Governo Sánchez enfrenta impasse para reforma de lei 'só sim é sim' na Espanha

Premiê quer limitar medida que acabou beneficiando condenados, mas ministras divergem sobre conceito de revisão

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Madri

Solo Sí Es Sí (só sim é sim) é uma lei feminista que se propôs a mudar a forma como o mundo vê as agressões sexuais contra mulheres. Mas, em meio a casos como o de Daniel Alves, preso sob acusação de estupro em Barcelona, o que poderia ser uma vitrine tem se tornado um pesadelo jurídico, político e filosófico para o governo do primeiro-ministro Pedro Sánchez, que corre para tentar remendar a legislação.

As ministras da Justiça e da Igualdade, Pilar Llop e Irene Montero, brigam entre si para fazer valer suas propostas de alteração. Sánchez esperava que elas chegassem a um acordo até esta sexta-feira (3), mas isso não aconteceu.

A nova data para entrega da proposta do governo é a próxima terça (7), limite para que ela possa ser apreciada pelo Parlamento na próxima rodada legislativa e, com a eventual aprovação, impedir que mais condenados por assédio ou agressão sexual sejam soltos "sem querer".

Cartaz com mão de juiz atacando mulher é exibido em manifestação contra a violência de gênero em Barcelona - Pau Barrena - 2.jan.23/AFP

O fato de a lei ter por fim beneficiado alguns agressores sexuais é um problema que assombra o país desde novembro do ano passado, quando os três primeiros condenados foram libertados —dois haviam sido presos nas ilhas Baleares por agressão sexual sem penetração e outro por uma tentativa de estupro na Galícia.

Nesta quinta (2), soube-se que o número de atingidos por essa revisão de penas já passa de 400, o que vem sendo usado maciçamente por adversários políticos para criticar um governo que já enfrenta pressão popular. A cifra se aproxima de 10% dos condenados sexuais no país, que eram 3.689 em 2021.

Mesmo que seus crimes e condenações tenham acontecido muito antes, eles foram favorecidos pela aplicação retroativa da nova lei e, de acordo com a nova visão, já tinham cumprido a pena necessária.

O caminho para que uma lei de proteção às mulheres tenha derrapado assim é complexo. A legislação anterior dividia os casos em dois tipos de crimes sexuais: abuso ou agressão —respectivamente, sem e com uso de violência ou intimidação. No novo texto, a primeira designação desapareceu, com qualquer caso em que não há consentimento sendo definido como agressão sexual, independentemente do grau ou matiz da situação.

Quantos às penas, o abuso podia render de um a três anos de prisão e a agressão, de um a cinco. Agora, no entanto, a agressão unificada prevê penas de um a quatro anos.

"Não sei se foi um erro de conceito. Seria preciso perguntar aos legisladores e ao Ministério da Igualdade. Mas eu, como muitos de meus colegas, fiquei surpreso", disse à Folha o magistrado Ignacio González Vega, especialista em Código Penal e membro do grupo Juízes pela Democracia. "As penas foram reduzidas porque, ao contrário de outras reformas penais, essa lei não possui um dispositivo transitório que estabeleça as regras a serem aplicadas pelos juízes nos conflitos entre a antiga e a nova legislação."

Para resolver o rolo jurídico, a sugestão da ministra da Justiça, Pilar Llop, do mesmo partido de Sánchez (o socialista PSOE), é simples: elevar as penas "se a agressão for cometida por meio de violência ou intimidação".

No entanto, essa ideia bate de frente com a própria ideia da Solo Sí Es Sí, conforme acredita a ministra da Igualdade, Irene Montero, integrante do Podemos, partido também de esquerda que faz parte da coalizão do presidente de governo.

Montero —que viu a aprovação do texto, em 26 de maio de 2022, como uma grande vitória— diz que reintroduzir a violência e a intimidação como pontos divisores da aplicação de penas significaria colocar novamente o foco no quanto uma mulher resistiu em uma agressão, não no crime cometido pelo homem.

Llop rebate dizendo que sua proposta não toca na filosofia da lei, ou seja, no consentimento. Segundo ela, o artigo 1º seria mantido: "Só se entenderá que há consentimento quando este tiver sido livremente expresso por meio de atos que, em vista das circunstâncias do caso, expressem claramente a vontade da pessoa".

A ministra da Igualdade, por outro lado, sustenta que, mesmo que "a palavra consentimento não seja apagada" ou a parte do artigo que trata disso não seja eliminado, "na prática seria assim". Ela já fez quatro contrapropostas a Llop, que não se concretizaram.

Montero acredita que mexer na parte penal da lei não é a solução e que medidas no âmbito judicial ajudarão a "assentar a lei" e fazer com que os "magistrados possam interpretá-la corretamente".

Os dois lados vêm se reunindo desde dezembro para ver de que maneiras se pode evitar o fluxo de sentenças reduzidas e libertações. Mas o centro do debate, o consentimento, continua sendo uma linha vermelha.

Em entrevista à rede RNE nesta sexta, a ministra da Igualdade reconheceu a falta de avanço na negociação e que se mantém a "forte discrepância" de seu Podemos com o PSOE. Bombardeada por todos os lados, Montero foi obrigada a desmentir que pedirá demissão. Mas os socialistas de Sánchez já advertiram que, se um consenso não for alcançado, entregarão sozinhos a proposta ao Parlamento.

A ministra da Igualdade espanhola, Irene Montero, no Parlamento - Thomas Coex/AFP
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