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David Wiswell

Três passos para salvar a democracia para sempre (talvez)

Temos que amar esse sistema, mesmo que elejamos um idiota

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David Wiswell

Escritor e comediante americano

A fragilidade da democracia é aterradora. Quando a conjuntura fica difícil mundo afora, parece que as pessoas confrontadas com dificuldades procuram respostas em lugares cada vez mais extremos e assustadores, expondo a democracia a risco ainda maior e levando muitos de nós ao sentimento de desesperança e impotência.

Nós, americanos, temos uma opinião muito boa de nós mesmos. Sei que somos irritantes, sinto muito. Quando não estamos aborrecendo vocês, nos ocupamos aborrecendo uns aos outros. Nossa arrogância é tão grande quanto nossa legendária barriga. Provavelmente porque tanto nossas ideias quanto nosso estômago estejam cheios de xarope de milho rico em frutose.

Urna em cerimônia de lacração no TRE-DF - Gabriela Biló - 21.set.22/Folhapress

Pensamos que somos líderes no mundo em matéria de democracia e vivemos numa bolha tão centrada em si mesma que agora pensamos que também nós inventamos a morte da democracia. Isso através de um monstro da desinformação, mais saturado de mentiras, má-fé e xarope de milho que qualquer outra figura de nossa paisagem política: Donald Trump.

Lamentavelmente, parece que os brasileiros conhecem esses problemas bem demais. Desinformação e alegações falsas sobre fraude eleitoral feitas numa tentativa de permanecer no poder não são problemas exclusivos dos gringos. Sei, por conversar com amigos brasileiros, que Jair Bolsonaro é um risco enorme nesse sentido. E, sendo o Brasil um país que já viveu situações extremas, só posso imaginar que sentimentos uma figura como essa desperta em vocês.

Espero que neste texto possamos dar umas risadas juntos sobre nossos temores e, quem sabe, chegar a algumas melhores maneiras de encarar nossa situação aparentemente trágica. Este é meu "sistema em três passos para salvar a democracia para sempre (talvez)".

Primeiro passo: Identificar o inimigo

No caso dos EUA, Trump é de alguma maneira todos os estereótipos negativos reunidos em uma pessoa: ele é vulgar, abusado, mentiroso, intimidador, trapaceiro, hipócrita, narcisista, obcecado por fast food, abandona seguidores e parceiros, sonega impostos, cheira mal (provavelmente) e, de alguma maneira, apesar de ter pouca instrução, é incrivelmente rico, não obstante seus fracassos sucessivos.

Pessoalmente, não me importo se meu país é comandado por um idiota. Acredite, já passei por vários. George W. Bush disse certa vez: "Sei que o ser humano e os peixes podem conviver em paz". Não me incomodo com políticos idiotas porque acredito na democracia.

Se somos estúpidos o bastante para eleger um imbecil, então talvez tenhamos a pessoa certa para o cargo. A democracia terá cumprido fielmente seu dever de nos representar com precisão. O que me preocupa é a democracia ser sequestrada por mentiras deslavadas.

Trump, o eterno mau perdedor, tentou tudo o que pôde para permanecer no poder depois de perder a última eleição para Joe Biden. Seria de se imaginar que depois de perder tanta coisa na vida —seis de suas empresas foram à falência, ele passou por dois divórcios e pela derrota em 2020—, ele já estaria acostumado a perder. Trump já perdeu tudo menos peso.

Segundo Passo: Identificar o que o inimigo está fazendo

Depois de perder a eleição, Trump incentivou seguidores a sair às ruas e atacar o Capitólio para impedir a certificação de Biden. O tumulto explodiu em violência, quando muitos de seus seguidores invadiram o prédio e literalmente saíram caçando líderes políticos. Resultado: mortes, anarquia e incerteza política. Tudo isso para impedir a transferência pacífica do poder. Tudo para barrar a democracia.

Alertado, Trump se recusou a dizer qualquer coisa para freá-los. Quando o caos já havia causado depredação enorme e membros de seu gabinete ameaçavam afastá-lo do poder, lançando mão de uma cláusula da Constituição, já que ele havia evidentemente perdido a lucidez e não tinha condições mentais de liderar, Trump finalmente transmitiu um comunicado pedindo que partissem.

Nele, disse a seus seguidores que eles eram muito especiais e que sua raiva era justificada. Sem manifestar remorso algum por suas ações e recusando-se a condenar a insurreição.

Ele vinha promovendo mentiras infundadas sobre fraude eleitoral para sua base no Twitter e para veículos de mídia de direita; atiçou as chamas e deixou entender que era preciso que as pessoas tomassem medidas fortes. Havia intimidado autoridades estaduais, tentando fazer com que modificassem os resultados da eleição em seu favor. Mesmo agora, nas midterms, há seguidores de Trump sendo incentivados a ir para locais de voto e intimidar eleitores do lado oposto.

A meu ver, aqueles que seguem esses monstros não são nossos inimigos. A meta deles não é destruir nossos países. Eles se sentem esquecidos pelo sistema político, sem voz e deixados para trás. Temem por suas famílias. Estão procurando respostas, e os Trumps do mundo manipulam essa raiva e esse medo e os redirecionam. Então, por meio de desinformação e de mentiras deslavadas contadas para fomentar seus objetivos nefandos, convertem essa raiva e insatisfação em armas.

Terceiro Passo: Salvar a democracia (talvez)!

A democracia só é tão forte quanto a fé que temos nela. Temos que apostar na democracia para conseguirmos uma democracia sólida. Isso nem sempre é confortável. Temos que amar a democracia, mesmo que elejamos um idiota. A democracia não se limita ao exercício de votar –é um diálogo que evolui.

Precisamos iniciar esses diálogos com aqueles de quem discordamos, com empatia plena e abrindo os ouvidos antes da boca. Porque é apenas fazendo que os outros se sintam ouvidos que poderemos então transmitir nossas ideias a eles. Precisamos depositar nossa confiança neles para que eles possam confiar em nós.

Aprendi essa lição com minha esposa. Quando temos uma discussão, falar mais alto raramente me beneficia tanto quanto ficar calado e ouvir o que ela diz. Uma vez que eu a fiz sentir que foi ouvida, ela confia suficientemente em nosso diálogo para me ouvir. Nesse ponto posso convencê-la de como ela está incrivelmente equivocada. E desse modo salvamos a frágil democracia de nossa família.

Em nossa câmara de ecos e nossos mundos digitais modernos, aprendemos a sempre esperar o pior daqueles com quem discordamos, porque os algoritmos caça-cliques nos alimentam com as versões mais hediondas deles e tudo fica parecendo impossível. Mas se nos abrirmos e ouvirmos de coração aberto no mundo real e tentarmos entender o que está por trás das posições das quais discordamos, talvez nossos compatriotas insatisfeitos nos façam o mesmo favor. E talvez possamos devolver ao nosso mundo conturbado a confiança na democracia, ordem e paz. E quem sabe possamos todos vestir a camisa da democracia fora de casa com orgulho. Mesmo que haja um idiota estampado sobre ela.

Tradução de Clara Allain  

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