Guerra da Ucrânia desperta corrida no Ocidente para reabastecer arsenais

Otan pensou que conflito de tanques na Europa nunca mais aconteceria e, assim, encolheu orçamentos de defesa

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Steven Erlanger Lara Jakes
Bruxelas | The New York Times

Quando a União Soviética entrou em colapso, nações europeias aproveitaram o "dividendo da paz", reduzindo drasticamente seus orçamentos de defesa, Exércitos e arsenais.

Com a ascensão da Al Qaeda, quase uma década depois, o terrorismo tornou-se o alvo, exigindo diferentes investimentos militares e forças expedicionárias mais leves. Até mesmo o longo envolvimento da Otan no Afeganistão teve pouca semelhança com uma guerra terrestre na Europa, com artilharia pesada e tanques, que quase todos os ministérios da Defesa pensavam que nunca se repetiria. Mas se repetiu.

Soldados ucranianos disparam, na região de Donetsk, míssil doado pelos franceses
Soldados ucranianos disparam, na região de Donetsk, míssil doado pelos franceses - Tyler Hicks - 24.jun.22/The New York Times

Na Ucrânia, o tipo de guerra europeia considerado inconcebível está destruindo os modestos estoques de artilharia, munição e defesas aéreas do que alguns na Otan chamam de "exércitos bonsai" da Europa, referindo-se às diminutas árvores japonesas.

Até os EUA têm estoques limitados das armas que os ucranianos querem e precisam, e Washington não está disposta a desviar armas importantes de regiões delicadas como Taiwan e Coreia do Sul, onde a China e a Coreia do Norte estão constantemente forçando limites.

Hoje, com nove meses de guerra, o despreparo fundamental do Ocidente desencadeou uma corrida louca para fornecer à Ucrânia o que ela precisa e ao mesmo tempo reabastecer os estoques da Otan. Enquanto os dois lados queimam armamentos e munição em um ritmo não visto desde a Segunda Guerra, a competição para abastecer os arsenais tornou-se uma frente crítica que poderá ser decisiva para o esforço da Ucrânia.

A quantidade de artilharia usada é impressionante, dizem oficiais da Otan. No Afeganistão, as forças da aliança ocidental disparavam cerca de 300 tiros de artilharia por dia e não tinham nenhuma preocupação real com a defesa aérea. Mas a Ucrânia pode disparar milhares de tiros diariamente e continua desesperada por defesa aérea contra mísseis russos e drones de fabricação iraniana.

"Um dia na Ucrânia é igual a um mês ou mais no Afeganistão", diz Camille Grand, especialista em defesa do Conselho Europeu de Relações Exteriores, que até recentemente era secretário-geral assistente da Otan para investimentos em defesa.

No verão, na região do Donbass, os ucranianos disparavam de 6.000 a 7.000 tiros de artilharia por dia, disse um alto funcionário da Otan. Os russos disparavam de 40 mil a 50 mil tiros por dia. Em comparação, os Estados Unidos produzem apenas 15 mil cartuchos por mês.

Portanto, o Ocidente está se esforçando para encontrar equipamentos e munições da era soviética cada vez mais escassos que a Ucrânia possa usar agora, incluindo mísseis de defesa aérea S-300, tanques T-72 e especialmente projéteis de artilharia de calibre soviético.

O Ocidente também está tentando criar sistemas alternativos, mesmo que sejam mais antigos, para substituir os estoques cada vez menores de caros mísseis antiaéreos e Javelins antitanque. Está enviando fortes sinais para as indústrias de defesa ocidentais de que contratos de prazo mais longo estão em preparação —e que mais turnos de trabalhadores devem ser empregados, e linhas de fabricação mais antigas, reformadas. O Ocidente está tentando comprar munição de países como Coreia do Sul para reabastecer os estoques enviados à Ucrânia.

Há até discussões sobre o investimento da Otan em antigas fábricas na República Tcheca, na Eslováquia e na Bulgária para reiniciar a fabricação de projéteis de calibre soviético de 152 mm e 122 mm para o arsenal de artilharia da era ucraniana, ainda em grande parte soviético. Mas os obstáculos são tão numerosos quanto as soluções buscadas.

Os países da Otan —muitas vezes com grande alarde— forneceram à Ucrânia alguma artilharia ocidental avançada. Mas os sistemas da aliança raramente são certificados para usar munições produzidas por outros países, que geralmente fabricam os projéteis de maneira diferente. Essa é uma maneira de os fabricantes garantirem a venda de munição para suas armas, da mesma forma que os fabricantes de impressoras ganham dinheiro com cartuchos de tinta.

Os russos também têm problemas de reabastecimento. Agora eles estão usando menos projéteis de artilharia, mas têm muitos deles, embora alguns sejam antigos. Enfrentando uma disputa semelhante, Moscou também tenta aumentar a produção militar e procura comprar mísseis da Coreia do Norte e mais drones baratos do Irã.

Dada a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014 e a guerra na região do Donbass, as novas metas de gastos militares da Otan parecem modestas: 2% do PIB até 2024, com 20% disso em equipamentos, em vez de salários e pensões. Mas mesmo estas foram amplamente ignoradas pelos principais países-membros.

Em fevereiro, quando a Guerra da Ucrânia começou, os arsenais de muitos países eram apenas cerca da metade do que deveriam ser, disse a autoridade da Otan, e houve pouco progresso na criação de armas que pudessem ser usadas de forma intercambiável pelos países. Mesmo dentro da União Europeia, apenas 18% dos gastos dos países com defesa são cooperativos.

Para os membros da Otan que forneceram grande quantidade de armas à Ucrânia, especialmente Estados da linha de frente como a Polônia e os países bálticos, o fardo de substituí-los se revelou pesado.

Os franceses, por exemplo, forneceram algumas armas avançadas e criaram um fundo de € 200 milhões (R$ 1,12 bilhão) para a Ucrânia comprar armas fabricadas na França. Mas a França já deu pelo menos 18 obuses Caesar modernos para a Ucrânia —cerca de 20% de toda a sua artilharia— e reluta em fornecer mais.

A União Europeia aprovou € 3,1 bilhões (R$ 17,4 bilhões) para reembolsar os Estados-membros pelo que eles fornecem à Ucrânia, mas este fundo, o European Peace Facility, está quase 90% esgotado.

No total, os países da Otan forneceram à Ucrânia até agora cerca de US$ 40 bilhões (R$ 216,4 bilhões) em armamento, aproximadamente o orçamento anual de defesa da França.

Soldado ucraniano com míssil na região de Donetsk
Soldado ucraniano com míssil na região de Donetsk - Finbarr O'Reilly - 29.mai.22/The New York Times

Os ucranianos querem pelo menos quatro sistemas que o Ocidente não forneceu e provavelmente não fornecerá: mísseis superfície-superfície de longo alcance, conhecidos como ATACMS, que podem atingir a Rússia e a Crimeia; jatos de caça ocidentais; tanques ocidentais; e uma defesa aérea muito mais avançada, disse Mark F. Cancian, ex-estrategista de armas da Casa Branca que hoje é consultor-sênior do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais de Washington.

Quanto à defesa aérea, disse Cancian, a Otan e os EUA desativaram a maior parte de suas armas de curto alcance após a Guerra Fria, e há poucas para pôr em uso. Produzir mais pode levar até dois anos.

A manutenção é fundamental, mas há respostas inteligentes para equipamentos relativamente mais simples, como o obuseiro M-777 dado à Ucrânia. Com as peças certas, um engenheiro ucraniano pode se conectar a um oficial de artilharia dos EUA em Fort Sill, em Oklahoma, e conversar sobre a manutenção pelo Zoom.

A Ucrânia também se mostrou adaptável. Suas forças são conhecidas dentro da Otan como "Exército MacGyver", uma referência a uma antiga série de televisão cujo herói inventa e improvisa com o que tem.

Para bombardear as posições russas na ilha da Cobra, por exemplo, os ucranianos colocaram Caesars, com alcance de 40 quilômetros, em barcaças e os rebocaram por 10 quilômetros para atingir a ilha, que ficava a 50 quilômetros de distância, surpreendendo os franceses. A Ucrânia também afundou o Moskva, nave-mãe da frota russa no Mar Negro, com seus próprios mísseis adaptados, e construiu drones que podem atacar navios no mar.

As autoridades americanas insistem que seus militares ainda têm material suficiente para continuar abastecendo a Ucrânia e defender os interesses dos EUA em outros lugares. "Estamos comprometidos em fornecer à Ucrânia o que ela precisa no campo de batalha", disse Sabrina Singh, vice-secretária de imprensa do Pentágono, após anunciar mais mísseis Stinger para Kiev.

Washington também está procurando alternativas mais antigas e baratas, como dar à Ucrânia mísseis antitanque TOW, abundantes, em vez de Javelins, e mísseis terra-ar Hawk em vez de versões mais recentes. Mas as autoridades estão pressionando cada vez mais a Ucrânia para ser mais eficiente e não disparar, por exemplo, um míssil que custa US$ 150 mil contra um drone que custa US$ 20 mil.

Algumas armas já estão acabando.

Em setembro, os militares dos EUA tinham um número limitado de cartuchos de artilharia de 155 mm em seus estoques e um número também pequeno de foguetes guiados, lançadores de foguetes, obuses, Javelins e Stingers, de acordo com uma análise de Cancian.

A escassez de projéteis de artilharia de 155 mm "é provavelmente a que mais preocupa os planejadores", disse Cancian. "Se você quiser aumentar a capacidade de produção de projéteis 155 mm, provavelmente levará até cinco anos antes de começar a vê-los sair do outro lado."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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