduzia o conceito de "judeu-bolchevismo", incluindo com isso os movimentos socialistas no malévolo plano da "dominação mundial judaica", que passaria a se sustentar, assim, em dois pilares principais: as democracias liberais e o marxismo, ambos controlados pelo "dinheiro sujo" daquilo que os nazistas chamavam de "judaísmo internacional".

Judeus israelenses oram em frente ao Muro das Lamentações, em Jerusalém
Judeus israelenses oram em frente ao Muro das Lamentações, em Jerusalém - Lalo de Almeida/Folhapress

Poucos sabem, mas, alguns anos após a derrota da Alemanha nazista, a Grande Mentira seria reeditada pelo chamado bloco soviético, já no período da Guerra Fria.

Isso começou a tomar uma forma mais definida no último período de Stálin, quando o déspota soviético acusou a existência de um "complô das batas brancas", composto por médicos (quase todos judeus) que, a mando do "sionismo internacional", pretenderiam assassinar os principais dirigentes da União Soviética.

Durante toda a Guerra Fria, a máquina de propaganda soviética espalhou pelo mundo inteiro, através de seus países aliados e dos partidos comunistas, a Grande Mentira, alterada para se adaptar ao modo como a esquerda totalitária funciona.

Enquanto a extrema direita busca eliminar o conceito de universal da condição humana (argumentando que não há humanidade, apenas diferentes raças em luta), a esquerda totalitária o falseia, como se evidencia, precisamente, em seu antissemitismo.

Assim, como a esquerda não pode ser abertamente racista, não podem, igualmente, existir antissemitas em suas fileiras —apenas "antissionistas", de modo que todos os clichês do antissemitismo clássico teriam que ser deslocados para o significante "sionismo", procedimento espúrio que culminaria na construção de um verdadeiro decalque de esquerda da demonologia antissemita "nazi", a saber: a demonologia antissionista.

Nessa visão, o sionismo deixava de ser entendido como o movimento de libertação nacional do povo judeu, um povo singularmente disperso e milenarmente perseguido, por autodeterminação e segurança em sua pátria histórica, e passaria então a ser visto como o produto de um complô do imperialismo ocidental para submeter os povos árabes e islâmicos.

Isto fez com que, no lugar de críticas legítimas, tanto ao movimento nacional judaico quanto ao Estado de Israel, o antissionismo passasse a caracterizar-se, essencialmente, pela exigência da destruição de Israel, em nome da fraudulenta restauração de uma imaginária "Palestina histórica", "do rio ao mar".

Mas como é possível à esquerda antissemita atacar os judeus sem que isso seja visto como antissemitismo? O primeiro passo fundamental consiste na deturpação da palavra "sionismo", a qual passa, então, a adquirir um sentido completamente diferente e até oposto ao seu real sentido histórico.

Para tanto, a esquerda antissionista faz com que a palavra "sionismo" mude de categoria, deixando de significar o movimento nacional do povo judeu, que produziu uma nova configuração histórica deste povo, como língua (hebraico), cultura (literatura, arte, cinema, música, escolas, universidades, etc.), costumes populares, memória, história e identidade, transformando-o em outra coisa.

O movimento nacional judaico sempre abarcou, em sua esfera política, diversas correntes ideológicas, da extrema direita à extrema esquerda. Todas possuem um único ponto em comum: o direito de autodeterminação judaica em parte do território chamado Terra de Israel/Palestina. Com esse procedimento falseador dos antissionistas, portanto, o sionismo passa a ser entendido, em seu todo, como uma mera ideologia.

Uma vez perpetrada essa primeira violência, o segundo passo fundamental do antissionismo consiste, como dito acima, em deslocar para "o sionismo" todos os clichês antissemitas que historicamente constituíram a Grande Mentira nazi.

Quais são eles?

1) Superpoder e dominação global, através do controle da economia e dos meios de comunicação, bem como da ligação de todos "os sionistas" em um grande complô internacional ("lobby sionista" ou "sionismo internacional");

2) Indiferenciação: elemento fundamental da desumanização, uma vez que, no discurso antissionista, todos "os sionistas" são essencialmente iguais, sendo suas diferenças superficiais e, sobretudo, enganosas;

3) Perfídia, já que os sionistas seriam ladinos e desonestos, verdadeiros "pais da mentira" (demônios) e falsos cidadãos, desleais aos países em que vivem. Ubíquos, estariam sempre atuando e tramando na sombra;

4) Desnaturação, visto que o sionismo não passaria do resultado de uma conspiração imperialista para projetar poder e dinheiro ocidentais no Oriente Médio e, assim, garantir a ordem do capital nesta região;

5) Perversidade extrema, uma vez que "os sionistas" seriam entes malignos, agentes, por excelência, da destruição. Matariam por sadismo e roubariam os órgãos dos palestinos. Neste ponto, observamos um fenômeno incrível, que é a ressurgência e ampla divulgação, em meios de esquerda, do simbolismo dos judeus deicidas, a raiz histórica da acusação de perversidade extrema e de monstruosidade feita ao povo judeu.

Durante toda a história da Cristandade, os judeus foram massacrados e literalmente demonizados, mas continuaram a ser considerados o povo que dera ao mundo o Salvador. Apenas no século 19, com o desenvolvimento do moderno antissemitismo racial na Alemanha, é que Jesus passou a ser considerado ariano, signo de um aprofundamento no processo de violência simbólica que culminaria no Holocausto.

Agora, estamos vendo circular, nos meios desta esquerda antissionista, todo um discurso com uma iconografia em torno do "Jesus Palestino", o qual mobiliza contra Israel e o sionismo o imaginário da maldade deicida dos judeus. Retoma-se a acusação de que Israel teria por objetivo principal assassinar de forma intencional e planejada as crianças palestinas —o que marca, historicamente, o retorno do "libelo de sangue", agora no interior da esquerda.

Até aqui, temos todos os pontos do antissemitismo nazi deslocados para o antissionismo de esquerda, bastando substituir "sionismo" por "judaísmo" e "sionista" por "judeu". Mas os burocratas soviéticos precisaram inovar, visto que, como dito acima, a ideologia totalitária de esquerda não funciona, não pode funcionar, exatamente como a de direita.

Daí a importância capital, para o antissemitismo de esquerda, em fazer distinção entre os judeus, separando-os em "sionistas" (maus) e "antissionistas" (bons). Tais "bons judeus" foram, no passado, muitas vezes usados como interrogadores e chefetes (kapos) em processos fake, promovidos pelos regimes da Cortina de Ferro para perseguir e assassinar comunistas judeus.

Assim, a figura do "bom judeu antissionista" constitui o álibi necessário e até imprescindível para que os antissionistas possam negar —às vezes, até para eles mesmos—, com alguma verossimilhança, o caráter antissemita de sua ideologia.

Portanto, era preciso que o antissemitismo de esquerda (antissionismo) adicionasse à Grande Mentira nazi mais dois pontos:

6) O sionismo seria, essencialmente, colonialista e racista. Como já podemos observar, ao contrário de outros tipos de racismo, o antissemitismo não projeta os judeus apenas como inferiores, mas também como superiores, de modo que se trona possível ao antissemita se autocompreender como alguém que luta contra o sistema, uma espécie de "freedom fighter", combatendo a suposta dominação opressiva do "judaísmo internacional".

Assim, enquanto os nazistas queriam exterminar os judeus em nome da natureza, os antissionistas querem aniquilar Israel e os "judeus-sionistas" do mundo inteiro em nome da humanidade.

De fato, enquanto o antissemitismo nazista se apoia na ideia mitificada de natureza, o antissemitismo de esquerda deriva de uma corrupção da ideia de humanidade como valor. Daí o paradoxo de um racismo que pode se apresentar como universalista e antirracista.

7) A ideia de que o sionismo é racista e colonialista é levada ao extremo quando se chega a compará-lo ao nazismo, e Israel à Alemanha do Terceiro Reich. Essa acusação não é nova e não esperou pela atual guerra em Gaza. Na verdade, essa falsa equivalência existe há quase tanto tempo quanto o próprio Estado de Israel e é conhecida na literatura sobre antissemitismo do pós-Guerra como "inversão do Holocausto".

Em breve, os judeus que não possuam o carimbo de "bons judeus antissionistas" não serão agredidos como judeus que são. A tendência parece ser a de que, a exemplo da lojista judia agredida no interior da Bahia, os judeus passem a ser agredidos apenas como "sionistas".

Para aqueles judeus que ainda não estão habituados a isso, essa acusação pode produzir algum espanto, pois a pessoa pensa: "Eu não vivo em Israel. Não participo de nenhum movimento político. Sim, eu acredito que Israel é um Estado legítimo. Mas desde quando isto é um crime?".

Essa perplexidade só desaparece quando o judeu (ou judia) em questão percebe que não há nenhuma correspondência ou traduzibilidade entre sua própria compreensão do sionismo e a calúnia de "sionista" da qual está sendo vítima. Além disso, substituir "judeu" por "sionista" oferece duas vantagens importantes para os antissemitas: permite que eles legitimem seu discurso publicamente como não sendo racista e, ao mesmo tempo, contornem a lei penal brasileira.

O conflito israelense-palestino —com esta terrível guerra em Gaza, iniciada pelo massacre de 7 de outubro perpetrado pelo Hamasencontra-se em seu momento mais agudo desde a guerra de 1948. Isso cria um ambiente propício para que tanto antissemitas quanto islamofóbicos saiam do armário e potencializem seus discursos de ódio na esfera pública, com o agravante de que a dinâmica das redes sociais os favorece.

Seguindo autores como Robert Kurz e Moishe Postone, tenho argumentado que o conflito entre israelenses e palestinos é um conflito inflado, pois condensa em si as duas principais narrativas mistificadoras e regressivas sobre a crise mundial: a da guerra de civilizações da direita e extrema direita (tanto ocidentais quanto islâmicas) e a da "guerra antiimperialista" da esquerda campista ou, mesmo, da dita esquerda "decolonial", ambas tratadas pelo Hamas e o Hezbollah como seus "amigos da esquerda global".

Isso produz um ambiente favorável para que muitos racistas parasitem ambas as causas —também há muitas calúnias sendo divulgadas contra os palestinos—, as quais, definidas adequadamente, são totalmente justas.

A reivindicação por autodeterminação que fundamenta historicamente o movimento sionista é a mesma que torna a ocupação e colonização israelense de territórios palestinos, mais que uma abominação, um crime contra a humanidade.

Inversamente, a causa palestina tem sua legitimidade abalada quando acolhe em seu interior o antissemitismo e seu discurso criminoso da destruição de Israel. Os extremismos de ambos os lados se retroalimentam da promoção ativa desta confusão (a própria palavra "guerra" vem da raiz indo-europeia "wers", que significa confusão).

Portanto, para alcançar uma paz justa entre israelenses e palestinos, é crucial reconhecer as dificuldades únicas desse conflito, que o tornam diferente de qualquer outro conflito nacional. A necessária restauração do campo político nos obriga a um compromisso anterior com a recuperação das palavras, em sua capacidade de indexar e significar realidades determinadas.

Somente assim elas poderão deixar de funcionar como veneno e armas verbais para se tornarem as sementes de um autêntico entendimento do outro, em sua realidade concreta de dor, mas também de aposta no valor da vida e de esperança de paz e reconciliação.

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