Descrição de chapéu Folha Informações

Vídeo engana ao usar súmula do STF para dizer que Reforma Tributária seria inconstitucional

Conteúdo desinforma sobre PEC aprovada na Câmara

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Diferentemente do que afirma o responsável pela publicação de um vídeo que viralizou nas redes sociais, a súmula 69 do STF (Supremo Tribunal Federal), segundo a qual "a Constituição estadual não pode estabelecer limite para o aumento de tributos municipais", não atesta a inconstitucionalidade da PEC (Proposta de Emenda Constitucional) da Reforma Tributária 45/2019.

Especialistas consultados pelo Projeto Comprova afirmam que a súmula discorre sobre a relação entre as leis estaduais e municipais, e que a Constituição Federal tem competência para legislar sobre o regime tributário de estados e municípios.

O Ministério da Fazenda, que analisou a proposta por meio da Sert (Secretaria Extraordinária de Reforma Tributária), da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e da Receita Federal do Brasil, também considera a reforma constitucional. A Sert contou com a colaboração do assessor para fins tributários da AGU.

A tramitação da PEC na Câmara dos Deputados foi acompanhada pelos ministérios de Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços; Planejamento e Orçamento; Gestão; Saúde; Educação; Desenvolvimento Social; e Relações Institucionais.

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, durante coletiva após reunião para tratar da tramitação da reforma tributária no Senado. Os dois vestem costumes. Haddad está de paletó cinza, camisa branca e gravata escura. Pacheco está de paletó preto. Ambos se encaram de perto.
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, durante coletiva após reunião para tratar da tramitação da Reforma Tributária no Senado - Marcelo Camargo/Agência Brasil

Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.

Alcance

O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. No Instagram, até o dia 14 de julho, a publicação somava 34,4 mil curtidas, enquanto no Telegram o número de visualizações era de 4,8 mil.

Como verificamos

O primeiro passo foi investigar o que diz a súmula 69 do STF. Para isso, consultamos as jurisprudências no site do órgão. Em seguida, reunimos informações a respeito da reforma tributária aprovada pela Câmara dos Deputados no início de julho junto à imprensa profissional.

A equipe também conversou com dois especialistas: Paulo Caliendo, doutor em Direito na área de Concentração de Direito Tributário e professor da Escola de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS); e Rodrigo Kanayama, doutor em Direito do Estado e professor adjunto do Departamento de Direito Público da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Também procurou o Ministério da Fazenda e a Advocacia-Geral da União (AGU). Por fim, entrou em contato com o responsável pela publicação do conteúdo.

Competência

O autor do vídeo investigado afirma que a Reforma Tributária seria inconstitucional porque "se nem o estado dentro do qual está o município pode interferir no imposto que é da competência do município, por que é que a Constituição Federal pode extinguir e criar uma outra alíquota de um imposto que ela mesma deu a competência para o município?".

No entanto, especialistas consultados pela reportagem afirmam que a Constituição Federal pode estabelecer regimes tributários, alterar os tributos, ou mesmo delegar para a legislação infraconstitucional (leis ordinárias ou complementares) competência para definir assuntos relacionados às alíquotas.

"Ele [autor do vídeo] transportou uma discussão que ocorre em relação aos estados e municípios para o âmbito da Constituição Federal. Isso é completamente errado. Dizer que a Constituição não pode estabelecer regimes tributários é um argumento equivocado. Tem várias leis federais, que estão abaixo da Constituição, que definem regimes tributários que são aplicados aos estados ou municípios. Por exemplo, o ISS é limitado e regulado pela Lei Complementar 116. E isso nunca foi declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal", diz Rodrigo Kanayama.

Em relação à súmula 69, Kanayama explica que o entendimento do STF é de que a constituição estadual não pode interferir na competência municipal tributária. Porém, ao contrário do que diz o autor do vídeo, não é isso que a reforma tributária propõe.

"O STF entende com relação à constituição estadual que não pode entrar na competência municipal, porque a constituição estadual não tem a mesma força que a Constituição Federal, ou seja, a constituição estadual está abaixo da Federal, porque ela não é constituição no sentido estrito. A Constituição Federal pode criar esses regimes [tributários], não há nenhuma inconstitucionalidade nisso."

Para Paulo Caliendo, a reforma é constitucional uma vez que é possível, respeitando o processo legislativo, alterar a Constituição. "[A PEC] está alterando as competências e dizendo que a competência [de administrar os tributos] é conjunta de estados e municípios. É plenamente viável."

O professor da PUCRS destaca que, para ser inconstitucional, a reforma tributária precisaria infringir o inciso I do parágrafo 4º do artigo 60 da Constituição, que diz: "Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado".

"Então, nós teríamos que afirmar que a reforma tributária ofende a forma federativa ou a extingue, porque retira a autonomia financeira dos municípios. Esse é o ponto de discórdia, ele [autor do conteúdo] acha que sim, mas nós achamos que não. E, pelo contrário, acreditamos que se amplia, inclusive, esse ponto [a autonomia financeira dos municípios]. O que é enganoso é afirmar que isso é algo claro e inquestionável."

Constitucional

De acordo com o Ministério da Fazenda, as competências tributárias estaduais e municipais não estão sendo esvaziadas, mas sim reforçadas.

"Existem diversas discussões atualmente no Judiciário que envolvem a competência de estados e municípios para tributar, que dizem respeito à base material prevista na Constituição para cada um deles, ou seja, mercadoria para estados e serviço para municípios. Com a reforma, essas discussões se encerram, porque a proposta trouxe para dentro, de forma expressa, essas materialidades", afirmou à reportagem, em nota.

O órgão também disse que a súmula 69 do STF trata de uma situação "completamente diferente" da proposta pela reforma tributária. "Primeiro porque, como visto, a PEC não está limitando a competência dos estados e municípios, que terão base reforçada e continuam podendo estabelecer suas próprias alíquotas. Segundo porque não se pode fazer um espelhamento da Constituição Federal com a Constituição Estadual. A Constituição Federal não é da União, ente federativo, mas da República Federativa do Brasil, o que abrange a União, os estados e os municípios de maneira conjunta."

Reforma tributária

A PEC 45/2019 que institui a reforma tributária foi aprovada pela Câmara dos Deputados em 7 de julho deste ano. O texto tramita no Senado, onde precisa ser aprovado em dois turnos por, pelo menos, 49 senadores para ser promulgado.

A principal mudança prevista pela PEC é a unificação de cinco tributos, três deles federais, um estadual e um municipal. São eles: PIS (Programa de Integração Social), Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), ICMS (Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços), e ISS (Imposto sobre Serviços), respectivamente.

Esses cinco tributos serão substituídos pelo IVA (Imposto sobre Valor Agregado), que será dividido em dois: um federal e outro dos estados e municípios.

  • IVA federal se chamará CBS (Contribuição Sobre Bens e Serviços) e substituirá IPI, PIS e Cofins;
  • IVA dos estados e municípios se chamará IBS (Imposto Sobre Bens e Serviços) e substituirá ICMS e ISS.

Isso significa que, no modelo proposto pela reforma tributária, a União define a alíquota da CBS, enquanto estados e municípios ficam responsáveis pelo IBS. Em relação aos tributos locais, os governos estaduais e as prefeituras terão de concordar com uma alíquota única, o que deve colocar fim à chamada guerra fiscal.

O texto também prevê uma mesma alíquota para os produtos, com algumas exceções, como itens da cesta básica (que ficarão isentos) e produtos nocivos à saúde e ao meio ambiente, como cigarros e álcool (que pagarão mais). A nova alíquota será definida por meio de um Projeto de Lei (PL).

A PEC ainda contempla a criação de alguns fundos, cujo objetivo é compensar os estados por eventuais perdas de arrecadação, como o FDR (Fundo de Desenvolvimento Regional), orçado em R$ 40 bilhões a partir de 2033, e o Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais, que garantirá benefícios fiscais já concedidos pelos estados até 2032.

Haverá uma fase de transição para a implementação da reforma, que deve durar de 2026 a 2032, conforme noticiou a BBC. Em 2026, haverá cobrança de 0,9% do CBS e 0,1% do IBS —essas alíquotas serão usadas como teste inicial. No ano seguinte, serão extintos PIS e Cofins, e entrará em vigor o IVA. A partir de 2029, haverá redução escalonada dos tributos estaduais e municipais (ICMS e ISS), com elevação gradual do IVA estadual e municipal. Em 2033, os impostos antigos serão extintos.

O que diz o responsável pela publicação

O autor foi procurado por WhatsApp, Instagram e pelo e-mail de um instituto do qual seria diretor-fundador. O instituto solicitou mais informações sobre a checagem e o projeto, mas, após retorno do Comprova, não houve resposta.

O que podemos aprender com esta verificação

Ao se deparar com informações muito técnicas e restritas, procure entender qual o contexto da documentação apresentada e qual a opinião de outros especialistas sobre o assunto. Na situação específica, que se refere à constitucionalidade de um projeto de lei, verifique como funciona a tramitação desses processos, cuja legalidade deve ser analisada.

Procure também informações na imprensa profissional, pois a legalidade de uma PEC seria assunto entre especialistas e parlamentares.

Por que investigamos

O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984. Sugestões e dúvidas relacionadas a conteúdos duvidosos também podem ser enviadas para a Folha pelo WhatsApp 11 99486-0293.

Outras checagens sobre o tema

A PEC que institui uma reforma tributária já foi alvo de outras peças de desinformação desde o início da sua tramitação no Congresso Nacional. O Estadão Verifica apurou ser falso que o texto acaba com o direito à herança no Brasil.

O Aos Fatos checou um vídeo com diversas desinformações sobre o projeto de lei, em que era dito, entre outras coisas, que a União passaria a receber todos os impostos, incluindo os estaduais e municipais. Também esclareceu que a proposta não muda o Imposto de Renda ou estabelece critérios de gênero e raça.

Anteriormente, o Comprova mostrou que Lula não assinou decreto para colocar fim à propriedade privada e que vídeo engana ao afirmar que Justiça autorizou invasões de domicílio no Brasil.

A investigação desse conteúdo foi feita por O Popular, Plural e Grupo Sinos e publicada em 14 de julho pelo Projeto Comprova, coalizão que reúne 41 veículos na checagem de conteúdos virais. Foi verificada por Folha, UOL e Estadão.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.