Otavio Frias Filho foi antena das Diretas na Folha

Diretor de Redação, que morreu há cinco anos, teve papel fundamental na adesão do jornal à campanha que marcou época

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Oscar Pilagallo

Jornalista, é autor de 'História da Imprensa Paulista' (ed. Três Estrelas) e 'O Girassol que nos Tinge – Uma História das Diretas Já, o Maior Movimento Popular do Brasil' (Fósforo)

[RESUMO] Otavio Frias Filho, diretor de Redação da Folha que morreu há cinco anos, esteve à frente da operação de engajamento do jornal na campanha das Diretas, 40 anos atrás, de forma pioneira na grande imprensa. Embora derrotado no Congresso, o movimento teve papel central na redemocratização e levou a Folha a uma posição de liderança entre os principais jornais brasileiros. Otavio implementaria nos
anos seguintes um projeto editorial de jornalismo crítico, pluralista e apartidário, que fez escola no país.

Nessa época, não se falava em Diretas Já, como mais tarde ficaria conhecido o movimento pela volta da eleição direta para presidente da República, extinta logo depois do golpe de 64. A articulação tendo em vista esse objetivo estava restrita aos gabinetes de políticos de oposição, que trabalhavam em prol de um consenso em relação à sua prioridade na agenda nacional.

Comício pelas Diretas Já! na praça da Sé, região central de São Paulo, em abril de 1984 - Jorge Araújo/Folhapress

Não que algum partido de oposição fosse contra a proposta —mas parlamentares de esquerda davam mais ênfase à defesa da convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, que se encarregaria de varrer o "entulho autoritário", termo então usado em referência ao conjunto de leis e atos institucionais baixados pelos militares.

O desinteresse pela iniciativa visando a volta da eleição direta tinha uma marca de nascença. Em 2 de março de 1983, os jornais ignoraram a proposta de emenda constitucional apresentada pelo deputado Dante de Oliveira (PMDB-MT), que havia conseguido as assinaturas necessárias de seus pares no primeiro dia daquela legislatura.

Por um tempo, o tema continuou ausente da pauta, salvo por menções esporádicas. No final daquele mês, a Folha publicou um editorial a favor das Diretas, argumentando que a tese só teria êxito se abraçada pela opinião pública.

Em junho, a imprensa registrou sem maior destaque a realização de um comício pró-Diretas em Goiânia, convocado pelo PMDB, então o principal partido de oposição, que testava a aderência popular ao projeto de redemocratização.

A questão naquela altura era avaliar se o amplo apoio às Diretas —de três quartos dos brasileiros, segundo pesquisa Gallup de abril— se traduziria em afluxo de pessoas às ruas em número suficiente para influenciar os rumos da abertura política.

Outubro de 1983 foi um ponto de inflexão no processo que desembocaria na campanha, por dois motivos. Primeiro, governadores do PMDB eleitos no ano anterior se comprometeram a dar apoio material às Diretas. Segundo, a Argentina elegeu um presidente civil, Raúl Alfonsín, um veemente crítico da ditadura militar. Palanque e espelho estavam garantidos.

Foi a partir da observação dessa confluência de fatores –aos quais se somava uma incipiente, mas perceptível agitação nos movimentos sociais– que Otavio firmou a convicção de que o jornal deveria se antecipar aos fatos, engajando-se na campanha, e não apenas fazendo extensa cobertura do que viria pela frente. Assim consolidaria a reestruturação editorial iniciada dez anos antes, que abrira as páginas da Folha à sociedade civil. Eis as mencionadas perspectiva política e visão jornalística.

Quanto à circunstância pessoal, não se tratava apenas do fato de o jornalista ser filho do publisher da Folha, Octavio Frias de Oliveira.

Com 26 anos, Otavio tivera até então uma trajetória que o colocava em posição privilegiada para medir a temperatura do momento político. Conhecia por dentro o movimento estudantil, ponta de lança de reivindicações progressistas, e tinha acesso a lideranças políticas, empresariais, acadêmicas, sociais e artísticas, por exercer, desde 1978, a função de secretário do Conselho Editorial.

Estudante da Faculdade de Direito da USP na segunda metade dos anos 1970, Otavio tinha militado nos grupos Argumento e Ação Comum. "Na época, eu era uma pessoa com ideias de esquerda", diria mais de uma década depois em entrevista ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getulio Vargas.

Otavio se juntava a passeatas contra a ditadura, muitas delas reprimidas pela polícia, e chegou a ser brevemente detido. Em dezembro de 1979, no discurso em nome dos formandos da USP, disse que o direito não chegava aos "injustiçados e oprimidos de toda ordem" e cutucou o regime com vara curta: "Convivemos com a prática sistemática de torturas e assassinatos".

Durante anos, depois de passar as manhãs em assembleias no campus do largo São Francisco, ia para o jornal à tarde. Lá convivia, entre outros veteranos, com Cláudio Abramo, de quem se considerava discípulo informal. Responsável por executar a reforma da Folha a partir de 1974, Abramo se notabilizava por um profissionalismo à prova de seu conhecido ideário de esquerda, com origem no trotskismo.

Foi, portanto, um jovem imerso nesse universo de contestação à ditadura que propôs, provavelmente no início de novembro de 1983, que a Folha encampasse a campanha das Diretas.

A sugestão foi encaminhada em uma reunião com o pai, em sua sala, no nono andar do prédio da alameda Barão de Limeira, no centro de São Paulo. Estava também presente Boris Casoy, diretor-responsável, que substituíra Abramo na crise de 1977, quando o jornal esteve sob ameaça dos militares.

Otavio relatou a ambos ter detectado certa efervescência com relação à ideia das Diretas. Captara sinais claros nesse sentido em seus contatos com membros da sociedade civil, que sua função propiciava. Para ele, depois da apatia dos meses que se seguiram à apresentação da proposta de Dante, agora havia entusiasmo com a perspectiva de se lutar pela volta da eleição para presidente da República.

Naquela tarde de primavera, sentado à mesa de trabalho do pai, Otavio foi enfático. Apoiou as mãos na escrivaninha e inclinou-se em direção aos interlocutores para sublinhar o que tinha em mente: o engajamento total da Folha. Boris conta que um silêncio de surpresa durou alguns segundos, até ser quebrado pelo endosso de "seu Frias", como era mais conhecido o dono do jornal.

A proposta de Otavio de pôr o jornal a serviço da campanha não foi a primeira nem a última. Houve outras duas.

A primeira havia sido apresentada semanas antes por João Russo, editor de política, durante um almoço de sexta-feira, que tradicionalmente reunia a cúpula do jornal. Ciente da intenção do Palácio dos Bandeirantes de deflagrar o movimento, Russo aventou a ideia de o jornal apostar na iniciativa.

Na ocasião, seu Frias repeliu a proposta, com o argumento de que ela seria mais do interesse do governador de São Paulo, Franco Montoro, desejoso de se firmar como uma liderança nacional, do que da Folha. O receio era que a associação com o Poder Executivo estadual projetasse uma sombra de dúvida sobre a independência editorial ainda em construção.

A sugestão não diferia, na essência, da de Otavio. A questão era o timing. O que, em um primeiro momento, parecia contido numa bolha do PMDB, em pouco tempo ganhara contorno suprapartidário e começava a se espalhar por segmentos da sociedade civil.

A terceira proposta foi de autoria do repórter Ricardo Kotscho, que tinha bom trânsito nos movimentos sociais. Submetida em seguida à de Otavio, cuja existência os jornalistas da Folha ainda ignoravam, tinha o mesmo diagnóstico, o que talvez fosse apenas sinal de que as condições estavam mesmo maduras para que as multidões tomassem as ruas.

Ao receber a proposta de Kotscho, seu Frias deu o sinal verde para o jornal deslanchar a campanha, sem comentar com o jornalista que a decisão nesse sentido já havia sido tomada.

Otavio nunca reivindicou a paternidade da ideia. "Um jornal não entra em campanha; percebe que está em campanha no meio dela", diria mais tarde em entrevista à jornalista Ana Estela de Sousa Pinto, hoje editora de Mercado, citando Alberto Dines, importante quadro do jornal na época.

A decisão de seu Frias naquela reunião com o filho e Boris seria mantida em sigilo por pouco tempo. Basicamente, o tempo necessário para que os três pudessem se preparar para os passos seguintes e sondar a reação dos militares. O regime podia estar próximo de seus estertores, mas a ditadura ainda vigorava.

Na divisão de tarefas, Boris ficou encarregado de contatar fontes militares em quem confiava, e vice-versa. A Otavio coube ser o operador do projeto.

Não houve propriamente um Dia D para o lançamento da campanha no jornal. Ela foi aparecendo aos poucos a partir de meados de novembro, em parte com a valorização do noticiário sobre o tema, em parte pela produção de conteúdo próprio, com entrevistas, editoriais e seções dedicadas às Diretas.

Nos dias que antecederam o comício na praça Charles Miller, em frente ao estádio do Pacaembu, realizado em 27 de novembro, a Folha manteve o assunto em destaque na primeira página.

Além de noticiar o factual —a declaração do presidente João Figueiredo a favor da eleição direta, depois retificada—, o jornal produziu manchetes e editoriais que procuravam empurrar a campanha.

No dia 24, uma quinta-feira, a primeira página da Folha estampava, no alto, o título "Campanha pelas Diretas mobiliza sociedade civil". Na mesma edição, o editorial "Diretas na praça" previa a "adesão ativa e maciça" da população ao ato público do domingo seguinte.

Convocado pelo PT, o comício até contou com a presença de políticos de outras legendas, mas não chegou a ser suprapartidário, como anunciado. Em editorial no dia seguinte, escrito por Otavio, a Folha enumerou as falhas que identificou no evento: o viés ainda sectário no discurso do PT, o caráter hesitante do apoio oferecido pelo PMDB e o silêncio de boa parte da imprensa.

Em dezembro, um mês antes do primeiro megacomício, o jornal escalou a campanha. Começou a publicar o Roteiro da Diretas, uma seção diária que convidava os leitores a comparecer a comícios, passeatas e manifestações em geral.

Em editorial na primeira página, cobrou com firmeza os articuladores da campanha. "Como explicar a letargia vergonhosa na qual afundam as oposições, [...] incapazes de traduzir palavras em atos?" Acusou-os de "trair a vontade da opinião pública". E bateu nos governadores de oposição ao governo federal: "Amesquinhados pelo prolongado exercício da retórica e agora amolecidos pelas fumaças do poder, os dirigentes oposicionistas estão dedicados a disputar terreno uns com os outros".

A partir de janeiro de 1984, a Folha abriu mão da sobriedade que caracteriza o noticiário de um grande veículo e passou a imprimir um tom ufanista nas reportagens que detalhavam cada um dos comícios. Ganhou a alcunha de "Jornal das Diretas".

A importância do papel da Folha seria magnificada pela comparação com outros órgãos de informação. Inicialmente refratários à campanha, só lhe dariam algum destaque quando, próxima do fim, se tornou tão avassaladora que era impossível ignorá-la.

O comportamento reticente da imprensa deveu-se ao raciocínio de que a campanha seria uma aventura, pois a aritmética indicava que a proposta não passaria pelo Congresso. Além disso, argumentava-se, havia o perigo de tentar forçar os limites da abertura política arquitetada pelo governo, o que poderia surtir efeito contrário.

No primeiro quadrimestre de 1984 —período em que aconteceram os megacomícios—, a Folha manteve posição crítica em relação às lideranças que se equilibravam na ambiguidade, sobretudo Tancredo Neves, governador de Minas Gerais.

Candidato natural em qualquer cenário, o peemedebista defendia as Diretas nos palanques, enquanto em conversas de gabinete estaria rifando a mobilização crescente em negociações que visavam o pleito indireto, no âmbito de um Colégio Eleitoral restrito e sem legitimidade.

As Diretas foram derrotadas na Câmara dos Deputados em 25 de abril, por margem estreita. Faltaram 22 votos para sua aprovação. No dia seguinte, a Folha estampou a manchete em letras maiúsculas e com um ponto de exclamação: "A NAÇÃO FRUSTRADA!". O editorial de primeira página se referia aos que haviam votado "não" ou se omitido como "espectros de parlamentares, fiapos de homens públicos, fósseis da ditadura".

Devido à sua atitude, a Folha, que só passara a ter alguma influência política a partir da reforma editorial dos anos 1970, emergiu das Diretas como um dos principais jornais do país. Mesmo derrotada, a campanha foi um marco da redemocratização.

Um mês depois, em 24 de maio, Otavio Frias Filho assumiu a direção de Redação da Folha, cargo que exerceria até o fim da vida. Uma de suas prioridades foi preparar o jornal para a fase pós-Diretas, que, previa-se, seria marcada pelo fim do consenso quase absoluto observado durante o auge da campanha.

Para o novo diretor, o jornal deveria responder ao desafio resgatando a reportagem descritiva, sem juízo de valor. A ideia era "dessentimentalizar o texto jornalístico, no sentido de escoimá-lo de uma série de subjetividades, pieguices, emocionalismos etc", como disse na entrevista ao CPDOC.

A orientação seria incorporada ao primeiro "Manual Geral da Redação", que entrou em vigor em agosto de 1984, estabelecendo as diretrizes do Projeto Folha. Para além das questões de estilo, o projeto defendia utilizar o capital editorial acumulado nas Diretas para construir as bases de um jornalismo crítico, pluralista, apartidário e moderno.

Recebido inicialmente com reservas, o receituário acabou fazendo escola no jornalismo brasileiro.

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