Descrição de chapéu drogas

Saiba qual é a relação de psicodélicos com a luta por direitos da comunidade LGBTQIA+

Substâncias alteradoras da consciência e movimentos de diversidade sexual têm muito em comum, inclusive esqueletos no armário

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“Garden 6”, obra de 2003 do Assume Vivid Astrofocus (Avaf), coletivo de arte visual que expõe uma retrospectiva de seus papéis de parede na forma de um labirinto no Sesc Paulista até 30/7 Reprodução

Marcelo Leite

Colunista da Folha e autor de livros como “Promessas do Genoma” (Editora Unesp, 2007) e “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (Fósforo, 2021)

São Paulo

[RESUMO] Conferência em San Francisco resgata origem compartilhada dos movimentos em favor do uso de substâncias alteradoras da consciência e dos direitos de pessoas LGBTQIA+. Entre os temas sensíveis destacaram-se o emprego de LSD e mescalina em terapias de conversão ("cura gay") e noções ultrapassadas de gênero na base de protocolos de terapias psicodélicas prestes a serem autorizadas.

Uma égua selvagem e plantas psicodélicas salvaram Itzel Barakat da sarjeta social em que se encontrava. Quando a jovem se aproximou de Libby, apelido de Liberation, a potranca resgatada abaixou a cabeça para receber um afago, demonstrando à interlocutora humana sua aceitação e a promessa de um amor incondicional.

A veterana de duas incursões no Afeganistão irrompeu em soluços. "Eu me senti vista pela primeira vez na vida", Barakat contou para a plateia da sala Cabaret no Brava Theater Center em San Francisco (EUA), numa das três sessões paralelas da segunda conferência Queering Psychedelics, nos dias 22 e 23 de abril.

O título da conferência não é fácil de traduzir. "Queer", a letra Q da sigla LGBTQIA+, serve como termo genérico para designar o arco de gêneros e identidades que vai de lésbicas, gays e trans a intersexuais e assexuais. No gerúndio, então, "queering" parece impossível de exprimir em português.

"Garden 6", obra de 2003 do Assume Vivid Astro Focus (Avaf), coletivo de arte visual que expõe uma retrospectiva de seus papéis de parede na forma de um labirinto no Sesc Paulista até 30/7 - Avaf

Para Barakat, o serviço militar foi uma rota de escape da família opressivamente religiosa. Ela entrou para a Força Aérea aos 19 anos em busca de uma comunidade para chamar de sua e para sentir-se a serviço de um bem maior. No entanto, ao deixar a corporação, não tinha plano nem rede de segurança com que contar.

A transição para a vida civil foi de extrema dificuldade. Uma queda livre no vazio, só interrompida quando Libby cruzou o seu caminho. O encontro aconteceu quando Barakat já levava um ano como sem-teto em Los Angeles, dormindo no carro com seu cachorro.

Depois de seis anos na Força Aérea, ela se dedicava ao combate de incêndios florestais na Califórnia, ocupação que se provara ainda mais estressante do que serviços administrativos de apoio a pilotos de combate. A jovem queer terminou prisioneira do período mais escuro de sua vida.

Ela buscou então socorro na Administração de Veteranos (VA, na abreviação em inglês), repartição americana encarregada da assistência a 16,5 milhões de ex-militares do país belicoso. Ocorrem pelo menos 15 suicídios de veteranos por dia nos EUA, e o MDMA (ecstasy) é o psicodélico mais próximo de aprovação clínica pela FDA (agência americana de regulamentação de medicamentos e alimentos), para tratar transtorno de estresse pós-traumático (TEPT).

Teve início ali a longa jornada de cura de Barakat. Em 2018, foi chamada para integrar um grupo de voluntários encarregado de resgate de animais em Idyllwild, Califórnia, onde foi apresentada a Libby e começou a trabalhar no programa de equinos em War Horse Creek.

Ao longo da reabilitação na VA, seu talento para ajudar outros veteranos chamou a atenção. A agência a pôs então em contato com a ONG Veterans of War, uma iniciativa para dar oportunidade a ex-combatentes de travar contato com terapias psicodélicas, o que acabaria por levá-la a uma cerimônia de ayahuasca na Costa Rica.

"Foi incrível sentir tamanha comunidade e apoio, enquanto todos juntos experimentávamos a cura coletiva. Foi uma experiência única em medicina psicodélica", ela relembra. "Terapias psicodélicas têm a capacidade de mapear você bem longe da separação e conectar com pessoas de todos os tipos, queer ou não. Nós estávamos ali todos de pé, como gigantes, uns com os outros."

Já se passaram três anos em sua caminhada para se tornar uma facilitadora de terapia assistida por psicodélicos (TAP). Barakat está terminando a graduação em psicologia e vai engatar uma pós-graduação para se tornar psicoterapeuta.

A história de Barakat foi apenas uma das várias narrativas comovedoras que se podiam ouvir na QP2, quatro anos após a primeira edição da conferência pioneira. Ambas foram organizadas pelo Instituto Chacruna, uma ONG liderada por Bia Labate e Clancy Cavnar (aviso: sou membro não remunerado de seu conselho consultivo).

A segunda edição da conferência atraiu 345 membros da comunidade LGBTQIA+ e seus aliados às três salas do Brava Theater Center, um centro cultural mantido por feministas no colorido distrito Mission de San Francisco. O discurso de abertura coube a Cavnar, que de saída marcou o tom predominante de desconforto:

"Presenciamos no presente o tumulto e o revide do patriarcado quando vozes queer exigem ser ouvidas e incluídas. Nos EUA, há decisões contra a participação de pessoas trans na vida civil e a invasão teocrática dos direitos de mulheres e pessoas trans sobre seus corpos, fundos públicos são usados para apoiar escolas em que a existência de pessoas queer é negada, ou nas quais crianças são ensinadas sobre o caráter pecaminoso de relações queer."

Não foi o tipo feijão-com-arroz de conferência psicodélica, como a megarreunião marcada para junho em Denver, Colorado, Psychedelic Science 2023, na qual se esperam mais de 10 mil participantes. Em San Francisco houve pouca discussão sobre resultados de testes clínicos de psicodélicos, protocolos de pesquisa, aprovação da FDA ou estratégias de mercado e investimentos em startups.

Em lugar disso, muitas das apresentações no evento LGBTQIA+ se deram em torno da superação de carradas de trauma, violência, vergonha, autodepreciação e culpa. Frequentemente, com a ajuda de psicodélicos.

Uma boa oportunidade também para debater as necessidades peculiares de pessoas queer nos testes experimentais e terapias com psicodélicos. Assim como no caso de pacientes negros, elas têm sido negligenciadas no processo de reemergência para a medicina que essas drogas vivem no presente.

Em muitos aspectos, seria um casamento perfeito. Não só porque a pesquisa psicodélica vem comprovando o potencial da dimetiltriptamina (DMT, da ayahuasca) e da psilocibina de cogumelos para tratar depressão, abuso de substâncias, ansiedade e TEPT que com frequência afligem o povo queer, mas também porque as raízes do movimento LGBTQIA+ e da psicodelia têm muito em comum.

Eis uma amostra de expressões que a toda hora pipocavam na QP2 e podem bem se aplicar aos dois mundos: diversão, brilho, solidariedade, amor oceânico, realidades e identidades alternativas, autoconhecimento, aceitação, liberdade, fluidez, humor, prazer...

No entanto, o campo psicodélico tem sido também fonte de sofrimento e dano para pessoas LGBTQIA+, pois tudo tem seu lado B. Existem ainda esqueletos para sair do armário, e nem tudo é ouro debaixo do arco-íris.

A terapia de conversão (a mal denominada "cura gay"), verdadeiro elefante no teatro, foi denunciada por Alexander Belser, coeditor com Cavnar e Labate do livro "Queering Psychedelics: From Oppression to Liberation in Psychedelic Medicine". Psicólogo dedicado a terapias experimentais com psilocibina, MDMA e DMT na Universidade Yale, Belser investiga tratamentos para transtorno obsessivo-compulsivo (TOC).

Seu discurso contundente na QP2 tinha por título "Caros Psiconautas Héteros: Uma Carta Aberta de um Pesquisador Queer para o Povo CisHet da Comunidade Psicodélica". Ele conclamou cientistas psicodélicos a dar atenção, apesar de toda a visibilidade adquirida por questões LGBTQIA+, para o fato de que a vida está ficando pior para jovens queer em muitos lugares, em especial nos EUA.

Tratamentos hormonais e cirurgias estão agora proibidos para menores de idade em 15 estados americanos. A Flórida baniu recentemente discussões de identidade de gênero e sexualidade em salas de aula, que já sofriam restrições em uma dúzia de outros estados. No Tennessee, a lei proíbe a apresentação de drag queens em espaços públicos ou na presença de crianças.

"Sinto mais que pesar, mais que angústia", desabafou Belser. "Sinto raiva. Raiva não é uma emoção ruim." Estima-se que atualmente 698 mil adultos LGBTQIA+ tenham sido submetidos a alguma forma de terapia de conversão nos EUA.

Menos conhecido é o fato de que LSD e mescalina foram amplamente usados como adjuvantes de terapia de conversão. A aplicação tinha base na premissa de que esses psicodélicos desbloqueariam traumas de infância supostamente na raiz do que então se considerava uma doença ou comportamento desviante.

A terapia de conversão foi preconizada por heróis do panteão psicodélico, como Timothy Leary, que chegou a propagandear o LSD como "uma cura específica para homossexualidade". Richard "Ram Dass" Alpert, seu companheiro na expulsão da Universidade Harvard em 1963, e o célebre psiquiatra checo-americano Stanislav Grof também relataram ter receitado psicodélicos para mudar orientação sexual.

"A comunidade psicodélica tem sido cúmplice", denunciou Belser na QP2. "Chegou a hora de reconhecer sua própria responsabilidade. É o que peço a meus amigos hétero: banir a terapia de conversão."

De acordo com Belser, esses horrores não ficaram somente no passado, pois a heteronormatividade ainda embebe as práticas de pesquisa. A maioria dos protocolos de TAP recomenda duplas mistas de terapeutas, homem e mulher, um dispositivo antes destinado a prevenir abuso sexual por terapeutas masculinos.

Hoje, isso é visto como uma maneira de essencializar noções retrógradas de masculino e feminino. Além do mais, a dupla de héteros privilegia terapeutas cis em detrimento de profissionais trans, não binários ou não conformes à norma.

"Tudo bem recrutar pessoas queer nos testes clínicos, mas há que coletar e relatar seus dados", exigiu Belser. Não há pesquisas voltadas a determinar qual a melhor maneira de tratar pacientes LGBTQIA+ com psicodélicos.

"As ferramentas do senhor jamais irão desmantelar a casa do senhor", resumiu Belser, citando o título de um livro da poeta feminista Audre Lorde, negra e lésbica.

Belser pediu, ainda, que seus pares se levantem como fizeram seus antecessores no movimento ACT UP (sigla de Aids Coalition to Unleash Power, ou Coalizão Aids para Desatar o Poder), que popularizou o lema "silêncio = morte".

Silêncio, afinal, é o que ele tem colhido entre colegas nos testes clínicos. Eles não necessariamente discordam dos direitos e reivindicações de pessoas queer, mas nada alteram em seus métodos.

Esperança, resiliência, um senso de comunidade e mobilização deram o tom predominante nas apresentações da QP2, embora com vários testemunhos dolorosos de permeio. Um dos mais emotivos partiu de Taylor Dahlia Bolinger, mulher trans que trabalha como assistente social no Texas.

"Psicodélicos não me curaram. A transição me curou", lançou ela logo no começo da fala contundente. "Não vou deixar o Texas. Devo isso aos jovens [LGBTQIA+]", prometeu com voz trêmula, visivelmente contendo as lágrimas.

Bolinger informou que 86% dos psiquiatras em seu estado não têm formação específica para tratar pessoas trans. "Se a comunidade psicodélica pretende curar o mundo, precisa transcender as noções colonizadas de gênero", declarou, lamentando o quanto se sente solitária nesse campo.

Ela deu como exemplo sua recusa a frequentar cerimônias da UDV (União do Vegetal, igreja ayahuasqueira presente nos EUA), por força dos papéis estereotipados de gênero embutidos na doutrina religiosa. A UDV condena a homossexualidade e impede mulheres de ascender ao grau máximo de mestres habilitados a conduzir rituais. "Não somos obrigados a frequentar cerimônias lideradas por gente que nunca irá reconhecer nossa identidade."

A diversidade de experiências, contudo, foi outra marca destacada da conferência QP2. Contrastou com o depoimento de Bolinger o de Clancy Cavnar, mulher queer casada com Bia Labate e cofundadora, com a brasileira, do Instituto Chacruna.

Cavnar deu um testemunho paradoxalmente divergente sobre sua vivência, nos últimos 26 anos, em cerimônias de outra igreja ayahuasqueira, Santo Daime. Mesmo sendo crítica ácida da homofobia nessas religiões, ela narrou como tem encontrado aceitação em congregações que, sob vários aspectos, conflitam com seus próprios valores e crenças.

"É inteiramente irônico para mim que tal fundamentação [do Santo Daime] tenha suas raízes no cristianismo", admitiu Cavnar, "uma força que tem sido tão danosa para tantos, a criada do colonialismo e da força política atual que, em sua forma corrente, se opõe aos direitos de mulheres e de pessoas queer."

A religião não tivera papel na vida de Cavnar até por volta de seus 30 anos, quando reviveu o interesse pelo budismo numa viagem pelo Nepal. Pouco tempo depois ela compareceu a uma cerimônia do Santo Daime oferecida em aula do Instituto da Califórnia de Estudos Integrais, da qual saiu ansiosa por repetir a experiência.

Uma viagem de verão para aprender espanhol na América do Sul acabou incluindo um desvio para o epicentro do Santo Daime no Brasil, a vila Céu do Mapiá, na mata do Amazonas. Ela participou de rituais com centenas de pessoas, dançando a noite inteira, por um mês.

"Foi completamente esquisito, não tinha ideia do que estavam cantando." Ela relembra sentir-se fortemente afetada pelo daime, passando horas em recinto de cura apartado da área principal, sob o jugo de visões poderosas.

Mulheres oravam por ela, dizendo para pensar na Virgem Maria, e a ungiam com ayahuasca traçando-lhe uma cruz na testa. Ou lhe davam maconha, que chamavam de Santa Maria, para apaziguá-la. Naquele período enfurnada na selva, longe de tudo que lhe era familiar, ela começou a ter mirações de Jesus e Maria.

"Eu os via no Paraíso, via Jesus na cruz, um vento forte soprando nuvens escuras pelos céus. Sentia a tristeza que Jesus sentiu quando seus apóstolos o deixaram. Comecei a pensar que devia ser uma cristã e que isso era o que os cristãos descobriam, esses sentimentos de amor e tristeza conectados com a morte injusta de um santo", ela narrou para a plateia da QP2.

"Finalmente comecei a dar uma chance para o cristianismo, vendo que podia evocar sentimentos de ternura e amor, até de êxtase espiritual, quando combinado com a droga certa."

Uma deusa lhe mostrou, dois anos atrás, o que seria o real impacto do patriarcado: exploração de pessoas, corrida para esgotar todos os recursos, desqualificação de mulheres por homens, escravidão, racismo, e assim por diante.

Apesar de entender o conceito geral de patriarcalismo, antes da visão fatalista ela diz que não tinha ainda apreendido sua profundidade e prevalência. Mas a divindade também lhe disse para não se desesperar: "Independentemente dessa situação desafortunada, tudo está bem no universo, que vai continuar mesmo sem seres humanos sobre a Terra".

Além do Santo Daime, Cavnar tem frequentado cerimônias xamânicas no Peru, no Equador e na Costa Rica, além de cerimônias "hippies" nos EUA, menos estruturadas e doutrinárias, mas sempre se descobre entediada nas últimas. No fundo não se importa com a segregação de homens e mulheres durante os rituais, nem com os uniformes prescritos para daimistas "fardados".

Ela adora cantar os hinos do Santo Daime em sua língua original, o português. E se declara, por isso, contrária a traduzir as letras ao inglês, uma maneira de tornar as cerimônias mais palatáveis para americanos.

"Eu quero a diferença, quero uma força estranha e poderosa para me transformar", ela diz. "Não quero me sentir paparicada para ter conforto, não quero me sentir confortável porque não estou fazendo algo confortável —estou praticando um ritual estranho com uma poção mágica para me curar."

Guardadas as proporções, as palavras de Cavnar servem para descrever como um repórter hétero se sentiu após dois dias memoráveis no Brava Theater Center: são e salvo, embora nenhuma poção mágica estivesse sendo servida na conferência além de rapés indígenas, café e cacau. Reconfortado, por assim dizer, em meio à esperança, à resiliência e ao forte senso de comunidade desse povo colorido e marginalizado.


O jornalista Marcelo Leite viajou a San Francisco a convite do Instituto Chacruna

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