Relutância em apoio bélico fez do Brasil um problema para a Ucrânia

Brasília tem negado pedidos de Kiev e seus aliados com base em princípio de neutralidade, defendido por Lula e Bolsonaro

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André Spigariol Jack Nicas
The New York Times

O Brasil comprou 34 canhões antiaéreos da Alemanha para proteger seus céus enquanto se preparava para a Copa do Mundo de 2014 e para as Olimpíadas de 2016.

Depois que a Rússia invadiu a Ucrânia, o governo alemão começou a enviar ao país do Leste Europeu armas semelhantes —de canhão duplo e capazes de derrubar uma aeronave a quase cinco quilômetros de distância. Mas estava com pouca munição. Então, no ano passado, autoridades alemãs pediram a Brasília que devolvesse cartuchos não utilizados. Mas a resposta foi clara: se fosse para a Ucrânia, não.

Soldados ucranianos fazem salva de tiros durante funeral em Brovary, na Ucrânia
Soldados ucranianos fazem salva de tiros durante funeral em Brovary, na Ucrânia - Dimitar Dilkoff - 11.abr.23/AFP

O maior país da América Latina se encontra em posição complicada. O Brasil pediu paz e, em declarações cuidadosamente formuladas, criticou a invasão da Ucrânia pela Rússia. Mas o país, que depende de Moscou para fertilizantes e combustível, também deixou claro que não enviará nenhuma arma destinada às linhas de frente e, em vez disso, está pressionando para mediar negociações de paz.

"Não quero entrar na guerra", disse o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. "Quero acabar com a guerra."

No entanto, não há um fim à vista. Documentos recém-vazados do Pentágono mostram que a Ucrânia está cada vez mais desesperada por armas para conter as tropas russas, especialmente as de defesa aérea, que o Brasil pode fornecer. Com o esgotamento das armas no Ocidente, Kiev e seus aliados estão pressionando algumas nações que evitaram se envolver no conflito para que cedam e enviem ajuda.

Mas, em um sinal preocupante para a Ucrânia –e, por extensão, uma vitória da política externa para a Rússia–, alguns desses países dizem que pretendem ficar de fora.

O presidente da Colômbia, Gustavo Petro, afirmou em janeiro que rejeitou os pedidos de Washington para que enviasse as armas do país fabricadas na Rússia para os EUA, que planejavam entregá-las à Ucrânia, porque a Constituição colombiana exige que o presidente busque a paz. Ele acrescentou que a América Latina não deve escolher lados. "Não estamos com ninguém", disse.

A Coreia do Sul também se recusou a oferecer assistência letal à Ucrânia, citando sua política de não enviar armas a um país em guerra. Os documentos vazados do Pentágono sugeriram que altos funcionários em Seul temiam a pressão de Washington para enviar munição para Kiev de qualquer maneira. O governo sul-coreano contestou a precisão dos documentos.

Ao Brasil a Ucrânia fez pelo menos dois pedidos para comprar uma longa lista de armamentos que incluía veículos blindados, aeronaves, sistemas de defesa aérea, morteiros, rifles de precisão, armas automáticas e munições, de acordo com correspondência obtida pelo New York Times por meio das leis de registros públicos brasileiras. O Brasil basicamente ignorou os pedidos.

As negativas dos países são motivadas por uma série de fatores: política nacional, políticas internas que os impedem de armar países envolvidos em conflitos e sua dependência da Rússia para importações cruciais. No entanto, eles também podem ser parceiros críticos da Ucrânia.

O Brasil, em particular, é um produtor prolífico de aviões de guerra, muitos dos quais feitos pela Embraer. Aeronaves estão entre as coisas de que a Ucrânia mais precisa, dizem especialistas em armamentos, mas o Brasil diz que seu tradicional princípio orientador de política externa é permanecer amigo de todos.

Ainda assim, o país se mostrou disposto a vender para outras nações em guerra. Desde o início da guerra do Iêmen, em 2014, o Brasil forneceu à Arábia Saudita e aos Emirados Árabes Unidos mais de 21 mil toneladas de armas e munições, no valor de US$ 680 milhões (R$ 3,3 bilhões), incluindo bombas de fragmentação condenadas internacionalmente, segundo dados comerciais.

O Brasil, um dos maiores produtores de alimentos do mundo, também depende da Rússia para um quarto de seus fertilizantes. Em 2022, quando a Rússia atacou a Ucrânia, o país comprou mais de 8,8 milhões de toneladas de fertilizantes russos, abaixo dos 10,2 milhões de 2021. O Brasil é o principal comprador de fertilizantes russos, e a Rússia, o principal fornecedor dos agricultores brasileiros.

A indústria de defesa brasileira exportou um recorde de US$ 1,5 bilhão (R$ 7,4 bilhões) em armas em 2021, e o governo disse que agora representa quase 5% da economia brasileira. (Os EUA são o maior cliente de armas do Brasil.) No entanto, o setor agrícola é cem vezes maior, com US$ 159 bilhões (R$ 780,5 bilhões) em exportações em 2022.

O ex-presidente Jair Bolsonaro manteve um relacionamento caloroso com Vladimir Putin, visitando o Kremlin seis dias antes de o russo lançar sua invasão. Mais tarde, Bolsonaro elogiou a visita em sua fracassada campanha de reeleição, dizendo que o fez para garantir fertilizantes e combustível.

"Economicamente, é uma vitória fácil para os dois países que eles não querem arriscar", diz Andrés Gannon, pesquisador militar do Conselho de Relações Exteriores, sobre Brasil e Rússia.

O Brasil também busca há muito tempo um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Portanto, permanecer neutro pode evitar divisão de votos de Rússia e EUA, avalia.

Autoridades ocidentais esperavam que a eleição de Lula, em novembro, um esquerdista mais próximo dos líderes ocidentais do que Bolsonaro, abrisse as vendas de armas do Brasil para a Ucrânia. Mas a neutralidade é uma das poucas questões em que Lula e Bolsonaro estão alinhados.

Poucas semanas depois de assumir o cargo, em janeiro, Lula rejeitou outro pedido de munição da Alemanha para equipar os tanques Leopard que está enviando para a Ucrânia. Em vez disso, o presidente brasileiro defendeu um plano diferente: ele quer intermediar a paz.

Em reuniões com o presidente dos EUA, Joe Biden, o premiê da Alemanha, Olaf Scholz, e o presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, Lula apresentou um plano para um grupo de nações neutras mediar negociações de paz. O Ocidente e a Ucrânia consideram o plano do Brasil impossível.

"Não vemos nenhum ímpeto agora para chegar à mesa de negociações", disse recentemente John Kirby, porta-voz do Conselho de Segurança Nacional dos EUA. Zelenski disse que as negociações não são possíveis até que a Rússia retire suas forças da Ucrânia, enquanto o Kremlin diz que qualquer acordo deve levar em conta o território que a Rússia ocupa hoje. A solução do Brasil para isso permanece nebulosa.

"A primeira decisão deve ser começar a conversar", disse Celso Amorim, ex-chanceler do Brasil e hoje assessor especial de Lula. Ele disse que não poderia oferecer detalhes até que isso acontecesse.

Embora o Brasil esteja feliz por ser o principal mediador, disse Amorim, outros países devem se envolver, incluindo Índia, Indonésia e África do Sul. "Você tem que ter alguém que também tenha influência sobre a Rússia", disse. "Mas quem tem influência sobre a Rússia? Um deles é a China, sem dúvida."

A China apresentou seu próprio plano de paz, embora tenha sido duramente criticado pela Ucrânia e seus aliados. Lula disse que apresentaria seu plano de negociações de paz à Rússia e à China. Ele deve se encontrar com o dirigente Xi Jinping da China em Pequim nesta sexta-feira (14). Amorim se reuniu com Putin na Rússia em março, e o chanceler russo, Serguei Lavrov, deve visitar o Brasil na próxima semana.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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