Lula deve deixar de ir a Davos para priorizar América Latina

Presidente eleito participará de cúpula da Celac e tem viagens marcadas a EUA e China com missão de se manter neutro nas tensões entre potências

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São Paulo

Em uma sinalização das prioridades de política externa do próximo governo, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não deve participar do Fórum Econômico Mundial, em Davos, em janeiro.

A primeira viagem internacional do petista será à Argentina, para se reunir com o presidente Alberto Fernández e prestigiar a Cúpula da Celac (Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos).

O encontro está marcado para 24 de janeiro, enquanto o fórum na Suíça acontece pouco antes, entre os dias 16 e 20. Seria possível conciliar as datas, mas o futuro ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), deve ser o principal representante do Brasil no evento com empresários, economistas e líderes globais.

O presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva durante a cerimônia de diplomação, em Brasília
O presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva durante a cerimônia de diplomação, em Brasília - Ueslei Marcelino - 12.dez.22/Reuters

Segundo interlocutores de Lula, o martelo ainda não foi batido, mas o mais provável é que ele não vá a Davos. A percepção de algumas pessoas no entorno do petista é a de que ele já fez sua reestreia no palco global durante a COP27, no Egito, em novembro. Assim, não haveria necessidade de ir a Davos.

O Fórum Econômico, no entanto, costuma ser uma oportunidade para chefes de governo apresentarem suas políticas econômicas para investidores estrangeiros. Assim, a presença de Lula poderia reforçar o recado de comprometimento com a estabilidade fiscal que Haddad vem tentando transmitir.

Lula participou do fórum em 2003, após estrear na Presidência. Lá, tranquilizou investidores, inseguros com o então pouco conhecido líder de esquerda, e propagou o discurso de compromisso com reformas.

Em janeiro de 2019, logo depois de assumir o cargo, o presidente Jair Bolsonaro (PL) também foi a Davos, onde fez um discurso de seis minutos recebido com pouco entusiasmo.

A prioridade do Itamaraty será reviver órgãos de integração regional da América Latina, como a Celac e a Unasul, e se reaproximar de vizinhos, em especial da Argentina. O Brasil abandonou a Celac na gestão do ex-chanceler Ernesto Araújo e agora voltará à organização, que deve se tornar um dos principais foros para a política externa brasileira, ao lado da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA).

Em entrevista coletiva nesta quarta (14), o futuro chanceler Mauro Vieira, 71, anunciou que Lula também irá a EUA e China no início do ano. As duas viagens —e a ordem em que serão feitas— serão importantes para sinalizar o posicionamento do Brasil em relação à Guerra Fria 2.0 entre Washington e Pequim.

O governo americano gostaria que Lula fosse à Casa Branca para se encontrar com o presidente Joe Biden tão logo for possível. Em visita ao Brasil, em 5 de dezembro, o conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Jake Sullivan, fez o convite para que o petista se reúna com o democrata em Washington.

Ao longo do processo eleitoral, os EUA deram diversos sinais de apoio ao sistema eleitoral brasileiro e pregaram respeito ao resultado do pleito. O governo americano estava preparado para enviar Sullivan ao Brasil logo após o segundo turno caso houvesse instabilidade política por contestações à apuração.

Num contexto de expansão da influência chinesa na América Latina, os EUA querem estreitar laços com o Brasil e apostam em parcerias para mitigação da crise climática, combate à insegurança alimentar e cooperação militar. "Os americanos mandaram [para a reunião com Lula] representantes de toda a cadeia hierárquica que lida com América Latina, o que mostra o grau de importância que estão dando ao Brasil", diz Hussein Kalout, pesquisador da Universidade Harvard e ex-secretário de Assuntos Estratégicos.

Do lado americano, além de Sullivan, participaram do encontro Juan González, diretor-sênior de hemisfério Ocidental do Conselho de Segurança Nacional, e Ricardo Zúniga, secretário-adjunto de hemisfério Ocidental do Departamento de Estado. Pelo governo de transição, além de Lula, estavam o ex-chanceler Celso Amorim, Haddad e o senador Jaques Wagner (PT-BA). "A China se tornou um grande desafio para a hegemonia internacional dos EUA, mas os americanos ainda são insubstituíveis para o Brasil —são o maior investidor estrangeiro no país e o segundo maior parceiro comercial", afirma Kalout.

Há a percepção de que Amorim, futuro assessor internacional de Lula, e Vieira, indicado a chanceler, são menos simpáticos à aproximação com os americanos. Os chineses também estão se movimentando. Ainda antes do segundo turno, o encarregado de negócios da embaixada da China, Jin Hongjun, entrou em contato com Amorim e adiantou um convite ao presidente eleito para uma visita de Estado a Pequim.

"Existe um consenso no entorno de Lula de que é melhor ter um mundo multipolar do que unipolar, liderado só pelos EUA; por isso a tentativa de ficar equidistante de China e EUA e a resistência em criticar a Rússia", diz Matias Spektor, professor da Escola de Relações Internacionais da FGV e professor visitante na Universidade Princeton. Mas a dependência econômica em relação a Pequim, maior importador de commodities do país, preocupa o governo eleito. "É difícil diminuir essa dependência", completa Spektor.

Ele aponta que outros compradores de commodities brasileiras, como EUA e União Europeia (UE), estão implementando leis para banir a compra de produtos oriundos de cadeias de fornecimento que não combatem o desmatamento, o que deixa o Brasil muito exposto. "Ironicamente, a política ambiental dos EUA e da UE empurra o Brasil para mais perto da China", afirma o professor.

Já os militares brasileiros têm laços fortes com os americanos. Durante o governo Bolsonaro, a parceria com os EUA foi aprofundada, e o Brasil passou a ter status de aliado prioritário extra-Otan.

"Do ponto de vista do governo americano, é importante limitar a expansão militar chinesa no continente", diz o professor. A Argentina já cedeu espaço na Patagônia para uma base espacial da China, que também reforçou conexões militares com Colômbia, Venezuela e países da América Central, como Cuba.

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