Um ano depois, Trump continua a dizer que não perdeu. E arrecada dinheiro com isso

Ex-presidente faz campanhas de doação enquanto busca escapar de investigações

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Washington

Em 3 de novembro de 2020, os americanos foram às urnas e elegeram Joe Biden como presidente dos Estados Unidos, com 81 milhões de votos. Donald Trump, que teve 74 milhões, continua contestando o resultado, oficializado há exatamente um ano, em um 7 de novembro. Ele não tem provas de fraude, mas tem conseguido convencer apoiadores a dar dinheiro para ajudá-lo a dizer que não perdeu.

Não há dados precisos sobre a arrecadação, mas suas três principais operações de campanha declararam, no final de julho, terem mais de US$ 100 milhões (R$ 568 milhões, na cotação atual) em caixa. E as acusações infundadas sobre a eleição são uma das formas de arrecadar dinheiro.

"Se não resolvermos a Fraude Eleitoral Presidencial de 2020, republicanos não votarão em 2022 e 2024. Eu preciso que VOCÊ doe ao menos US$ 45 (R$ 255) para reforçar nosso fundo Proteja nossas Eleições", dizia uma mensagem enviada por email.

O ex-presidente dos EUA Donald Trump acena a apoiadores em comício da campanha 'Save America' em Des Moines - Rachel Mummey - 9.out.21/Reuters

As ações de Trump incluem o envio massivo de mensagens de texto, emails e anúncios, cujo tom lembra o de uma campanha eleitoral, apesar de ele não estar disputando nenhum cargo no momento.

Mesmo banido das principais redes sociais, sua campanha consegue publicar anúncios segmentados. Segundo reportagem do jornal The Washington Post, a ação chamada de Save America tem gasto US$ 100 mil (R$ 568 mil) por semana em postagens pagas no Facebook, direcionadas a pessoas que interagiram com outras publicações relacionadas a críticas ao governo Biden e a teorias de fraude eleitoral.

O valor arrecadado não pode ser usado para fins pessoais, mas para pagar funcionários, divulgações, eventos e viagens. O site da campanha diz que as doações financiam a luta por causas como combater o aborto, promover valores cristãos, defender a política de lei e ordem e a realização de, nas palavras deles, "eleições justas, honestas e transparentes, onde cada VOTO LEGAL conta".

Trump começou a fazer denúncias contra o sistema eleitoral americano meses antes da eleição. Depois do pleito, entrou com ações na Justiça para questionar os resultados, mas perdeu. Então, concentrou seus esforços em um ato convocado para o dia 6 de janeiro, que levou milhares de pessoas a Washington.

Na data, os resultados da votação seriam certificados pelo Congresso. E ele queria que Mike Pence, seu vice e presidente da sessão, rejeitasse votos de alguns estados, de modo a lhe dar a vitória de modo ilegal.

Ainda como presidente, Trump fez um comício uma hora antes da sessão, perto da Casa Branca, para pressionar Pence e estimular seus apoiadores a agir. "Se vocês não lutarem para valer, não vão ter mais um país", disse. Ele incitou os manifestantes a marcharem até o Capitólio. Centenas deles foram, invadiram o prédio e tentaram impedir a certificação, que foi adiada e concluída de madrugada.

A invasão deixou cinco mortos. Uma ampla investigação do FBI sobre o caso ainda está em andamento e já prendeu ao menos 650 acusados de participar do ato. O republicano foi alvo de um processo de impeachment, em janeiro, por insuflar a multidão contra o Congresso, e terminou inocentado pelo Senado, que à época tinha maioria republicana.

Apesar disso, outro inquérito, tocado por um comitê do Congresso, vai se aproximando aos poucos dele. Os congressistas buscam provas que detalhem as ações do ex-presidente em relação à invasão, mas o empresário tem conseguido barrar sua liberação. Sua defesa se baseia no princípio de "privilégio executivo", que permite a presidentes guardar sigilo sobre documentos referentes ao seu período no cargo. Assim, a questão ainda pode acabar na Suprema Corte, para decidir se uma investigação do Congresso teria poder para quebrar o direito ao sigilo presidencial.

Na última segunda (1º), o Washington Post publicou novas informações sobre as ações do ex-presidente no dia 6 de janeiro. De acordo com o jornal, ele ficou três horas vendo a invasão pela TV e se recusando a tomar alguma providência, mesmo após apelos de políticos republicanos que estavam sob ameaça da multidão no Congresso.

As investigações, no entanto, têm tido pouco efeito sobre seus eleitores. Uma pesquisa do Pew Research Center, feita em setembro, aponta que 67% dos republicanos desejam que Trump continue na política, e 44% defendem que ele se candidate em 2024.

"A maioria dos apoiadores mais engajados de Trump vê a investigação de 6 de janeiro como evidência de que o sistema está contra ele", avalia Hans Noel, cientista político e professor na universidade Georgetown.

Noel aponta que o ex-presidente permanece como referência no Partido Republicano porque nenhuma figura de peso busca tomar medidas que o desagradem, com receio de gerar revolta na base trumpista. "E ele continua sendo uma figura muito positiva para muitos eleitores republicanos, porque sempre diz as coisas que essas pessoas querem ouvir."

Embora tenha sido banido do Facebook e do Twitter, onde tinha 88 milhões de seguidores, suas mensagens continuam circulando em mídias voltadas a conservadores, como a Fox News, em um site oficial dele e em canais do Telegram. Um perfil com seu nome no serviço de mensagens conta 1 milhão de seguidores, embora não tenha o selo de autenticidade.

Outros canais ligados ao ex-presidente, como o do filho Don Jr —este verificado, com 945 mil seguidores— reenviam suas declarações e as ideias que ele defende. As mensagens alternam denúncias de fraude eleitoral, críticas ao governo Biden e mensagens de apoio a políticos republicanos, a maioria deles em disputas locais. No último dia 26, houve um endosso público ao presidente brasileiro, Jair Bolsonaro.

Seu apoio explícito aos candidatos, no entanto, tem sido usado como arma pelos rivais. Em votações estaduais neste ano, os democratas argumentaram que uma vitória republicana significaria dar força a Trump e usaram isso para motivar seus eleitores a votar.

Na Califórnia, em uma votação de "recall" em setembro, houve vitória democrata e o governador Gavin Newsom permaneceu no cargo. Na Virgínia, que foi às urnas na terça (2), os republicanos ganharam. O novo governador, Glenn Youngkin, obteve apoio público de Trump, mas mal o citou na campanha. Assim, conseguiu atrair votos de republicanos que querem se afastar do ex-presidente, que geralmente moram nos subúrbios, e de admiradores dele, que vivem principalmente nas áreas rurais do estado.

"Tudo o que [Terry] McAuliffe [candidato democrata] fez foi falar 'Trump, Trump, Trump', e ele perdeu! Eu nem precisei fazer comício por Youngkin, porque McAuliffe fez por mim", ironizou o ex-presidente, em comunicado. "Gostaria de agradecer à minha BASE por vir com força e votar por Glenn Youngkin. Sem vocês, ele não teria chegado perto de vencer."

O republicano usou táticas comuns a Trump na campanha, como o de apostar em questões culturais. Ele defendeu o direito dos pais de intervir no conteúdo escolar, o que abre espaço para a redução de conteúdos sobre racismo e questões de gênero nas aulas. Em comícios, também defendeu a "integridade eleitoral" e aumentar a fiscalização sobre o processo de votação, frases que servem como gatilhos para o público que acredita em teorias de fraude.

"Como Trump fez das denúncias de fraude uma grande mensagem, e os republicanos também, isso faz com que toda vez que haja uma diferença pequena ou complicação, algumas pessoas vejam isso como parte da narrativa [de fraude]", aponta Noel. "Se um partido, quando perde, sempre diz que o resultado não é justo e legítimo, ele falha em um dos principais critérios para uma democracia funcionar."

Há também o risco de eleitores deixarem de votar por acharem que o sistema é viciado, o que diminuiria as chances de vitórias republicanas. "A declaração que eu dei dizendo que republicanos não votarão se a Fraude Eleitoral de 2020 não for consertada não significa de forma nenhuma que eu diria a eles para não votarem", ponderou Trump, tentando estimular seus eleitores a não desistirem de ir às urnas.

Ainda faltam três anos para as próximas eleições presidenciais nos EUA, e o empresário ainda não disse se irá concorrer, embora sinalize que sim. Em outubro, por exemplo, fez um comício em Iowa, estado que dá início às primárias e é parada obrigatória dos candidatos que disputam a Presidência.

Em 2024, ele fará 78 anos, mesma idade atual de Biden. Após deixar a Casa Branca, sem ir à cerimônia de posse do sucessor, Trump se mudou para a Flórida. Em seu resort de Mar-a-Lago, montou um escritório muito parecido com o que tinha no Salão Oval.

Apoiadores de Trump em comício em Des Moines, no estado de Iowa - Rachel Mummey - 9.out.21/Reuters

Nos últimos anos, seus negócios tiveram perdas. Em outubro, a revista Forbes estimou sua fortuna em US$ 2,5 bilhões. Ele perdeu US$ 600 milhões desde o início da pandemia, segundo a publicação, por causa da desvalorização de imóveis corporativos, uma parcela importante de seus negócios. Com isso, ficou de fora da lista das 400 pessoas mais ricas dos EUA, pela primeira vez em 25 anos.

Trump também é alvo de investigações sobre fraudes fiscais em suas empresas. Ele é suspeito de simular falências para não pagar impostos, entre outras contravenções. Mesmo assim, continua criando empreendimentos. Há duas semanas, anunciou ter obtido capital para lançar sua própria rede social, cuja versão beta seria lançada em novembro. A plataforma poderá ser mais um canal para ele seguir buscando convencer o público de que não perdeu.

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