Prática de barriga de aluguel sobrevive na Ucrânia, e clientes começam a voltar

Quando Rússia invadiu país, temor era de que negócio falisse; agora, ele serve de segurança financeira para muitas famílias

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Maria Varenikova Andrew E. Kramer
Kiev | The New York Times

Depois de passar meses escondida num subsolo para fugir dos bombardeios, Viktoria, ucraniana que faz barriga de aluguel, conseguiu escapar com a família —e o bebê que estava gestando para clientes estrangeiros— para longe dos combates.

Ela conta que conseguiu fugir porque a agência para a qual trabalhava lhe ofereceu ajuda financeira e um apartamento na capital, Kiev, para garantir sua segurança física e a do bebê.

Em um primeiro momento ela relutou em abandonar sua cidade, Kharkiv, mesmo quando o local estava sofrendo ataques de artilharia, mas agora se alegra por estar em relativa segurança. "Não teria saído de Kharkiv se a clínica não tivesse me convencido."

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Médicos e enfermeiras entregam bebê para mãe de aluguel, em hospital de Kiev, capital da Ucrânia - Lyndsey Addario - 19.ago.22/The New York Times

Viktoria é uma entre centenas de mulheres que vêm completando gestações nos últimos sete meses, escondendo-se cada vez que tocam as sirenes para avisar de um ataque aéreo iminente e fugindo de cidades destruídas para dar à luz e entregar os filhos a pais que vivem no exterior.

Antes da invasão russa, a Ucrânia era importante fornecedora de barrigas de aluguel, sendo um dos poucos países que permite essa prática para clientes de outros países. Após uma pausa, as agências estão retomando operações, reativando uma atividade da qual muitas pessoas sem filhos dependem —mas que alguns críticos consideram uma exploração e que já encarava complicações éticas e logísticas mesmo em tempos de paz.

As chuvas de mísseis russos que atingiram cidades da Ucrânia na semana passada evidenciaram mais ainda o ambiente perigoso em que o setor opera. Doze mulheres disseram que o apoio financeiro extra que recebem ajudou a garantir a sobrevivência de suas famílias, permitindo que deixassem áreas cercadas ou que eram alvos frequentes de bombardeios.

Em alguns casos, porém, a indústria das barrigas de aluguel expôs as gestantes a novos perigos —por exemplo, passar por postos de controle russos para sair de territórios ocupados.

Como outras mulheres que fazem barriga de aluguel em Kiev, Viktoria concordou em falar citando seu primeiro nome apenas.

Também as agências estão se adaptando à guerra. Além de ajudar as grávidas e suas famílias a mudar para cidades com mais segurança, algumas estão tendo que encontrar meios de cuidar de bebês cujos pais biológicos têm dificuldade em superar obstáculos da guerra e da pandemia para chegar à Ucrânia. Svitlana Burkovska, dona da pequena agência Ferta, levou bebês para a própria casa por meses.

Os receios de que a atividade seria inviabilizada –especialmente quando a Rússia tentou, mas não conseguiu, tomar Kiev nas semanas iniciais da guerra— se mostraram exagerados. A vida na Ucrânia ocidental e central se estabilizou, em grande medida, a despeito dos combates nas regiões do sul e leste.

"Não perdemos um único bebê", diz Igor Petchenoga, diretor médico da BioTexCom, maior agência do país. "Conseguimos tirar todas as nossas mães de regiões sob ocupação e bombardeio."

Mas, durante meses, mulheres que pensaram que ganhariam dinheiro gestando vidas se viram obrigadas a primeiro proteger a sua. Fora da capital, dormiram em carros no acostamento de estradas, enfrentaram interrogatórios de soldados russos e viveram em abrigos subterrâneos.

No primeiro mês da guerra, 19 bebês de uma agência ficaram ilhados num berçário montado num subsolo em Kiev. De acordo com Albert Totchilovski, diretor da BioTexCom, o conflito não diminuiu a demanda por barrigas de aluguel. "Os casais têm pressa. Explicar que estamos em guerra não funciona."

Antes de a Rússia lançar sua invasão, a agência contava com aproximadamente 50 barrigas de aluguel por mês. Desde o início de junho, deu início a pelo menos 15 novas gestações.

Com o dinheiro ganho na atividade, segundo Totchilovski, as mulheres vêm sendo tiradas de cidades da linha de frente e de regiões ocupadas pela Rússia e levadas para lugares mais seguros, como Kiev.

Muitas falam da gestação de aluguel como seu trabalho. Segundo médicos, esse termo evita que formem vínculos emocionais com os bebês que gestam.

Numa manhã recente em Kiev, 20 mulheres faziam fila na recepção da empresa para fazer um check-up ou preparar-se para a gestação. Todas tinham histórias a contar sobre a guerra, de perigos evitados por pouco a perdas dolorosas. Todas, incluindo Viktoria —que gesta um bebê para clientes chineses—, dizem que são motivadas pelo dinheiro, o amor pelos próprios filhos e o desejo de garantir a segurança deles.

A barriga de aluguel é proibida em muitos países por uma série de razões, incluindo a crítica de que deixa mulheres pobres vulneráveis a ser exploradas. Os proponentes da gestação, na qual mulheres passam por fertilização in vitro, afirmam que a prática tem importância inestimável para casais que não conseguem ter filhos e oferece às mulheres valores que podem mudar sua vida.

"Faço isso pelo dinheiro, mas por que não?", pergunta Olga, 28, que acabou de iniciar uma nova gravidez de aluguel. "Tenho boa saúde e posso ajudar pessoas que têm dinheiro e querem filhos."

Olga, mãe de aluguel, aguarda checape médico em clínica de Kiev, capital da Ucrânia
Olga, mãe de aluguel, aguarda check-up em clínica de Kiev, capital da Ucrânia - Lyndsey Addario - 12.ago.22/The New York Times

Antes da guerra, a atividade prosperava na Ucrânia, onde mulheres geralmente recebem em torno de US$ 20 mil por bebê que gestam. O conflito aumentou a importância de contar com segurança financeira.

Uma delas, de 30 anos, que pediu anonimato porque saíra de Melitopol e temia represálias, disse que conseguiu tirar a família da zona de perigo graças a esse trabalho.

Devido ao tempo de espera de nove meses, as agências não podem tomar decisões imediatas sobre continuar ou cessar suas operações depois de fatos novos como a chuva de mísseis da semana passada. E as mães gestantes não podem ser transferidas para jurisdições fora da Ucrânia que não reconhecem o direito de custódia de pais biológicos de bebês nascidos via barriga de aluguel.

A guerra criou muitos dilemas novos para as mulheres, os clientes e os médicos. Viktoria e sua família enfrentam um deles: o pagamento que ela vai receber os ajudará a sobreviver, mas não está claro para onde eles devem ir depois que ela se recuperar da cesárea. A família permanece por enquanto no apartamento alugado pela clínica em Kiev.

Para muitas, a questão que preocupa é onde dar à luz. Os perigos incluem não apenas os combates, mas como as autoridades instaladas pelo governo de ocupação russo tratarão os bebês nascidos de barriga de aluguel. Nadia vivia num vilarejo sob domínio de Moscou e decidiu abandonar a região e buscar território sob controle ucraniano para dar à luz, para evitar o risco de os pais não conseguirem ter a custódia do bebê e de ela perder os honorários.

Ela passou dois dias com o marido e a filha de 11 anos dormindo num carro à beira de uma estrada esperando para poder cruzar a linha de frente.

Quando a guerra começou, Svitlana Burkovska estava cuidando de dois bebês que não puderam ser buscados por seus pais. Ela foi obrigada a se abrigar por algum tempo no subsolo com os recém-nascidos, seu marido e os próprios filhos.

Quando mais bebês nasceram nos primeiros meses de conflito, ela acabou com sete recém-nascidos sob seus cuidados —cujos pais não podiam vir buscá-los imediatamente. Os filhos de Burkovska ajudaram a cuidar de todos, e até agosto a maioria já estava com a família.

Um cliente chinês da BioTexCom, Zhang Zong, foi uma das pessoas que tiveram dificuldades em chegar a Kiev. Ele conta que a espera foi difícil e que o primeiro encontro com o filho de seis meses foi ao mesmo tempo emocionante e estranho. "Fiquei emocionadíssimo quando me deixaram abraçá-lo. Quando ele crescer, vou poder lhe contar a história."

Tradução de Clara Allain

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