Cuba vê maior onda de êxodos em 50 anos ameaçar futuro da ilha

Com uma das populações mais idosas do hemisfério, país é 2ª maior fonte de imigrantes para os EUA

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Ed Augustín Frances Robles
Baracoa (Cuba) | The New York Times

O cubano Roger García Ordaz não faz segredo sobre suas muitas tentativas de fugir do país.

Ele já tentou deixar a ilha 11 vezes, em embarcações feitas de madeira, isopor e resina. Tem uma tatuagem para marcar cada tentativa fracassada, incluindo as três em que seu barco ficou avariado e as oito em que a Guarda Costeira americana o barrou no mar e o mandou de volta para casa.

Homem conduz bote feito com pedaços de isopor na praia de Las Piedras, no vilarejo de El Cepem, em Caimito, em Cuba - Adalberto Roque - 2.set.22/AFP

Centenas de embarcações caseiras partiram neste ano de Baracoa, vila de pescadores a oeste de Havana onde vive García, 34 —são tantas que o lugarejo ganhou o apelido de Terminal Três. "Claro que continuarei a me jogar no mar até chegar lá", diz. "Se o mar quiser acabar com minha vida, que seja."

Não é de hoje que as condições de vida em Cuba sob o regime comunista são precárias. Agora, porém, a pobreza e a desesperança crescentes desencadearam o maior êxodo da ilha caribenha desde a ascensão de Fidel Castro, há mais de meio século.

O país foi atingido duplamente pelo endurecimento das sanções dos EUA e pela pandemia de Covid, que eviscerou uma de suas principais fontes de renda: o turismo. A comida ficou ainda mais escassa e cara. Diante das farmácias, onde medicamentos são exíguos, as filas começam a se formar antes do amanhecer. E milhões de pessoas encaram blecautes diários de horas de duração.

No último ano, quase 250 mil cubanos —mais de 2% dos 11 milhões de habitantes da ilha— migraram para os EUA. Segundo dados do governo americano, a maioria chegou à fronteira sul por terra.

Mesmo para um país conhecido pelos êxodos em massa, a onda migratória atual é espantosa. A quantidade de cubanos que deixa o país hoje é maior do que aquela da soma dos dois maiores eventos migratórios do país —o êxodo de Mariel, de 1980, e a crise dos balseiros, nome dado aos que se aventuravam em botes improvisados em direção ao mar, de 1994.

Mas se aqueles dois movimentos chegaram ao auge no período de um ano, especialistas dizem que a onda migratória atual, comparada a um êxodo de tempos de guerra, não tem final à vista e ameaça a estabilidade de um país que já possui uma das populações mais idosas do hemisfério.

A avalanche de cubanos que partem cria ainda um problema para os EUA. Cuba é uma das maiores fontes de imigrantes para o país, atrás apenas do México, e se tornou a principal responsável pela enxurrada de pessoas na fronteira dos EUA-México. A situação tem representado um grave entrave político para o presidente Joe Biden e é vista como um problema sério de segurança nacional pelo governo americano.

Segundo um funcionário sênior do Departamento de Estado, proibido de falar publicamente sobre o tema, os números relativos a Cuba são históricos, e isso é um fato. No entanto, em todo o mundo há mais pessoas migrando do que jamais houve, e essa tendência se manifesta também em nosso hemisfério.

Muitos especialistas dizem que a política dos EUA em relação à ilha ajuda a alimentar a crise migratória que a administração americana agora luta para enfrentar.

Para atrair o voto de cubano-americanos do sul da Flórida, o governo Donald Trump revogou a política de engajamento com Cuba lançada por Barack Obama, que incluía a restauração das relações diplomáticas entre os dois países e o aumento das viagens à ilha. Trump a substituiu por uma campanha de "pressão máxima" que intensificou as sanções e limitou fortemente as remessas de dinheiro que os cubanos podiam receber de familiares nos EUA, uma fonte crucial de renda cubana.

"Não é difícil entender: se você devasta com sanções um país situado a 140 km da fronteira, as pessoas virão à sua fronteira em busca de oportunidades econômicas", diz Ben Rhodes, que foi vice-assessor de segurança nacional no governo Obama e responsável pelas discussões com Cuba durante a gestão.

Uma revogação significativa das sanções não está em pauta, mas os dois governos estão empenhados em lidar com o aumento extraordinário da migração. Washington anunciou recentemente que vai reiniciar os serviços consulares em Havana em janeiro e emitir pelo menos 20 mil vistos para cubanos em 2023, conforme previsto em acordos de longa data entre os dois países. Autoridades esperam que isso possa dissuadir algumas pessoas de se lançarem em viagens perigosas aos EUA.

Havana concordou em voltar a receber voos dos EUA de cubanos deportados. E o governo Biden revogou o teto às remessas que cubano-americanos são autorizados a enviar a parentes na ilha e licenciou uma empresa americana para processar as transferências para Cuba.

A queda livre de Cuba foi acelerada pela Covid. Nos últimos três anos, as reservas financeiras nacionais minguaram, e o país tem tido dificuldade para manter suas lojas abastecidas. As importações, sobretudo de alimentos e combustível, caíram pela metade. A situação é tão precária que a estatal de eletricidade gabou-se neste mês de que o fornecimento tinha continuado sem cortes por 13 horas e 13 minutos.

No ano passado, fartos do declínio econômico e da falta de liberdade, agravados pelo lockdown, dezenas de milhares saíram às ruas nos maiores atos antirregime em décadas. Os protestos foram reprimidos, e quase 700 pessoas ainda estão detidas, de acordo com uma ONG de direitos humanos.

Os cubanos com menos recursos tentam partir em embarcações improvisadas, e pelo menos cem já morreram no mar desde 2020, segundo a Guarda Costeira americana. Apenas nos últimos dois meses o órgão já interceptou quase 3.000 cubanos no mar.

Mas hoje a maioria dos migrantes deixa a ilha de avião, muitas vezes com passagens pagas por familiares no exterior. A seguir, enfrentam uma viagem terrestre difícil. (Embora ainda seja ilegal deixar Cuba pelo mar, o país eliminou a exigência de visto de saída por via aérea uma década atrás.)

As comportas se abriram no ano passado, quando a Nicarágua deixou de exigir visto de entrada para cubanos. Dezenas de milhares de cubanos venderam suas casas e bens e foram de avião para Manágua, onde pagaram "coiotes" para ajudá-los a fazer a viagem de 2.700 km até a fronteira americana.

Katrin Hansing é antropóloga da City University of New York e está em licença sabática em Cuba. Ela observa que as cifras da migração não incluem os milhares que partiram para outros países, como Sérvia e Rússia. "Essa é a maior fuga quantitativa e qualitativa de capital humano que esse país já sofreu desde a revolução", disse. "São as melhores cabeças, as mais inteligentes e as com mais energia."

A saída de muitos cubanos jovens, em idade empregatícia, aponta para um futuro demográfico sombrio para um país em que a expectativa média de vida, de 78 anos, é mais alta que a do resto da região, dizem especialistas. O regime já tem dificuldade em pagar as aposentadorias magras das quais dependem os mais idosos, e a diáspora não é nada menos que devastadora, segundo a pesquisadora Elaine Acosta González, da Universidade Internacional da Flórida. "Cuba está sendo despovoada."

Poucos anos atrás, o futuro da ilha parecia muito diferente. Com a administração Obama afrouxando restrições às viagens à ilha, turistas americanos injetaram dólares no nascente setor privado. Agora as viagens voltaram a sofrer restrições fortes, e os anos de declínio econômico extinguiram os últimos resquícios de otimismo.

"A última coisa que você pode perder é a esperança, e acho que grande parte da população perdeu a esperança", diz o taxista Joan Cruz Méndez, 41, que já tentou partir três vezes de Baracoa. Ele conta que em uma delas chegou a avançar quase 50 km no mar, mas foi obrigado a voltar, porque muitas das pessoas a bordo tiveram enjoos e vomitaram.

Em março, Cruz comprou uma passagem de avião até o Panamá para sua mulher e gastou suas economias para pagar US$ 6.000 a um coiote para levá-la até os EUA, onde ela pediu asilo político. Ela hoje trabalha numa loja de autopeças em Houston.

Em maio, Yoel Taureaux Duvergel, 32, e sua esposa Yanari, grávida de cinco meses, zarparam na madrugada com quatro outras pessoas. O motor do barco quebrou. Eles começaram a remar, mas foram interceptados pela Guarda Costeira americana a poucos quilômetros da costa dos EUA e levados de volta a Cuba, onde Taureaux agora tenta sobreviver fazendo bicos. Questionado sobre por que tentou partir, ele ri. "Por que eu quis partir? Você não vive em Cuba?"

Tradução de Clara Allain

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