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Marcelo Leite

Primeira onda psicodélica foi moldada por utopias dos anos 1930

Antes da contracultura dos anos 1960, casal de antropólogos marcou experimentações pioneiras com mescalina e LSD

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Marcelo Leite

Colunista da Folha e autor de livros como “Promessas do Genoma” (Editora Unesp, 2007) e “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (Fósforo, 2021)

[RESUMO] Livro do historiador Benjanin Breen mostra como raízes da contracultura estão fincadas no pensamento dos antropólogos Margaret Mead e Gregory Bateson nos anos 1930, não do guru lisérgico Timothy Leary, bem como por que, na esteira da Segunda Guerra e da Guerra Fria, eles flertaram com psicodélicos como armas de espionagem.

Esqueça Timothy Leary, o verão do amor de 1967 na Califórnia, o álbum "Sgt. Pepper's", dos Beatles, e o festival de Woodstock em 1969. O vagalhão pioneiro da psicodelia se levantou não com a contracultura, mas com sementes multiculturalistas plantadas nos anos 1930 pelos antropólogos Margaret Mead e Gregory Bateson —com colheita duvidosa, entretanto.

A pré-história do movimento hippie vem narrada em detalhe no livro "Tripping on Utopia" (viajando na utopia), de Benjamin Breen. Historiador da ciência e da medicina da Universidade da Califórnia em Santa Cruz (EUA), Breen traça um panorama pouco conhecido —e algo sombrio— que contrasta com a luminosidade aparente do atual renascimento psicodélico.

Os antropólogos Gregory Bateson (à esq.), Margaret Mead e Reo Fortune em 1933, depois de trabalho de campo na Nova Guiné. Dois anos depois, Mead se divorciaria de Fortune e, em 1936, se casaria com Bateson, com quem permaneceu até 1950 - Library of Congress/Manuscript Division

Como em todo tsunami, a sublevação teve origem nas profundezas do globo. A norte-americana Mead (1901-1978) e o britânico Bateson (1904-1980) se conheceram na Nova Guiné em 1932, quando ela ainda era casada com o neozelandês Reo Fortune. Pouco impressionada pelo trabalho antropológico de Bateson, Mead acabou por encontrar nele uma alma intelectual gêmea em sua crença na ciência como ferramenta civilizadora.

Discípula de Franz Boas, luminar da escola norte-americana de antropologia de quem Gilberto Freyre foi aluno, Mead chamara atenção com seu livro de 1928, "Coming of Age in Samoa" (chegando à maturidade em Samoa). Best-seller na época, a obra expunha com franqueza comportamentos sexuais diversos dos costumes ocidentais, até mesmo preferíveis a eles.

"O que constitui cortesia, pudor, ótimas maneiras e padrões éticos definidos não é universal", anotou Boas no prefácio. A própria autora era bissexual, uma característica sobre qual ela manteria reserva diante do público que a aclamava.

Mead foi influenciada também pela mentora e amiga Ruth Benedict, uma assistente de Boas. Com ela, a jovem pesquisadora descobriu que a antropologia cultural não tratava de coletar relíquias para juntar poeira em museus, escreve Breen: "Tratava-se de resgatar o conhecimento destilado por milhões de vidas —lições arduamente obtidas que um dia poderiam ajudar a formatar o futuro coletivo da humanidade".

Tal marca utópica marcaria as carreiras de Mead e Bateson. A fé no conhecimento e na importância da alteridade incluía uma abertura para substâncias alteradoras da consciência, como o cacto peiote contendo mescalina, utilizado pelo povo indígena omaha que os dois estudaram na década de 1920.

Mead e Bateson estiveram no centro da atividade intelectual que forjou a revolução modernista no entendimento sobre sexualidade, cultura e personalidade. Suas marcas eram a intensa experimentação, pessoal e social, o prestígio crescente de uma ciência recém-nascida, a psicologia, e o entusiasmo com drogas psicotrópicas, de psicodélicos a anfetaminas e tranquilizantes.

A Segunda Guerra representou uma barragem de fogo contra esse otimismo utópico. Bateson se envolveu em atividades de guerra psicológica contra as forças do Eixo, instrumentalização bélica do conhecimento que na subsequente Guerra Fria alcançaria Mead.

No cerne dessa mobilização estava o conceito de que a mente humana, sendo (re)programável, poderia ser manipulada. Recursos como hipnose, "soros da verdade" e "lavagem cerebral" colonizaram a cultura estratégica que daria nascimento em 1947 à CIA (Agência Central de Inteligência dos EUA) e tinha origem em relatório que Bateson escreveu em 1945, após a bomba sobre Hiroshima.

Em 1949, ano em que a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) foi fundada, a União Soviética explodiu sua primeira bomba atômica e os comunistas tomaram o poder na China, Bateson e Mead tinham mergulhado na saúde mental, ele transferido para um hospital de veteranos de guerra na Califórnia, ela dando consultoria sobre psicologia soviética para o recém-criado think-tank conservador Rand Corporation.

O antropólogo tornado psicólogo deixaria sua marca no campo como autor do conceito de "duplo vínculo", exigências contraditórias de uma figura de autoridade que entendia ter relação com a esquizofrenia. Embora tenha se popularizado como "culpa da mãe", Bateson entendia o duplo vínculo como característica de famílias e sociedades, não só dela, ressalva o autor do livro.

Em 1943, o efeito psicodélico do LSD havia sido descoberto por Albert Hofmann na empresa Sandoz. O laboratório suíço passou a distribuir o que era então visto como medicamento, sob a marca Delysid, para médicos, psicólogos e pesquisadores empregá-lo de experimentalmente.

Os anos 1950 abriram uma época dourada para o ácido lisérgico. Ganhou impulso a psicoterapia apoiada em psicodélicos, que "renasce" agora no século 21. Sete décadas atrás, atraía a atenção de celebridades como Cary Grant, Anaïs Nin, Julia Child, Allen Ginsberg e William Burroughs.

O LSD caiu na mira da CIA, que passou a testá-lo em seus próprios funcionários e outras pessoas sem consentimento, na tentativa de obter um adjuvante para manipulação mental em interrogatórios. Assim nasceu o projeto secreto MK-Ultra, no qual trabalharam colaboradores próximos de Mead, mas Breen diz não haver provas de que ela tenha tomado conhecimento da infâmia.

A antropóloga datilografou em 1954 um memorando com anotações sobre contato com mulheres sob efeito de LSD, ministrado por Harold Abramson. O médico tinha um passado de pesquisa com armas químicas, mas isso não impediu Mead de convidá-lo para conferência da Fundação Macy e cogitar participação em seus estudos antiéticos com LSD para a CIA, com planos de ela própria experimentar a droga.

Isso aparentemente nunca aconteceu. Mead fazia segredo de muita coisa em sua vida pessoal. Com a morte de Albert Einstein em 1955, escreve Breen, ela se tornara a cientista e intelectual pública mais conhecida no mundo ocidental, e pelo visto temia revelar intimidades durante uma viagem lisérgica, como seu relacionamento com a colega Rhoda Métraux.

Mead influenciou, por exemplo, Aldous Huxley, que leu sua obra antes de escrever "As Portas da Percepção", sobre experiências com mescalina. Outro admirador do otimismo de Mead foi Carl Sagan, jovem cientista planetário que ficaria famoso com a série de TV "Cosmos" (1980) e admitiria usar maconha.

Aos 29 anos, o precoce professor de Harvard visitou nas ilhas Virgens o local de um dos mais bizarros experimentos na história do LSD, realizado por John Lilly com golfinhos. Ali trabalhava Bateson, atraído em 1963 pelo diretor do recém-criado CRI (Instituto de Pesquisa de Comunicação), financiado pela agência espacial Nasa.

O propósito de Lilly era ensinar cetáceos de 400 kg a falar inglês, nada menos. Nesse processo, o que Bateson viria a descobrir em seguida, injetava-se LSD nos animais. A pesquisa não deu em nada, mas depois viria à tona que 4 dos 7 golfinhos residentes morreram após "suicidar-se" (parar de respirar e afogar-se).

Antes do fiasco, o CRI esteve no epicentro de um frenesi midiático com golfinhos. Vários filmes os tinham como astros, como a série televisiva "Flipper", filmada de 1964 a 1967. Sagan foi o patrono de um grupo intelectual batizado Ordem do Golfinho.

A era de ouro psicodélica começou a fazer água em 1964, quando a farmacêutica Sandoz restringiu a distribuição de Delysid, sob pressão da agência de fármacos FDA. O LSD foi abraçado pelos hippies, e a reação conservadora não tardou, auxiliada pelo impacto dos assassinatos cometidos pela "família" de Charles Mason em 1969.

Mead e Bateson havia muito seguiam caminhos divergentes. Ele deixara o Caribe para lecionar antropologia na Universidade da Califórnia em Santa Cruz, onde se revelaria um crítico da instrumentalização da ciência e dos efeitos negativos da tecnologia —foi, em 1967, um pioneiro na denúncia do aquecimento global. Virou um modelo para a juventude universitária revoltosa.

A antiga parceira, embora bem mais famosa, perdia influência. Um espetáculo musical, "Hair", que correu o mundo com mensagens da contracultura, fazia troça dela com uma personagem chamada Margaret Mead. Em 1969, foi alvo dos conservadores após defender publicamente o uso de maconha.

Em 1970, Leary, o profeta psicodélico, foi encarcerado. O presidente republicano Richard Nixon, que o havia qualificado como "o homem mais perigoso da América", declarou Guerra às Drogas em 1971. Em 1974, o programa MK-Ultra da CIA foi revelado e deu origem a um escândalo.

A segunda voga dos psicodélicos refluiu para escuridão oceânica da cultura e da ciência. A maré vazante arrastou com ela as promessas luminosas dos líderes da primeira.

Benjamin Breen traz muitas lições para quem empresta caráter messiânico à terceira onda, em que as substâncias transformadoras da consciência retornam com a missão de curar traumas de sociedades despedaçadas por alienação e guerras. O mundo, mesmo, não evoluiu como sonhavam Mead e Bateson.

Tripping on Utopia: Margaret Mead, the Cold War, and the Troubled Birth of Psychedelic Science

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