Descrição de chapéu The New York Times

A Amazon que os clientes não veem

Funcionários relatam abusos trabalhistas

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The New York Times

Em setembro do ano passado, Ann Castillo viu um email da Amazon que não fazia sentido.

O marido dela tinha trabalhado para a empresa por quase cinco anos, mais recentemente no gigantesco armazém que a companhia mantém em Staten Island e serve como condutor logístico essencial da gigante do varejo na cidade de Nova York. E a companhia o queria de volta no turno de trabalho da noite.

“Notificamos sua chefia e o departamento de recursos humanos sobre seu retorno ao trabalho em 1º de outubro de 2020”, dizia a mensagem.

Castillo ficou incrédula. Enquanto fazia horas extras obrigatórias no segundo trimestre, Alberto, 42, seu marido, foi um dos primeiros empregados naquele local de trabalho a ser contagiado pelo coronavírus.Vítima de febres e infecções, ele sofreu danos cerebrais graves. Em testes de receptividade, disse Ann Castillo, “seu resultado era quase zero”.

Por meses, Ann Castillo, uma fisioterapeuta cortês, mas determinada, vinha alertando a empresa de que seu marido, que se orgulhava de seu trabalho lá, estava gravemente doente. As respostas que recebia eram desordenadas e confusas. Emails e telefonemas aos sistemas automatizados da Amazon muitas vezes terminavam sem resposta.

Mulher negra segura uma caixa da Amazon em um centro de distribuição
Funcionária trabalha em área de embalagem do armazém JFK8, da Amazon, em Staten Island, nos Estados Unidos - Chang W. Lee - 15.JUN.21/The New York Times

Os benefícios da empresa eram generosos, mas ela entrou em pânico quando os pagamentos que seu marido recebia por estar incapacitado para o trabalho foram misteriosamente suspensos.

Castillo conseguiu falar com diversos empregados da área de recursos humanos da companhia, um dos quais autorizou a retomada dos pagamentos, mas depois disso o diálogo voltou a acontecer por meio de sistemas de telefone robotizados, respostas automáticas e recados deixados na secretária eletrônica do telefone de seu marido perguntando se ele voltaria ao trabalho.

A convocação para que ele voltasse aprofundou a suspeita de Ann Castillo de que a Amazon não estava plenamente ciente da situação de Alberto.

“Será que eles não têm registro do que aconteceu com ele?”, ela perguntou. Castillo queria perguntar à empresa: “os seus empregados são descartáveis? Vocês os substituem e pronto?”

O local de trabalho de Alberto Castillo é a única central de distribuição da Amazon na maior cidade dos Estados Unidos, e estava realizando o impossível durante a pandemia.

Com os setores econômicos clássicos de Nova York sofrendo um maciço colapso, o armazém, chamado JFK8, absorveu mão de obra dispensada por hotéis, bares e teatros, e pagava salários de quase US$ 18 por hora.

Impelido por um senso de missão renovado, o JFK8 ajudou a Amazon a bater recordes de embarques, atingir vendas estratosféricas, e obter lucros equivalentes aos dos três anos precedentes em apenas 12 meses.

O sucesso, velocidade e agilidade se tornaram possíveis porque a Amazon e seu fundador, Jeff Bezos, foram pioneiros de novas maneiras de administrar grande número de trabalhadores por meio da tecnologia, confiando em diversos sistemas que reduziam o contato humano ao mínimo a fim de permitir crescimento sem limites.

Mas a companhia estava sofrendo falhas que não podiam ser vistas por quem estava de fora, de acordo com um exame do The New York Times sobre as operações do JFK8 no ano passado.

Em contraste com o seu processamento preciso e sofisticado de pacotes, o modelo de gestão de pessoal da Amazon –que depende pesadamente de indicadores estatísticos, apps e sistemas automatizados de diálogo– apresentava deficiências, e já estava enfrentando desgastes mesmo antes que o coronavírus explodisse, com os empregados muitas vezes tendo de resolver sem ajuda os seus problemas com a empresa, de acordo com entrevistas e documentos.

Em meio à pandemia, o sistema da Amazon causou giro elevado de trabalhadores, resultou em demissões inadvertidas e suspendeu o pagamento de benefícios, o que lança uma sombra sobre uma história aparentemente exemplar de sucesso nos negócios.

A Amazon adotou medidas inéditas na empresa a fim de oferecer leniência aos trabalhadores afetados pela pandemia, mas em seguida as contradisse ou revogou, em muitos casos.

Trabalhadores como Alberto Castillo, no JFK8, foram informados de que poderiam tirar licença não remunerada pelo tempo que fosse necessário, mas em seguida receberam ordens que os obrigavam a realizar horas extras compulsórias.

Quando a Amazon ofereceu licenças pessoais flexíveis ao seu pessoal, os sistemas que lidavam com isso se congestionaram, o que resultou em uma onda de notificações de abandono de emprego, e fez com que trabalhadores tivessem de correr de volta a fim de tentar preservar seus postos, de acordo com pessoal de recursos humanos e com trabalhadores do armazém.

Depois que o número de ausências disparou, no início da pandemia, e retardou o envio de produtos, a Amazon optou por manter os trabalhadores no escuro quanto ao efeito do vírus sobre a empresa.

A companha não informou os trabalhadores do JFK8 ou de outros armazéns sobre o número de casos registrados neles, o que causou preocupações sobre as notificações de que havia “indivíduos” infectados no local de trabalho de um dado empregado: de quantas pessoas a Amazon estava falando, duas ou 22?

Embora a companhia declarasse publicamente que estava revelando casos confirmados às autoridades de saúde, registros oficiais da prefeitura de Nova York não mostram casos reportados até novembro. Representantes da empresa e do município apresentam versões diferentes do que aconteceu.

A Amazon continua a acompanhar cada minuto de trabalho nos turnos da maioria de seus trabalhadores nos armazéns, registrando dados que variam da rapidez com que embalam produtos à duração de suas pausas –uma forma de monitoração que incentivou um esforço mal sucedido de sindicalização, liderado por empregados negros de um armazém da empresa no Alabama, recentemente.

Se a produtividade caía, os computadores da Amazon presumiam que isso era culpa dos trabalhadores. No começo da pandemia, a empresa suspendeu suas demissões de trabalhadores por baixa produção, mas a mudança não foi anunciada claramente no JFK8, e por isso alguns trabalhadores continuaram temendo que qualquer lentidão no trabalho pudesse lhes custar seu ganha-pão.

“É muito importante que os gestores de área compreendam que os associados são mais do que números”, escreveu um empregado do JFK8 em um fórum de feedback interno da empresa no final do ano passado, acrescentando que “somos seres humanos. Não somos ferramentas usadas para atingir as cotas e os índices diários e semanais da companhia”.

A Amazon alardeou números impressionantes de criação de empregos. De julho a outubro de 2020, ela contratou 350 mil empregados novos, mais do que a população de St. Louis. Muitos dos recrutas —contratados por meio de sistemas computadorizados, sem muita conversação ou verificação humana—duraram apenas algumas semanas em seus postos.

Mesmo ante da pandemia, de acordo com dados não reportados anteriormente, a Amazon perdia cerca de 3% de sua força de trabalho horista a cada semana, o que significa que o giro de pessoal da empresa supera os 150% anuais. Esse número, quase duas vezes mais alto que a média do setor de varejo e logística, causou preocupação entre alguns executivos de que a empresa poderia um dia esgotar o pool de trabalhadores disponíveis nos Estados Unidos.

Para documentar a história não contada sobre como a pandemia expôs o poder e o perigo do sistema de emprego da Amazon, repórteres entrevistaram quase 200 atuais e antigos empregados, de novos contratados no ponto de ônibus que serve o JFK8 a trabalhadores de back-office no exterior, e gestores em Staten Island e em Seattle.

O The New York Times também consultou documentos internos da companhia, documentos judiciais e registros governamentais, além de mensagens nos fóruns de feedback dos armazéns, que servem como alerta em tempo real quanto às preocupações dos trabalhadores.

Em abril deste ano, Bezos se declarou orgulhoso da cultura de trabalho da companhia, de seus objetivos de produtividade “realizáveis” e dos salários e benefícios que ela paga.

Em entrevistas, o vice-presidente de recursos humanos da empresa para a área de armazéns e o gerente geral do JFK8 disseram que a prioridade da empresa era o bem-estar do pessoal, apontando para a expansão da equipe de recursos humanos e mencionando pesquisas internas que demonstram satisfação elevada dos trabalhadores. Alguns gestores do JFK8 e outras unidades descreveram a criação de relacionamentos profundos com suas equipes.

A Amazon admitiu algumas dificuldades com demissões inadvertidas, perda de benefícios, notificações de abandono de emprego e licenças, mas se recusou a revelar o número de pessoas envolvidas. Kelly Nantel, uma porta-voz da companhia, indicou que esses problemas e alguns outros apontados neste artigo são situações excepcionais.

Ofori Agboka, líder de recursos humanos no armazém JFK8, apontou que o distanciamento social e as máscaras tornaram mais difícil o engajamento pessoal com trabalhadores durante a pandemia. Ainda assim, ele disse, “98% de tudo que fazemos está indo muito bem —as pessoas estão tendo as experiências certas, e recebendo a ajuda de que necessitam na hora em que necessitam”.

Mas diversos ex-executivos da empresa que ajudaram a projetar os sistemas da companhia, e ainda se definem como admiradores da Amazon, disseram que o alto giro de mão de obra, a pressão quanto à produtividade e as consequências da ampliação de escala se tornaram severos demais para que se possa ignorá-los.

A companhia não foi ambiciosa em sua resposta a esses problemas, disse Paul Stroup, que até recentemente liderava equipes corporativas cuja missão era compreender os trabalhadores dos armazéns.

“A Amazon pode resolver praticamente qualquer problema que decida encarar”, ele disse em uma entrevista. “A divisão de recursos humanos, porém, não tem o mesmo foco, rigor e investimento que as operações logísticas da Amazon”, nas quais ele trabalhou antes de mudar de área. “A sensação era a de estar em uma empresa diferente”, ele disse.

David Niekerk, que foi vice-presidente da Amazon e responsável pela criação das operações de recursos humanos na área de armazéns, disse que alguns dos problemas derivavam de ideias que a empresa desenvolveu quando era muito menor. Bezos não queria uma força de trabalho com raízes profundas, definindo-a como “uma marcha para a mediocridade”, recorda Niekerk, e via os empregos que requerem baixa capacitação do pessoal como trabalhos de relativamente curto prazo.

Com o crescimento rápido da Amazon, Niekerk disse, as políticas da empresa já não podiam ser implementadas de maneira justa e cuidadosa. “De muitas maneiras, a coisa se tornou simplesmente um jogo de números”, ele disse. “E a cultura se perde”.

Mesmo Bezos, que está em seu período final como presidente-executivo da empresa que criou, agora faz admissões surpreendentes sobre o sistema que inventou. Em uma recente carta aos acionistas, ele disse que o esforço de sindicalização demonstrava que “precisamos de uma visão melhor de como criar valor para os empregados –uma visão quanto ao sucesso deles”.

“Sempre desejamos ser a companhia mais centrada no cliente que existe no planeta”, ele escreveu. Agora, acrescentou, “vamos ser o melhor empregador do planeta e o lugar de trabalho mais seguro do planeta”.

A Amazon também está a caminho de se tornar o maior empregador do setor privado americano, dentro de um ou dois anos, caso sua expansão continue. Cerca de um milhão de trabalhadores nos Estados Unidos, em sua maioria horistas, agora dependem dos salários e benefícios da empresa.

Muitos descrevem seus trabalhos como compensadores. Adama Ndoye sustentou a família com o salário que ganhava no JFK8, enquanto fazia um curso superior online. “Mantive as luzes acesas, coloquei comida na mesa e roupas nos armários, tudo”, ela disse.

A cozinheira Dawn George, se declarou agradecida à Amazon por lhe oferecer trabalho depois que os postos nas cozinhas de hotéis desapareceram, no segundo trimestre do ano passado. “Estou disposta a trabalhar pesado para ter alguma renda”, ela disse.

Há quem admire a ambição da Amazon. “Era como estar em um time [de beisebol] em que o arremessador joga bem toda noite”, disse Dan Cavagnaro, que começou no JFK8 quando o armazém foi aberto, em 2018, e trabalhou com Alberto Castillo.

Mas Cavagnaro foi demitido por engano em julho, quando estava tentando retornar de sua licença, e não conseguiu contatar qualquer pessoa para ajudá-lo.

“Por favor considerem o seguinte”, ele escreveu em seu último apelo por email, que passou sem resposta: “EU QUERO CONTINUAR TRABALHANDO NA AMAZON”.

anoitecer mostra céu azul, prédio e carros
Vista do armazém JFK8, da Amazon, em Staten Island, nos Estados Unidos - Dave Sanders - 15.jun.21/The New York Times

“Como uma cidade fantasma”

No final de março de 2020, Tracy Weishalla percorreu o JFK8 inteirinho, sem usar o colete florescente que a identificava como supervisora. Ela queria observar sem filtro aquilo que em breve estaria ajudando a comandar: um armazém com tamanho equivalente ao de 15 campos de futebol, atendendo à maior metrópole dos Estados Unidos no exato momento em que a cidade estava se tornando o epicentro da pandemia no país.

O ruído das correias transportadoras movendo pacotes era como o rugido de um trem de metrô chegando à plataforma. Construída para dominar o mercado mais lucrativo do país, a instalação operava por quase 24 horas ao dia, sete dias por semana.

Weishalla foi parte da equipe que ajudou a inaugurar o armazém, em 2018, e via oportunidade e propósito –agora que os consumidores presos em casa estavam desesperados por termômetros, desinfetantes e quebra-cabeças– ao voltar como gerente geral assistente. Para uma organização cujo negócio é operar milagres logísticos, o coronavírus era apenas mais um obstáculo a superar, ela disse.

“É isso que fazemos”, explicou Weishalla, 38, mais tarde. “Trabalhamos para descobrir como resolver os problemas impossíveis”

Mas o poderoso sistema da Amazon estava cambaleando. Carretas estavam paradas em armazéns da empresa em todo o país, e não havia trabalhadores suficientes para descarregá-las. Os clientes descobriram que a entrega de produtos considerados pela empresa como não essenciais podia demorar até um mês –uma eternidade para uma companhia cujas entregas rotineiramente acontecem em no máximo dois dias.

Um dos motivos cruciais era que os trabalhadores de armazém não estavam indo ao trabalho.
Para atrai-los de volta, a Amazon ofereceu um aumento de salário temporário de US$ 2 por hora, 100% de adicional por horas extras e, pela primeira vez, licença não remunerada por prazo ilimitado.

Os executivos acreditavam que se os trabalhadores deviam ter o direito de ficar em casa sem medo de demissão e que, diante de uma flexibilidade maior, alguns deles poderiam decidir trabalhar por pelo menos parte de um turno, de acordo com duas pessoas informadas sobre a decisão (como alguns outros líderes importantes da companhia entrevistados para este artigo, eles falaram sob a condição de que seus nomes não fossem revelados, porque não tinham autorização para comentar).

Mulher loira usa máscara contra o coronavírus em ambiente industrial
Traci Weishalla, que é gerente no JFK8, diz que os funcionários da empresa trabalham para solucionar todos os problemas possíveis - Chang W. Lee - 15.jun.21/The New York Times

Em todo o país, cerca de um terço dos 500 mil trabalhadores da Amazon estavam optando por ficar em casa. Alguns novos contratados deixaram seus empregos antes mesmo de começar, de acordo com antigos empregados da área de contratação da Amazon. O JFK8 era como “uma cidade fantasma”, disse Arthur Turner, um empregado que continuou trabalhando.

Mesmo Alberto Castillo considerou a possibilidade de ficar em casa. Os números que as notícias alardeavam eram perturbadores: pelo menos 20 mil nova-iorquinos já contaminados, os hospitais da cidade lotados, e um total de até 1,7 milhão de mortes projetado para o país.

Mas não era hora de ficar sem renda. Os Castillo, imigrantes das Filipinas, queriam comprar uma casa. Ele trabalhava no período da noite, resolvendo problemas e treinando pessoal novato com brincadeiras gentis e referências a “Star Wars”, disseram colegas, e tinha acabado de se candidatar a uma promoção.

As instruções do JFK8 eram contraditórias, além disso: a despeito da promessa da Amazon de licença remunerada sem limite de prazo, os trabalhadores foram alertados de que todos os departamentos estariam trabalhando em regime de horas extras obrigatórias.

Quando Alberto Castillo chegou para o trabalho em 24 de março, soube que o primeiro caso de contágio havia sido identificado no armazém. Enviou uma mensagem ao seu chefe, cuja resposta foi: “sim, esqueci de falar disso”, e acrescentou que todas as pessoas que trabalhavam com o colega infectado haviam sido avisadas.

Alberto Castillo ligou para a mulher, para discutir se devia voltar para casa. Eles decidiram que seria melhor terminar o turno. No carro, voltando para casa em Nova Jersey ao raiar do dia, ele começou a sentir um incômodo na garganta.

Trabalhadores organizados

Naquela manhã, dois trabalhadores fizeram o percurso contrário ao de Alberto e foram à sala de repouso do JFK8 para informar dezenas de colegas de que o vírus estava à solta no armazém, eles não podiam confiar em que a Amazon lhes dissesse a verdade, e que a instalação precisava ser fechada.

Derrick Palmer e Chris Smalls, colegas de equipe na Amazon e grandes amigos na vida real, não eram parte de um esforço formal de organização de trabalhadores. Seu empregador encara a sindicalização como ameaça mortal, e tinha desistido de construir uma segunda sede em Nova York em parte por medo de uma potencial campanha de sindicalização.

Um sindicato de trabalhadores logísticos havia declarado, ousadamente, que o JFK8 seria o primeiro armazém sindicalizado da Amazon no país, mas a campanha fracassou.

Os dois trabalham na Amazon desde 2015, e conheciam a empresa desde os degraus mais baixos de sua hierarquia. Palmer, 31, era cuidadoso e deliberado, e estava em tão boa forma que muitas vezes saía do trabalho direto para academia, depois de 10 horas de batente. Ele abandonou o curso universitário sem conclui-lo e trabalhou em diversos armazéns da Amazon.

No JFK8, ele trabalhava como “apanhador”, pegando produtos de prateleiras robotizadas. Palmer muitas vezes obtinha os melhores números no software que mede produtividade, e foi selecionado para treinar outros trabalhadores e ajudar na abertura de um novo armazém da Amazon no Illinois.

Ele também se sentia desapontado, e acreditava que o imenso sucesso da Amazon não beneficiava trabalhadores como ele. Os trabalhadores se sentiam administrados basicamente por apps, algoritmos e regras severas mas mal explicadas, disse Palmer.

Quando ele conversou com Weishalla em uma sessão de feedback em 2019, disse Palmer, sua solicitação foi mais interação humana com a chefia; ele também lhe disse que gostaria de ter um emprego como o dela. Mas não houve mudanças. “Se fazemos mais do que nos é pedido, não há recompensa”, ele declarou em entrevista.

Homem negro posa sentado com as pernas abertas em uma escada
Palmer trabalhou durante cinco anos na Amazon e percebeu que o sucesso da empresa não se estendia a todos os trabalhadores - Sarah Blesener - 15.jun.21/The New York Times

Quando Palmer solicitou uma promoção pela última vez, no começo de 2020, ele era uma das 382 pessoas que se candidataram ao posto. Ainda que Palmer não soubesse disso, a probabilidade de ele conquistar o posto era propositadamente remota, o que deriva das filosofias de gestão de Bezos.

A Amazon limita deliberadamente a ascensão de trabalhadores horistas, disse Niekerk, antigo vice-presidente de recursos humanos que se aposentou em 2016 depois de 17 anos na empresa. Dave Clark, então vice-presidente de operações, recusou uma proposta dele em 2014 para criar mais papéis de liderança para os horistas, de forma semelhante ao que as forças armadas fazem com relação aos oficiais não comissionados, ele disse.

Em lugar disso, Clark, que agora é presidente-executivo das operações ao consumidor da Amazon, queria duplicar a contratação de gestores “altamente inteligentes” diretamente da universidade, disse Niekerk. Em contraste, mais de 75% dos gestores das lojas da Walmart nos Estados Unidos começaram como empregados horistas.

Acompanhando o padrão do restante da companhia, no ano passado o JFK8 promoveu 220 pessoas, entre seus mais de cinco mil trabalhadores, um índice que equivale a menos da metade do registrado na Walmart.

O fundador da Amazon não queria que os trabalhadores ficassem por tempo demais em seus empregos, por ver uma grande força de “trabalhadores insatisfeitos” como ameaça à companhia, disse Niekerk. Dados da Amazon demonstram que a maioria dos trabalhadores perde o entusiasmo, com o passar do tempo, e Bezos acredita que as pessoas sejam inerentemente preguiçosas.

“O que ele dizia é que nossa natureza como seres humanos é a de gastar o mínimo possível de energia para obter o que desejamos ou precisamos”.

Essa convicção influenciava todo o negócio, da facilidade de fazer pedidos instantaneamente ao uso pervasivo de dados a fim de obter o máximo dos trabalhadores.

Assim, os aumentos garantidos de salário só valiam para os três primeiros anos de emprego, e a Amazon criou incentivos para que trabalhadores de baixa capacitação se demitissem.

A cada ano, Palmer via a colocação de cartazes que ofereciam milhares de dólares em indenização a trabalhadores dispostos a se demitir, e quando chegava ao JFK8 a cada manhã, passava por uma sala de aula que oferecia cursos gratuitos que treinavam pessoal para outros trabalhos, fora da companhia.

Agboka, o líder de recursos humanos, disse que embora a companhia oferecesse treinamento e carreiras na Amazon aos interessados, também tinha orgulho por oferecer postos de curto prazo às pessoas, “para as temporadas e períodos” em que elas precisassem de trabalho.

Quando o vírus chegou ao JFK8, a preocupação de Palmer era sobre como a Amazon protegeria os trabalhadores e se comunicaria com eles. As notificações sobre o primeiro caso de Covid-19 haviam sido desordenadas. Uma colega que trabalhava perto de Smalls parecia doente, e tinha os olhos avermelhados enquanto batalhava para conseguir chegar ao fim do turno.

Os dois amigos só viam uma solução: o JFK8 precisava parar, passar por uma limpeza e reavaliar a situação, como já tinha acontecido, por um breve período, em uma instalação da Amazon em Queens.

Licença não remunerada não era suficiente, eles disseram –uma companhia dirigida pelo homem mais rico do planeta não deveria forçar seus trabalhadores a escolher entre salário e segurança. Palmer convidou dezenas de colegas a discutir suas preocupações em uma conversa via Instagram.

“É por isso que decidi ficar em casa”, escreveu um deles.

“Saúde antes da riqueza, honestamente, e beije as pessoas que ama todos os dias”, foi a resposta de outro trabalhador.

“Vocês só estão apanhando produtos essenciais?”, perguntou um deles, em referência aos esforços da Amazon para enviar apenas as mercadorias de primeira necessidade, no começo da pandemia.
“Cara, eu estou estocando vibradores”, respondeu outro trabalhador.

Quase todos os trabalhadores do grupo eram negros, como Palmer e Smalls, ou latinos. O mesmo vale para 60% dos trabalhadores do JFK8, de acordo com documentos internos da Amazon referentes a 2019.

Nos postos de gestão, mais de 70% dos trabalhadores são brancos ou asiáticos. A probabilidade de demissão –seja por baixa produtividade, desrespeito a regras ou ausência do emprego– era 50% maior para os trabalhadores negros do que para os colegas brancos, os registros mostram (a Amazon afirmou que não podia confirmar os dados sem saber mais dados sobre a fonte).

Tendo em vista a monitoração constante, a suposição de que muitos trabalhadores são folgados e a falta de oportunidades de promoção, “muitos dos trabalhadores minoritários sentiam estar sendo usados”, disse Palmer mais tarde.

“Somos o coração e alma daquele lugar”, ele escreveu no chat. “Sem nós, nada é feito”.

Os dois amigos repetiram seus avisos aos colegas sobre a situação por diversos dias, na sala de repouso de trabalhadores, e confrontaram executivos do JFK8.

“Se, que Deus não queira, alguém que trabalha aqui vier a morrer, se o ente querido de alguém vier a morrer, a responsabilidade será de vocês e não minha”, disse Smalls, o mais combativo dos dois, ao principal líder do armazém, de acordo com uma gravação da conversa entre eles.

Em 30 de março, os dois e um pequeno grupo de trabalhadores se manifestaram no estacionamento. Palmer carregava um cartaz que dizia “tratem seus trabalhadores como tratam os clientes”.

Em Seattle, executivos que ainda não tinham conseguido chegar a uma solução para a queda na frequência dos trabalhadores buscaram minimizar o protesto, mas isso só serviu para atrair mais atenção para ele.

A Amazon demitiu Smalls, dizendo que sua manifestação havia violado uma ordem de quarentena baseada em seu contato com um colega infectado (Palmer foi advertido por violar as regras de distanciamento social). Anotações sobre uma reunião feitas no dia seguinte pelo principal advogado da companhia, e que vazaram para a Vice News, descreviam Smalls como “nada inteligente ou articulado”.

Embora o advogado se apressasse a declarar que não estava informado sobre a raça de Smalls, um grupo de empregados negros na sede da empresa escreveu uma carta que definia a caracterização injuriosa de Smalls como “parte de um padrão sistêmico de viés racial que permeia a Amazon”, e a senadora Elizabeth Warren descreveu a demissão como uma retaliação, o que a Amazon negou.

Palmer optou por continuar no JFK8, determinado a lutar por mudar a companhia de dentro. Bezos, que estava refugiado em seu rancho no oeste do Texas, fez uma de suas raras visitas a um armazém da Amazon, perto de Dallas, em 8 de abril, saudando os trabalhadores com o polegar erguido.

Convocando os trabalhadores a voltar

Com tantos empregados determinados a ficar em casa –por conta de necessidades familiares, medo de contrair o coronavírus ou relutância de usar o transporte coletivo—, o impensável estava acontecendo com a Amazon: seus clientes estavam recorrendo a competidores.

Na metade de abril, a Walmart e outras cadeias de varejo estavam claramente ganhando terreno. Para reverter a tendência e atender os consumidores, a Amazon teria de encontrar uma maneira de levar os trabalhadores de volta aos seus armazéns. Qualquer decisão que a companhia tomasse afetaria a vida de centenas de milhares de empregados.

A tarefa de calcular as variáveis ficou com Paul Stroup, que comandava equipes de ciência de dados em Seattle. Stroup era um veterano do que ele descreve como “o cérebro” das operações da Amazon —uma divisão que conta com milhares de trabalhadores e busca aumentos de eficiência, mesmo que mínimos, para otimizar as entregas e torná-las mais rápidas, baratas e previsíveis– quando, em 2019, foi transferido inesperadamente para o setor de recursos humanos. Alguns colegas, chocados, brincaram que a transferência era como ganhar um ano sabático.

Homem branco posa sério na rua em ângulo de perfil
Paul Stroup, ex-funcionário da Amazon, diz que esperava usar dados para melhorar a situação dos trabalhadores da empresa - Ruth Fremson - 15.jun.21/The New York Times

Mas Stroup tinha em seu retrospecto um trabalho de baixo pagamento, como carregador em uma loja da Home Depot com salário de US$ 9 por hora. A Home Depot também pagava metade de suas mensalidades universitárias. Pouco depois de se formar, ele foi transferido para a sede da companhia.

“Se eu quisesse ajudar o maior número de pessoas que pudesse, trabalhar na área de recursos humanos da Amazon, um dos maiores empregadores do planeta, poderia ter um impacto imenso”, disse Stroup. Ele esperava ajudar a melhorar a vida dos trabalhadores horistas não só na Amazon, disse, mas também em empresas que tomam a Amazon como exemplo.

Ao avaliar as opções de retorno ao trabalho, ele estava confiante em que os armazéns da Amazon estavam se tornando mais seguros, graças aos bilhões de dólares investidos pela empresa em proteção contra o vírus.

Em Staten Island, Weishalla comandou um processo criado para aspergir desinfetante por toda a instalação nos intervalos entre turnos; o método mais tarde passou a ser usado em todo o país e na Europa. Leitores de temperatura de trabalhadores foram instalados no JFK8 e outros armazéns. Fitas coloridas, marcando percursos de mão única, entrecruzavam o piso do armazém.

Engenheiros de inteligência artificial criaram um programa que projetava círculos virtuais de dois metros de diâmetro em torno dos empregados, para ajudá-los a respeitar o distanciamento.

“Não podemos esperar três meses”, disse Weishalla. “Essa é a prioridade número um”.

Stroup também ajudou os cientistas de dados e epidemiologistas a criar recursos que identificavam potenciais focos de contágio, montando uma central para rastreamento de casos. Embora algumas instalações da Amazon tenham registrado picos preocupantes, ele disse, a análise demonstrava que a maioria delas, entre as quais o JFK8, tinha níveis de contágio iguais ou inferiores aos encontrados nas comunidades em que viviam seus trabalhadores –embora o número de exames fosse limitado, inicialmente.

Não houve grandes surtos reportados nos armazéns, ao contrário do que aconteceu no setor de processamento de carne, mas o número de mortes causadas pela Covid-19 nos Estados Unidos estava crescendo rapidamente.

Stroup estava preocupado com a forma pela qual a Amazon convocaria os trabalhadores a retornar. A companhia precisava saber quais deles não pretendiam voltar, para que pudesse substitui-los. Mas forçar os trabalhadores a um retorno abrupto demais poderia resultar na necessidade de demitir dezenas de milhares de pessoas.

Stroup sabia que muita gente contava com o emprego na Amazon: “A limpeza, os procedimentos, a remuneração, os benefícios –tudo isso era muito competitivo”, ele disse.

Stroup preparou levantamentos e dados para o vice-presidente de operações, Clark, que tomaria a decisão final.

“Fui informado de que Dave queria agir mais rápido, e que deixar as pessoas sem saber se vão ou não voltar ao trabalho não estava ajudando. Tínhamos criado um lugar seguro de trabalho– e provado que as pessoas não estavam sendo contagiadas pela Covid no trabalho, e por isso tínhamos de descobrir logo se elas queriam ou não voltar”, disse Stroup.

Em uma reunião virtual, Stroup disse a Clark que, se os trabalhadores fossem trazidos de volta gradualmente, ao longo de um mês ou dois, só entre 5% e 10% deles optariam por ficar em casa mesmo que isso lhes custasse seus empregos. Com um plano de retorno mais rápido, era provável que muito mais gente optasse por ficar em casa e ser demitida.

“O exemplo que tínhamos de um retorno imediato era bem ruim”, disse Stroup. “O cálculo é que teríamos de demitir de 20% a 30% de nosso pessoal em um mês”.

Dentro de poucos dias, ele foi informado de que Clark havia escolhido o segundo caminho. “Minha equipe não gostou”, disse Stroup. Mas mesmo assim, ele compreendia as dificuldades de Clark. “Existe muita pressão quando você opera um site que normalmente promete entrega em um ou dois dias e de repente passa a prometer entrega em 28 dias”, ele disse.

Nantel, a porta-voz, disse que a decisão foi tomada para apoiar os consumidores e as comunidades em um momento de necessidade, e em favor de oferecer empregos seguros a pessoas que os quisessem. A Amazon não autorizou diversos de seus executivos mais importantes a conceder entrevistas, entre os quais Clark; a vice-presidente de recursos humanos Beth Galetti; e Bezos.

No final de abril, a Amazon informou aos trabalhadores que as licenças não remuneradas por prazo ilimitado não seriam estendidas até maio. A companhia afrouxou os requisitos para pedidos de licença pessoal; os trabalhadores que desejassem continuar em casa sem penalidades tinham uma semana para notificar a empresa. Essa decisão criou caos.

Recursos humanos via app

Imediatamente, pedidos de licença começaram a chegar em volume imenso ao serviço de back-office da Amazon em San José, na Costa Rica. O sistema não dava conta do número de solicitações.

Dangelo Padilla, costarriquenho que começou na Amazon em 2016 e se tornou gerente de atendimento, acordava a cada manhã para encarar o que descreve como “tarefas intransponíveis”. Ele e os colegas estavam esmagados sob uma pilha de quase 18 mil solicitações, no começo de março, de acordo com emails, e na semana final de abril receberam mais 13,5 mil pedidos.

Os trabalhadores estavam em pânico e queriam confirmar suas licenças, mas os números de contato telefônico estavam sempre ocupados, e gravações os informavam de que as respostas demorariam. Algumas pessoas que tinham pedido licenças foram penalizadas por faltar ao trabalho, mesmo assim, o que gerou advertências e em seguida demissões automáticas. Quando as mensagens dessas pessoas chegavam a Padilla e seus colegas, eles ficavam incomodados.

“Era algo que estava afetando os trabalhadores e nos afetando”, Padilla disse ter informado aos seus chefes. “Vocês precisam resolver essa situação”.

Centro de distribuição da Amazon
O armazém JFK8, da Amazon, cujo tamanho equivale a 15 campos de futebol - Chang W. Lee - 15.jun.21/The New York Times

A equipe que determinava se os empregados tinham direito a licenças há muito tempo enfrentava problemas causados por tecnologia precária, de acordo com Padilla e outros atuais e ex-funcionários da Amazon na Costa Rica.

Logo antes da pandemia, eles começaram a usar um novo sistema de atendimento chamado Dali para lidar com os problemas e ganhar flexibilidade, mas o sistema não funcionava bem. Membros da equipe encontravam problemas técnicos constantemente. “Ficamos perdidos”, disse Padilla. “Nem nossos chefes sabiam como operar com ele”.

Mensagens de fax e emails que deveriam ser separadas automaticamente terminavam empilhadas em uma imensa caixa de entrada unificada que precisava ser examinada manualmente. As licenças aprovadas, que deveriam ser registradas imediatamente nos programas de verificação de frequência dos trabalhadores, precisavam ser inseridas manualmente por um escritório de back-office separado, em Pune, na Índia.

Quando isso não acontecia em tempo, os empregados dos armazéns que tinham licenças não remuneradas aprovadas mas não registradas recebiam notificações de que seriam demitidos por abandono de emprego. “Eu via aquelas situações todos os dias –pessoas recebendo notificações sem motivo, pessoas demitidas sem motivo”, disse Padilla.

Em entrevistas, mais de 25 atuais e antigos empregados das Amazon que tiveram de lidar com o sistema de licença e de licença-saúde –executivos, pessoal de recursos humanos do JFK8 e de outros armazéns, e pessoal de back-office nos Estados Unidos e no exterior– se queixaram de sua ineficiência, afirmando que erros como os descritos por Padilla eram comuns.

A Amazon identifica muitos dos erros; alguns empregados defendem suas posições e terminam vencendo. Mas muita gente desiste e deixa a empresa.

Nantel, a porta-voz, disse que a companhia estava aprovando licenças pessoais rapidamente no período, e que contratou 500 pessoas para ajudar a processar o número elevado de pedidos.

Ela disse que a Amazon recebeu mais de um milhão de pedidos de licença no primeiro ano da pandemia, duas vezes o número previsto, e que trabalhou com afinco para contatar os empregados antes de demiti-los, a fim de determinar se eles queriam manter seus empregos.

Os trabalhadores recorriam às equipes de recursos humanos nos armazéns em busca de ajuda, embora elas não tivessem responsabilidade primária pelas licenças. Mesmo em circunstâncias normais, essas equipes são insuficientes.

Em entrevistas, veteranos de Staten Island e de outros armazéns nos Estados Unidos descreveram longas horas de esforço para tentar corrigir erros, aplicar com justiça as regras da Amazon e responder aos problemas que afligem qualquer força de trabalho mal remunerada –dificuldades de transporte, falta de creches.

No JFK8, alguns empregados disseram que passavam todo seu intervalo de 30 minutos em fila no departamento de recursos humanos mas não conseguiam ser atendidos.

Nos armazéns, quiosques de autoatendimento realizam muitas das tarefas tradicionais dos departamentos de recursos humanos. Um app chamado A to Z cuida de tudo, de folhas de pagamento a mudanças de horário.

Muitos trabalhadores disseram que o app é fácil de usar. Ele recebeu 4,7 estrelas na App Store da Apple, mas até mesmo alguns dos que o elogiam encontram alguns problemas. “O app é ótimo, muito útil, MAAAS!!!”, começa a resenha de um usuário que deu cinco estrelas ao produto e que foi considerada como uma das resenhas mais úteis pelos demais usuários.

“Os trabalhadores deveriam poder falar com uma pessoa, e não um bot de chat virtual, para obter assistência individual... Especialmente quando muitos deles dizem ter sido demitidos porque o que foi aprovado no chat não é registrado ou parece ter sido esquecido”.

A tecnologia foi projetada para dar aos usuários muitas maneiras de se comunicar com a empresa, e seu objetivo não era substituir as interações pessoais, disse Nantel. Ela acrescentou que a equipe de recursos humanos que responde pelo pessoal dos armazéns cresceu em 60% de 2019 para cá – um crescimento que acompanha o da força de trabalho horista.

No JFK8, a equipe de recursos humanos para atender a mais de cinco mil trabalhadores aumentou de 25 para 34 pessoas desde o começo da pandemia.

Padilla pediu demissão da Amazon na metade do ano passado mas voltou em maio, grato por agora estar trabalhando em uma equipe que nada tem a ver com administrar pedidos de licença. “Estar lá”, ele disse, “basicamente destruiu minha saúde mental e minha estabilidade”.

Lucros recorde, aumentos salariais suspensos

Em Staten Island, os trabalhadores começaram a receber as temidas advertências.

Cavagnaro, que trabalhava com Alberto Castillo, estava de licença na Amazon. Ele enviou um atestado médico à empresa que sugeria um retorno em junho, mas não conseguiu contatar a companhia para tirar dúvidas ou discutir seu retorno.

O sistema de acompanhamento da Amazon o registrou como ausente, e ele começou a receber notificações de abandono de emprego. Porque não conseguia respostas da companhia, ele decidiu desistir e aceitar a demissão.

Depois que o The New York Times consultou a Amazon sobre sua situação, a empresa lhe ofereceu seu emprego de volta. (Nantel disse que o caso dele “deveria ter sido conduzido de um jeito melhor”.)

No momento em que Cavagnaro estava enfrentando dificuldades sobre retornar ou não ao JFK8, a saúde de Alberto Castillo tinha se deteriorado muito. Médicos disseram a sua mulher que ele não voltaria a falar, comer ou trabalhar.

Impossibilitada de visitá-lo por causa das restrições da Covid, Ann Castillo criou um mural em seu pequeno apartamento no qual as quatro pessoas da família apareciam celebrando feriados religiosos, treinando artes marciais ou usando fantasias combinadas no Halloween.

No Dia dos Pais, os dois filhos do casal foram ao centro médico em que o pai estava sendo tratado e ficaram do lado de fora, erguendo cartazes em que declaravam sua devoção a Castillo.

Mulher faz carinho na testa de uma paciente acamada
A Covid-19 deixou Castillo incapacitado; na foto, sua mulher, Ana Castillo, cuida dele em casa - Sarah Blesener - 15.jun.21/The New York Times

O seguro-saúde fornecido pela Amazon cobria a maior parte das despesas médicas, mas Castillo descobriu que os pagamentos que o marido vinha recebendo por sua incapacitação temporária haviam sido suspensos.

“Eu continuava mandando os formulários médicos para lá, mas não sabia se alguém do outro lado os estava recebendo”, ela disse.

A casa que a família esperava comprar se tornou um sonho impossível, e Ann Castillo tinha de viver contando os centavos e aceitando doações de amigos.

O gerente de recursos humanos do JFK8 pediu desculpas e corrigiu o erro que tinha resultado na suspensão dos pagamentos por 10 semanas. A Amazon disse que os documentos submetidos por Ann Castillo não chegaram ao encarregado do caso, um problema de sistemas que também prejudicou outras pessoas.

Com o retorno dos trabalhadores, a Amazon informou aos seus empregados em todo o país que o suplemento salarial de US$ 2 por hora seria suspenso, assim como o adicional de 100% por horas extras. Os salários adicionais não constituíam pagamento “por risco”, disseram os dirigentes da empresa, e eram apenas um incentivo para que os trabalhadores comparecessem.

A decisão de forçar os trabalhadores a voltar encaminhou a companhia ao período mais lucrativo de sua história. Pelo final de maio, o JFK8 era um dos armazéns de melhor desempenho nos Estados Unidos, processando 1,68 milhão de itens por semana, alardeou Christine Hernandez, que trabalhava na área de recursos humanos da Amazon, em uma mensagem no Twitter. “Yasss!!!”, ela comemorou.

Em julho, a Amazon anunciou receita trimestral de US$ 5,2 bilhões –um recorde, até que o trimestre seguinte resultou em receita de US$ 6,3 bilhões.

A Amazon estava “correndo a toda velocidade” desde o começo de maio, quando mais pessoas começaram a retornar, explicou Brian Olsavsky, o vice-presidente de finanças da companhia, em uma conversa telefônica com jornalistas. Isso fez com que o grupo de varejo online atendesse à enorme demanda do mercado com mais eficiência, trabalhando 24 horas por dia. Era como a Black Friday todos os dias.

Caixas de papelão da Amazon
A Amazon teve lucro recorde de US$ 21 bilhões em em 2020 - Chang W. Lee - 15.jun.21/The New York Times

O poder dos dados

Para Traci Weishalla e seus colegas, a chave para estimular milhares de empregados a atingir o nível de desempenho requerido era ditar um ritmo. Velocidade era essencial, mas manter o armazém inteiro no ritmo necessário também era. Se os novos produtos fossem descarregados mais rápido do que o tempo necessário a fim de prepará-los para envio, o JFK8 inteiro travaria.

O centro de distribuição é um grande organismo em um ecossistema ainda maior formado por outros armazéns e, para manter a coordenação com eles e a frota de motoristas de entrega, Weishalla precisava manter uma pulsação rápida e consistente.

Dois indicadores dominam os turnos de trabalho da maior parte dos horistas. O indicador de ritmo avalia a rapidez de seu trabalho, e um indicador conhecido como TOT avalia o tempo que eles passam afastados de suas tarefas –seja para visitas ao banheiro, para reparar máquinas defeituosas ou para uma conversa com um colega.

A companhia foi pioneira de formas novas de calcular ambos os indicadores, na metade da década de 2000, quando ela decidiu revolucionar o funcionamento dos armazéns, em um período no qual a empresa era muito menor e mais combativa.

Niekerk, o ex-chefe de operações de recursos humanos, disse que a ênfase em indicadores de produtividade, atraente em uma empresa altamente analítica como a Amazon, foi debatida desde o começo. Ele era cético, argumentando que “um indicador de produtividade é sempre assustador”, porque transmite a ideia de que “basta um tropeço e ficarei para trás”.

“Perdi aquela batalha”, ele disse. Por fim, promessas de entregas mais rápidas e eficientes criaram “um efeito multiplicador nas demandas por produtividade mais alta”.

Nos armazéns mais novos e pesadamente robotizados, como o JFK8, esses indicadores têm posição central nas operações da Amazon. Um único gerente de linha de frente consegue acompanhar o trabalho de 50, 75 ou até 100 trabalhadores por meio de um laptop.

Relatórios automatizados sinalizam quando alguém está enfrentando problemas. Um trabalhador cujo ritmo seja lento, ou cujo TOT seja alto demais, corre o risco de medidas disciplinares ou demissão. Se um trabalhador não está realizando sua tarefa, o sistema presume que a culpa é dele.

Os administradores têm instruções de perguntar aos trabalhadores o que aconteceu e inserir manualmente no sistema códigos para o que consideram como desculpas justas, por exemplo equipamento defeituoso, sobrepondo sua avaliação ao sistema automatizado.

Documentos internos demonstram que os gestores eram instruídos a lidar apenas com o “principal culpado” por TOT em cada departamento e turno. Menos de 1% das demissões realizadas em 2019 aconteceram por problemas de TOT ou ritmo insatisfatório de trabalho, de acordo com Nantel.

Mas os trabalhadores não sabem disso. O objetivo, afirmam as diretrizes internas do JFK8, “é criar um ambiente não em que estejamos advertindo todo mundo, mas no qual os associados saibam que o TOT é auditado”.

Os trabalhadores não têm acesso fácil ao seu TOT acumulado, o que aumenta a ansiedade. Começou a circular o boato de que os trabalhadores da Amazon não podiam parar para ir ao banheiro –uma impressão equivocada que tinha por base uma apreensão real. Alguns trabalhadores usavam cadernos para anotar o que estavam fazendo a cada minuto de seu dia de trabalho, em caso de dúvida.

Agboka disse que o TOT existe para identificar obstáculos a que um trabalhador faça sua tarefa. “Não queremos que as pessoas trabalhem tendo em mente a perspectiva de perder o emprego, e sim que pensem em produtividade e sucesso”, ele disse.

Alguns trabalhadores, como Arthur Turner, consideram o sistema justo. “Se você chega aqui e faz a coisa certa, segue todos os protocolos que eles desejam que você siga, não há como encontrar problemas”, ele disse.

Dayana Santos, 32, que começou no JFK8 em junho de 2019, aprecia o uso dos indicadores. “Como posso fazer meu trabalho eficientemente se outra pessoa não faz o dela?”, perguntou Santos, que às vezes competia com colegas por diversão. “Por que tudo tem de ser uma competição, Santos?”, o chefe dela gosta de provocar.

Depois de meses de elogios dos superiores, Santos teve um dia muito ruim. Ela estava trabalhando na área de robótica mas, porque seu ônibus atrasou, foi instruída a apanhar pacotes, naquele turno.

Depois do almoço, o sistema lhe ofereceu uma mudança de função, que por fim não aconteceu, e quando ela voltou à sua estação de empacotamento, ela já estava ocupada. Santos caminhou por todo o armazém procurando uma estação desocupada, e acumulando TOT. Naquela tarde, ela descobriu, para seu espanto, que tinha sido demitida.

Histórias como essa intimidam os trabalhadores antes mesmo de eles começarem na empresa, constatou uma equipe de recursos humanos na sede da Amazon. “Todo mundo em uma comunidade, uma pessoa em cada três, trabalhou na Amazon”, disse Stroup. “Todo mundo recebe informações dispersas, em uma conversa de jantar ou com amigos”.

Experimentos conduzidos por uma das equipes de Stroup constataram que espicaçar os trabalhadores não os torna produtivos o bastante para compensar a ansiedade. A equipe costumava brincar que dar US$ 5 ao trabalhador “provavelmente teria um impacto melhor do que um chefe procurar a pessoa para dizer que ela trabalhou mal na semana passada”. O trabalho das equipes quanto a essa questão parou quando a pandemia gerou prioridades mais urgentes.

Mas no terceiro trimestre do ano passado, a resistência a esse tipo de norma estava crescendo. Com o fim do pagamento adicional pela Covid, e os protestos do Black Lives Matter se espalhando pelos Estados Unidos, um pequeno grupo de trabalhadores negros em um armazém em Bessemer, Alabama, no subúrbio de Birmingham, estava irritado com a microgestão de seu tempo de trabalho pela Amazon. Um desses trabalhadores, frustrado, encontrou informações online sobre o sindicato que havia tentado sindicalizar o JFK8.

Em Nova York, Santos decidiu que faria seu modesto protesto. A Amazon havia contestado seu pedido de benefícios-desemprego, argumentando que ela foi demitida com justa causa. Ela decidiu rebater a afirmação, e um juiz de um tribunal administrativo acatou sua posição, apontando que ela não tinha recebido qualquer advertência e que a Amazon não havia provado que ela tinha abandonado sua tarefa.

Poucas semanas depois, uma mensagem de email de Weishalla chegou às caixas de entrada dos trabalhadores do JFK8 e cópias foram colocadas na entrada dos banheiros do armazém, afirmando que o “feedback de produtividade” estava suspenso por causa da pandemia. Isso significava que ninguém seria demitido por trabalhar devagar demais. Mas a mensagem também causou confusão ao apontar que a mudança estava em vigor desde março. (O texto informava além disso que os trabalhadores teriam minutos livres adicionais para lavar as mãos.)

Até receber a notificação, muitos trabalhadores não faziam ideia de que a companhia havia relaxado uma de suas regras trabalhistas mais controvertidas. Os indicadores de ritmo de trabalho continuavam a ser exibidos nas estações dos trabalhadores, e as instruções iniciais aos gestores haviam sido identificadas como “para orientação verbal apenas”.

Nantel disse que os gestores deveriam informar cada trabalhador individualmente sobre a mudança, no que ela define como “abordagem de alto contato”. As notificações de Weishalla a todo o pessoal foram causadas por um processo judicial –mais tarde descartado– que contestava as condições de trabalho no JFK8 durante a pandemia. O principal queixoso era Derrick Palmer.

Ainda que não fosse possível punir trabalhadores por um ritmo baixo de trabalho, os gestores ainda assim encorajavam a rapidez. Certo dia, no terceiro trimestre, Thalia Morales, 28, estava limitando suas visitas ao banheiro a fim de melhorar sua produtividade. Mas quando ela não conseguiu se segurar por mais tempo, descobriu que o banheiro feminino mais próximo estava fechado.

Morales ficou furiosa e brigou com um faxineiro, que lhe disse que ela não podia entrar. Ela foi demitida pela explosão verbal, contou Morales em uma entrevista posterior, e foi informada de que jamais voltaria a trabalhar para a empresa.

Pouco tempo depois, ela ficou chocada ao receber uma notificação via app de que estava ausente do trabalho. Ela voltou ao armazém cheia de desconfiança, para completar seu turno, e continua a trabalhar lá até hoje. Sua demissão não havia sido processada devidamente. No caso de Morales, a Amazon errou em seu favor.

Pelo final de setembro, começou a circular pelo JFK8 e outras instalações a informação de que a suspensão de demissões por baixa produtividade ia acabar. A temporada de festas estava chegando, e a expectativa da empresa era de que ela fosse a melhor da história da companhia.

Giro brutal de trabalhadores

Em 13 de outubro, o ônibus que passa pelo JFK8 estava lotado de trabalhadores contratados com uma urgência sem paralelos na história empresarial americana. Era o Prime Day, uma invenção da Amazon: um feriado comercial que serve de ponto de partida para temporada natalina. Para ficar à altura do momento, o armazém estava contratando famílias e grupos de amigos inteiros, sem entrevistas de admissão e na maioria dos casos sem muita conversação entre empregador e contratado.

A noite estava caído e caminhões rolavam sem parar, e Tiara Mangroo, estudante de segundo grau que tinha acabado de concluir seu turno, estava abraçada com seu namorado. Ele também trabalhava na unidade da Amazon em Staten Island, assim como o pai, o tio, os primos e a melhor amiga de Mangroo. O universitário Keanu Bushell trabalhava no turno diurno e seu pai no noturno, e os dois dividam um carro, que fazia quatro viagens diárias entre Brooklyn e o JFK8. Uma dupla formada por mãe e filha organizava pacotes de comida para o intervalo de alimentação no meio do turno; outros empregados entravam carregando cafés ou bebidas energéticas nas sacolas transparentes que os trabalhadores precisam usar para prevenir roubos. A maioria dessas pessoas se declarava grata por estar empregada.

Kevin Michelus, 60, que se aposentou depois de uma vida inteira de trabalhos ocasionais, foi atraído ao receber um cartão postal que prometia trabalho. “Não é preciso currículo ou experiência”, o cartão dizia, segundo ele. “Nunca tinha ouvido falar de um emprego assim”. Michelus e outros novatos foram contratados depois de uma seleção online sumária. Dentro da companhia, há quem descreva o processo de admissão automatizado como “contratação cega”, com algoritmos tomando decisões e um senso bastante limitado, da parte da Amazon, sobre quem está sendo admitido.

Niekerk disse que Bezos foi o propulsor do processo de remover interferência humana nas contratações, afirmando que a necessidade de pessoal da Amazon seria tão grande que o processo de contratação teria de ser como “uma tela na qual a pessoa tica os quadradinhos necessários”.

Bezos também considerava as avaliações automáticas como uma forma de encontrar trabalhadores motivadas e evitar vieses, disse Niekerk.

A Amazon se vangloriou publicamente dos postos de trabalho que criou, se definindo como uma força em favor do crescimento e da sustentação. O que os números mascaravam era que muitos desses trabalhadores eram descartados pela companhia em questão de meses ou mesmo dias.

Com a passagem das semanas, começaram a surgir sinais de problemas, de acordo com entrevistas e mensagens em um fórum de feedback interno do JFK8 a que o The New York Times teve acesso.

Diversas mensagens afirmavam que os trabalhadores precisavam receber notificações mais informativas sobre as horas extras compulsórias, e ser avisados de que “as escalas mudam sem aviso, sem mensagem de texto, sem email, coisa nenhuma”.

Os representantes dos recursos humanos eram “difíceis de encontrar”, “destreinados”, e “incapazes de lidar com queixas genuínas”. Outras mensagens questionavam por que o tempo que os trabalhadores passavam procurando ajuda de representantes de recursos humanos da empresa para resolver problemas era registrado como TOT não remunerado, deduzido pelo app A to Z. “Veja toda a tecnologia que existe agora”, escreveu um empregado. “Tenho certeza de que isso pode ser corrigido”.

Alguns dos trabalhadores encontraram problemas imediatamente, ou pareciam inadequados para seus postos. Mangroo nem deveria estar lá; as normas de contratação da Amazon não admitem a contratação de estudantes de segundo grau. Ela foi demitida por problemas de TOT, depois do que a Amazon define como tentativas repetidas de instrução. Sua melhor amiga e seu tio não demoraram a perder o emprego, igualmente.

Michelus, o aposentado recrutado via cartão postal, tinha baixa produtividade. Estressado, ele se demitiu 11 dias depois de começar.

Keanu Bushell, o jovem que dividia o carro com o pai, não confiava nos apps da Amazon para calcular seu tempo de trabalho corretamente, e pediu demissão. Com a limitação de horário do transporte coletivo, alguns dos contratados que viviam em partes distantes da cidade estavam enfrentando problemas para chegar ao trabalho, por terem de se levantar às 2h ou 3h, encarar odisseias de até três horas de duração para chegar ao armazém, e em seguida fazer turnos de trabalho muitas vezes próximos das 12 horas de duração.

Ainda outras pessoas representavam problemas mais sérios –roubavam mercadorias, jogavam games em seus celulares por longos períodos, no banheiro, ou abusavam das regras de licença.

Em 2019, a Amazon contratou mais de 770 mil trabalhadores horistas, embora a força total de trabalho da empresa, incluindo o pessoal de colarinho branco, tenha chegado a apenas 150 mil pessoas naquele ano. Isso significa que o equivalente a toda a força de trabalho da empresa no começo deste ano –mais ou menos 650 mil pessoas –foi demitida ao longo de 2019.A companhia se recusou a oferecer números referentes a 2020.

Para algumas pessoas, o relacionamento de curto prazo funcionou. Stephen Ojo, dançarino, de Brooklyn, começou no JFK8 no segundo trimestre. “Era uma boa maneira de ganhar algum dinheiro a mais, não conflitava com meus horários, e se enquadrava à minha vida naquele momento”, ele disse.

Mas ele também sabia que a Amazon não era seu futuro. Ojo foi um dos astros no elenco de dançarinos de “Black is King”, filme de Beyoncé, que começou a ser exibido em streaming no terceiro trimestre. E àquela altura ele já tinha saído da Amazon.

Outras pessoas precisavam do emprego. Dias depois que Michelus se demitiu, ele estava de volta ao ponto de ônibus. “Preciso aprender a lidar com a pressão”, ele disse.; A Amazon o aceitou de volta, e ele logo estava apanhando produtos nas prateleiras de novo.

Diante desse giro elevado de pessoal, muitos dos atuais e antigos executivos da Amazon temem que simplesmente não vá haver trabalhadores suficientes. Em cidades mais distantes, nas quais a Amazon baseou suas primeiras operações de distribuição nos Estados Unidos, a empresa logo esgotou o pool local de mão de obra, e começou a trazer trabalhadores de outros locais.

“É necessário que seis ou sete pessoas se candidatem para termos uma pessoa que apareça e faça o trabalho”, explicou Stroup.

Se a Amazon tiver um giro de mão de obra equivalente ao total de sua força de trabalho uma ou duas vezes por ano, ele disse, “teríamos de ter oito milhões, nove milhões, 10 milhões de pessoas se candidatando a cada ano”. Isso equivale a 5% da força de trabalho americana.

Nantel respondeu a múltiplas perguntas sobre o giro de pessoal na Amazon afirmando que “o atrito de pessoal é apenas um dado e, quando é usado isoladamente, exclui fatores contextuais importantes”.
Muitos dos novatos se viram em situações impraticáveis, por conta de escalas ou da jornada até o local de trabalho. “Às vezes a pessoa simplesmente não se encaixa bem”, disse Weishalla, a gerente do JFK8.

Stroup disse que “sempre será fã da Amazon”. Mas no tempo que ele passou trabalhando com recursos humanos na empresa, se decepcionou por “não ouvir qualquer ideia de longo prazo” sobre o giro acelerado de trabalhadores na empresa. Ele comparou a situação a continuar usando combustível fóssil apesar da mudança no clima.

“Continuamos a usá-los”, ele disse, “mesmo que saibamos que estamos lentamente nos cozinhando”.
Stroup deixou a Amazon. Depois de quase nove anos na companhia, ele passou a trabalhar na Shopify, outra companhia de varejo eletrônico, onde espera que seus insights sejam mais aproveitados.

Bilhões, bonificações e bananas

Ann Castillo estava diante de seu edifício de apartamentos em Nova Jersey, no começo de dezembro, a ponto de assumir a maior responsabilidade de sua visita. Ela havia decidido trazer o marido, que continuava internado, para casa, e cuidar dele sozinha. Mesmo com o seguro da Amazon para trabalhadores incapacitados permanentemente, ela talvez tivesse de se mudar para um complexo de habitação popular.

“Se ele se for, pelo menos estará conosco no fim”, ela disse.

Ann Castillo não viu sinal algum de que qualquer pessoa no JFK8 estivesse informada sobre o que estava acontecendo. “Eles nunca telefonaram, nunca procuraram se informar sobre como ele está”, ela disse.

Um momento mais tarde, uma procissão de veículos de emergência ocupou o pequeno estacionamento do edifício, com as luzes piscando em saudação. Os motoristas, funcionários municipais que não conheciam Ann Castillo, lhe disseram que, se precisasse de ajuda, podia telefonar a qualquer hora. Quando a ambulância chegou, todos os visitantes precisaram ajudar para levar Alberto Castillo ao apartamento.

O empregador de Ann Castillo, uma organização sem fins lucrativos que oferece assistência domiciliar de saúde, ofereceu muita ajuda, organizando o dobro do número habitual de enfermeiras, doando horas adicionais de seu pessoal e criando um fundo de emergência.

Quase todas as demais pessoas que fazem parte da vida da família contribuíram, e até mesmo alguns desconhecidos, disse Ann Castillo: professores, outros pais, colegas de time e treinadores de futebol, membros da igreja, e velhos amigos das Filipinas enviaram mantimentos, refeições, vales-presente e cheques.

Meses mais tarde, depois de consultas do The New York Times, um representante do departamento de recursos humanos da Amazon e um membro da equipe do JFK8 procuraram Ann Castillo. Um porta-voz expressou pesar por Ann Castillo não ter se sentido devidamente apoiada. Agboka, o líder de recursos humanos do JFK8, divulgou uma declaração na qual diz que “ela, seu marido e seus seres queridos estão em nossos pensamentos e em nossas orações”.

No armazém, Weishalla, agora promovida a gerente geral, acompanhava todos os indicadores concebíveis sobre a demanda, os estoques e o comparecimento de pessoal do JFK8. Mas ela disse que não acompanhava dados sobre o número de trabalhadores do armazém que foram infectados. “Não é algo que eu acompanhe diariamente – é difícil quantificar”, ela disse em entrevista.

“Ninguém está me enviando esse número” (Nantel disse que Weishalla tinha acesso ao número de casos por meio de um portal online e que estava bem informada sobre o número de trabalhadores do JFK8 contagiados).

O período de maior demanda na temporada de festas é conhecido como O Pico, e ele chegou exatamente no momento em que a segunda onda da Covid-19 varreu a região. O efeito verdadeiro do coronavírus sobre os trabalhadores Canto Dobrado: 1do JFK8 é difícil de determinar. A Amazon já estava oferecendo exames gratuitos de coronavírus no local de trabalho, em outubro. Mas não revelou à sua força de trabalho mais ampla os nomes dos infectados, por motivos de privacidade, e não ofereceu informações sobre suas posições e turnos de trabalho.

Como resultado, muitos trabalhadores descobriram informalmente sobre os colegas contagiados, o que alimentou boatos. Quando Derrick Palmer percebeu que a empresa não havia feito uma notificação formal sobre uma colega de trabalho que lhe contou ter sido contagiada, ele confrontou os executivos, que não conseguiram explicar o motivo (Nantel disse que foi um erro, acrescentando que o armazém depois disso identificou apenas mais um caso de notificação não realizada).

Para Palmer, esse lapso, e a falta de clareza sobre o número de casos de Covid, sublinhavam a convicção que ele tinha, desde março, de que a Amazon não estava sendo transparente com relação à ameaça do vírus.

Por meses, a Amazon havia afirmado publicamente que estava declarando os casos confirmados no JFK8 e em outros locais às autoridades de saúde, como empregadores são requeridos a fazer. Mas os registros do departamento de saúde de Nova York não mostram informações anteriores a novembro.
Nantel declarou que a Amazon vinha reportando casos regularmente desde março de 2020, e atribuiu a falta de registros ao excesso de trabalho do departamento municipal de saúde no começo da pandemia.

Um porta-voz do departamento, Patrick Gallahue, reconheceu que o sistema de notificação do departamento só foi estabelecido em julho, mas disse que não havia motivos para que casos reportados depois dessa data não tivessem sido documentados.

De acordo com dados da prefeitura e registros revelados pela Amazon em um processo judicial, houve pelo menos 700 casos confirmados no armazém entre março de 2020 e março de 2021. Dados a disponibilidade limitada de exames na área metropolitana de Nova York no segundo trimestre do ano passado, o total pode facilmente ter sido subestimado.

Com a aproximação do Natal, o JFK8 estava batendo recordes de volume, entre as operações da Amazon. “Grandes congratulações a toda a equipe por atingirmos mais de um milhão de unidades em 24 horas, para lançar O Pico de 2020!”, escreveu Weishalla em uma mensagem no LinkedIn.

Os trabalhadores “realizaram, o irrealizável”, escreveu outro gestor. Logo Weishalla recebeu uma nova promoção, e se tornou supervisora de diversos armazéns na região centro-oeste.

O JFK8 é só uma pequena parte do sucesso da Amazon. De outubro a dezembro, a Amazon realizou US$ 125,6 bilhões em vendas. No ano da pandemia, 2020, a companhia investiu US$ 44 bilhões arrendando aviões, construindo data centers e abrindo novas armazéns –e ainda assim registrou mais de US$ 21 bilhões em lucros.

Em todo o mundo, a empresa gastou US$ 2,5 bilhões em pagamentos adicionais relacionados à pandemia e bonificações, no segundo trimestre e no final do ano; na temporada de festas, o pessoal dos armazéns recebeu uma bonificação de US$300 por pessoa, e de US$ 150 para empregados de tempo parcial.

Em grupos de Facebook, trabalhadores de armazéns em todo o país trocaram fotos das mensagens enviadas por seus superiores para motivá-los e recompensá-los. Alguns ganharam fritadeiras a ar ou Fire TV Sticks como brindes.

No Connecticut, um gestor enviou uma mensagem às estações de trabalho de seus subordinados informando que, se eles chegassem a um ritmo de trabalho de 400 itens por hora, cerca de um a cada 10 segundos, “VOCÊS VÃO GANHAR DOCES!”.

Em outro armazém, um cartaz informava: “O petisco de hoje: uma banana * Disponível das 9h às 17h*”. No Ohio, trabalhadores receberam cartões de raspadinha com os quais tinham a possibilidade de receber um prêmio.

Um empregado raspou dois deles, e recebeu a mesma mensagem: “Tente de novo, por favor”.

Em busca de sinais de mudança

No começo do ano, Palmer e Smalls viajaram de carro a Bessemer, uma jornada de 16 horas, para testemunhar o esforço mais sério que trabalhadores já empreenderam para desafiar a situação em que vivem na Amazon. Os trabalhadores que estavam batalhando pela primeira sindicalização de uma unidade da Amazon enquadraram o tratamento que recebem como uma questão de justiça racial.

Acima de tudo, eles objetavam ao sistema de TOT e a outras formas de monitoração de produtividade, e definiram sua campanha como uma busca por respeito no local do trabalho.

A Amazon entrou em guerra contra a proposta, alertando –por meio de cartazes, mensagens de texto e reuniões compulsórias –que as negociações de sindicalização colocavam em risco os bons empregos e benefícios que os trabalhadores já tinham. No fim, o resultado da eleição foi esmagador: a proposta de sindicalização foi derrotada por margem de mais de dois votos para um.

Pessoas se cumprimentam; há uma fila de pessoas ao fundo
Em campanha trabalhista, Smalls e Palmer fazem churrasco no estacionamento JFK8 - Dave Sanders - 15.jun.21/The New York Times

De volta a Staten Island, Palmer e Smalls iniciaram uma nova missão, de qualquer forma. As disputas judiciais quanto à situação de segurança do JFK8 durante a pandemia e sobre o tratamento da Amazon aos protestos de março continuam, e eles começaram a recolher centenas de assinaturas em um esforço para sindicalizar o JFK8.

A Amazon seguiu o mesmo plano de jogo que adotou em Bessemer e contra-atacou, colocando cartazes desencorajadores nos banheiros e na entrada do edifício. Palmer, que continuava a empacotar caixas enquanto a empresa combatia seus esforços, sentia cada vez mais pressão contra ele.

Mas ao mesmo tempo, a derrota no Alabama levou a um momento inesperado de reconhecimento pela empresa. As queixas ouvidas em Bessemer foram ecoadas por trabalhadores em múltiplos armazéns da Amazon. Um novo presidente, simpático ao sindicalismo, estava na Casa Branca.

O vírus intensificou questões fundamentais sobre o relacionamento entre a Amazon e seus empregados, e a abertura da economia ofereceu outras opções aos trabalhadores –um possível problema para uma empresa cujas ambições de crescimento são maiores que nunca.

Nos meses finais de Jeff Bezos como presidente-executivo, o modelo de alto giro de mão de obra que ele criou parece mais arriscado, e as preocupações sobre o tratamento da Amazon aos trabalhadores que propeliram sua ascensão podem macular seu legado.

Durante a pandemia, a riqueza pessoal de Bezos disparou de US$ 110 bilhões para mais de US$ 190 bilhões. Ele também está construindo um novo iate de alto luxo com custo de mais de US$ 500 milhões, de acordo com um novo livro, “Amazon Unbound”, e está preparando seu primeiro voo espacial, depois de investir bilhões na Blue Origin, sua companhia de foguetes.

O compromisso assumido por Bezos em abril, de se tornar “o melhor empregador do planeta”, despertou questões –sobre o que ele queria dizer, exatamente, e sobre o que ele e seus sucessores estariam dispostos a fazer.

A Amazon não demorou a anunciar novos aumentos de salários. O salário inicial do JFK8 subiu em 50 centavos de dólar por hora, para US$ 18,25. A companhia anunciou iniciativas de segurança e planos de diversidade, entre as quais a meta de “reter empregados em ritmo estatisticamente semelhante em todas as categorias demográficas” –uma admissão implícita de que existem diferenças de números entre as raças.

Os sucessores de Weishalla em Staten Island vêm realizando “revisões de talentos” semanais, para garantir que os trabalhadores negros e latinos, entre outros, encontrem oportunidades adequadas de progresso.

Em entrevista, Agboka, o líder de recurso humanos do JFK8, reconheceu que a empresa dependia demais da tecnologia para administrar seu pessoal.

“Estamos reconhecendo que, em muitas ocasiões nas quais acreditávamos que o autoatendimento bastaria, ele não era e não poderia ser a única solução”, ele disse. “Todas as experiências importam. E quando as experiências estão erradas, temos de encontrar uma forma de corrigi-las”.

Mas não estava claro até que ponto a empresa estava disposta a reconsiderar seus sistemas sacrossantos de produtividade, automação e alto giro de pessoal, que a conduziram ao topo.

“Eles vão tratar da questão de uma força de trabalho descartável?”, perguntou Cavagnaro, o trabalhador demitido que estava retornando ao JFK8. “Haverá mudanças?”

Depois de consultas repetidas do The New York Times sobre as normas de TOT e Dayana Santos, a trabalhadora do JFK8 que contestou sua demissão, a Amazon este mês anunciou uma mudança imediata: trabalhadores não seriam mais demitidos por um dia ruim. E quem tivesse passado por essa experiência estaria elegível para recontratação. A companhia afirmou que já estava reconsiderando há meses a norma em questão.

Em Seattle, Paul Stroup, cujas equipes estudaram a força de trabalho horista da Amazon, acompanhou os acontecimentos mais recentes e leu a carta de Bezos. Ele se vê enredado entre o ceticismo e a esperança de que a companhia por fim empregue o que ele vê como suas melhores qualidades –o pendor pela inovação e por encarar problemas ambíguos e complicados– a serviço de seus trabalhadores.

“Seria maravilhoso para o emprego horista em todo os setores”, ele escreveu em uma nota no LinkedIn. “Os comentários de Jeff me levam a pensar que as coisas podem mudar, mas talvez seja tarde demais para reverter os danos que já foram causados”.

“Agora vamos ver se alguém é capaz de inovar o suficiente para resolver essa situação”, afirmou.

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

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