Existe uma cegueira do Brasil em relação à Amazônia, diz Moreira Salles

Jornalista participou do ciclo Perguntas sobre o Brasil ao lado de Ane Alencar, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia

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Belo Horizonte

O jornalista e documentarista João Moreira Salles retomou a origem do nome Amazônia para demonstrar um problema de séculos durante a 25ª edição do ciclo de diálogos Perguntas sobre o Brasil, realizada no último dia 6.

Em fevereiro de 1542, o frei dominicano Gaspar de Carvajal, que estava em viagem com o colonizador espanhol Francisco Orellana, chegou à região norte do país e relatou o encontro que teve com as Icamiabas, mulheres indígenas que, como escreve a historiadora Patrícia Valim, viviam numa "sociedade matriarcal dotada de leis próprias".

Como conta Moreira Salles, autor de "Arrabalde: Em Busca da Amazônia", lançado no ano passado pela Companhia das Letras, Carvajal deu a elas o nome de "amazonas" devido à referência que tinha das guerreiras da mitologia grega. Logo, a região passou a ser conhecida dessa forma.

Jovens yanomamis na comunidade Nova Jerusalém, na região do rio Padauiri, no Amazonas - Lalo de Almeida-26.abr.2023/Folhapress

"A Amazônia foi assim batizada por um erro de interpretação, pois, evidentemente, Carvajal não viu isso", afirmou o jornalista, fundador da revista piauí. "Desde o início, a gente entendeu, interpretou e compreendeu errado a floresta. Não quisemos vê-la".

Tamanho desconhecimento, que se intensificou ao longo da história e resultou numa indiferença em relação às culturas tradicionais daquele espaço, é um dos motivos que levaram o Brasil, enquanto país e povo, a não reconhecer a importância da Amazônia.

A percepção é compartilhada pela geógrafa Ane Alencar, diretora de ciência do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), que também participou do debate. O evento foi mediado pelo jornalista Vinicius Sassine, correspondente da Folha em Manaus.

Segundo Alencar, a maior parte das pessoas que vivem nas regiões urbanizadas da Amazônia ainda não tiveram "o ‘clique’ sobre a importância da floresta que rodeia as cidades" da região. Em outras palavras, "vivem de costas para a floresta".

A grande migração interna para a Amazônia, incentivada pelo governo brasileiro durante as décadas de 1960 e 1970, em meio à ditadura militar, povoou a região com pessoas que não compreendiam as dinâmicas socioambientais daquele espaço, lembrou Moreira Salles no debate.

É o caso de Luiz Gonzaga, um silvicultor entrevistado pelo jornalista em Capitão Poço (PA). Gonzaga só se deu conta de que não conseguiria alimentar seus animais --não havia capim na mata-- ao chegar à Amazônia. "Ninguém sabia nada de floresta", ele disse ao autor.

"Isso, de certa maneira, encapsula o mundo mental dessas pessoas que chegaram à Amazônia. Não vieram para conhecer a floresta, mas para substituí-la. A floresta era um empecilho, algo a ser eliminado. O nosso modo de ocupação sempre foi esse", afirma Moreira Salles.

"Existe uma cegueira epistemológica do Brasil em relação à Amazônia", ele diz. "O Estado nunca se esforçou para saber como a floresta de pé pode gerar renda e modos de vida para as pessoas que foram pra lá. Os ribeirinhos sabem como fazer isso, assim como indígenas, quilombolas e populações tradicionais. Mas ninguém foi perguntar pra eles."

Como lembra Alencar, quem, de fato, reconhece a relevância da Amazônia são as pessoas "que têm nela seu supermercado, sua farmácia e sua forma de eternizar a cultura". São elas, segundo a geógrafa, "que sabem que a degradação da floresta vai impactar na sua própria sobrevivência".

De acordo com Moreira Salles, precisamos "estabelecer um diálogo entre aquilo que se produz, culturalmente, em São Paulo, Rio de Janeiro, Sudeste e Nordeste, e o que está sendo produzido na Amazônia. Fazer uma espécie de encontro de imaginações para que a gente se deixe fertilizar pela floresta".

Realizado de forma online, o debate também abordou o domínio do crime na região e a força de artistas e pensadores indígenas na contemporaneidade. Veja a íntegra abaixo.

O ciclo Perguntas sobre o Brasil é organizado pelo Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc São Paulo, pela Associação Portugal Brasil 200 anos (APBRA) e pela Folha.

Desde setembro do ano passado, a série tem discutido questões ligadas à identidade, à cultura e aos desafios do país, tendo como inspiração a lista elaborada pelo projeto 200 anos, 200 livros, que reúne duas centenas de obras relevantes para entender o Brasil a partir da indicação de 169 intelectuais.

O evento é sempre transmitido pelos canais do Sesc São Paulo, do Diário de Coimbra e da APBRA no Youtube. A próxima e última conversa do ciclo, cujo tema é "O Brasil precisa de Portugal? Portugal precisa do Brasil?", está marcada para janeiro de 2024.

O Estado nunca se esforçou para saber como a floresta de pé pode gerar renda e modos de vida para as pessoas que foram pra lá. Os ribeirinhos sabem como fazer isso, assim como indígenas, quilombolas e populações tradicionais. Mas ninguém foi perguntar pra eles.

João Moreira Salles

autor do livro "Arrabalde: Em Busca da Amazônia" (2022)

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