Venezuela não é obstáculo para integração da América do Sul, diz articulador da Unasul

Para o argentino Matias Capeluto, situação de Caracas seria diferente se bloco estivesse de fato ativo

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Buenos Aires

Há quase quatro anos, a função do argentino Matias Capeluto, 36, é tentar emplacar a volta da Unasul como uma prioridade na América do Sul. Antes ilhado por governos de direita na região, ele já estava desanimando. Até que Lula ganhou as eleições no Brasil e "deu novo oxigênio" à pauta, diz.

Por isso, ele viu o encontro de líderes dos 12 países nesta semana em Brasília, o primeiro em nove anos, como uma grande vitória, que não será abalada pela presença da Venezuela nem por declarações polêmicas do presidente brasileiro de que a ditadura caribenha é uma questão de "narrativa".

O ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, e o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, durante encontro de líderes sul-americanos em Brasília - Ueslei Marcelino - 30.mai.23/Reuters

Capeluto defende que Caracas nunca deveria ter sido isolada nas mesas de discussão. "Se a Unasul não tivesse sido fechada, toda essa situação da Venezuela não teria acontecido. Era o espaço onde ainda se podia negociar", diz o diretor da Casa Pátria Grande, ligada ao gabinete do presidente Alberto Fernández.

A instituição, que leva a alcunha de seu criador, o ex-presidente Néstor Kirchner (2003-2007), foi concebida justamente para estimular a integração na região. É ali, no prédio histórico no centro de Buenos Aires, que jazem empoeiradas mais de 400 caixas e 20 terabytes de informação desde que a sede monumental da Unasul em Quito foi abandonada, em 2019.

Na terça, Capeluto não se abalou nem com a retirada da Unasul do documento final da reunião, após a resistência de países como Uruguai, Paraguai e Chile. "Não estamos apaixonados pelo nome nem pela instituição, e sim pelos instrumentos. Pode ter outro nome, colocar sob outro organismo, dá no mesmo, desde que se faça."

Matias Capeluto, 36, é diretor-executivo da Casa Pátria Grande, ligada à Presidência da Argentina - Arquivo Pessoal

Que balanço faz do encontro em Brasília? Foi muito positivo. Primeiro, fazia nove anos que os presidentes sul-americanos não se sentavam em uma mesa, justamente pela estratégia de isolar a Venezuela, e a presença foi praticamente total. O segundo saldo positivo é a formação de um grupo de trabalho que terá que decidir qual será a estratégia política para a integração na região.

Há países que ainda querem fazer algumas mudanças, pensar um pouco mais, mas nós vamos seguir impulsionando a Unasul em conjunto com o Brasil. De qualquer forma, é positivo que todos concordem com essa necessidade. O terceiro resultado positivo é voltar a ter uma instância de diálogo com a Venezuela. Hoje estamos muito melhores do que antes: há uma volta ao diálogo para começar a resolver os problemas.

A presença da Venezuela é um entrave para as negociações? Como vê as declarações feitas por Lula? Dentro do governo argentino não há uma visão única sobre a Venezuela, mas todos concordam que é preciso falar com eles —uns mais, outros menos. A Venezuela não é de nenhuma forma um obstáculo à integração. Viu-se no encontro uma foto de Guillermo Lasso [presidente do Equador, de direita] com [o ditador venezuelano Nicolás] Maduro. Eles não estão de acordo, mas têm que conversar, porque há um monte de problemas em comum entre os dois países.

Em relação a Lula, ficou muito forte essa frase que ele usou, de construção de narrativa, mas Lula também pediu a Maduro que permita que haja observadores internacionais no pleito. Todos desejamos eleições livres na Venezuela, que, ademais, está entrando num processo de diálogo interno entre suas forças políticas, com mediações externas, e confirmou novas eleições no ano que vem. Esperamos que seja o mais cedo possível.

A Unasul tem uma cláusula que exige que os países-membros sejam democráticos. Como ela se aplica à Venezuela? Essa cláusula foi ativada várias vezes durante o funcionamento da Unasul: na tentativa de levante policial no Equador em 2010 para tentar derrubar Rafael Correa, na Bolívia em 2008 [contra Evo Morales] e no Paraguai em 2012, quando houve o golpe a Fernando Lugo [ele sofreu um impeachment]. Se a Unasul não tivesse sido fechada, toda essa situação da Venezuela não teria acontecido. Porque era o espaço onde ainda se podia negociar. Diante do fechamento técnico do grupo, a Venezuela ficou ilhada e aconteceu o que aconteceu.

Essa cláusula tem que que ser mantida na nova Unasul. Mas ela é ativada em casos de golpe de Estado, não na situação em que está hoje a Venezuela, onde há um governo reconhecido por todos os países sul-americanos. A questão ali é mais de direitos humanos, e se hoje a Unasul estivesse de fato ativa, tranquilamente se poderia pensar em uma missão voltada para isso. Tivemos 26 missões eleitorais que funcionaram muito bem. Quando a Unasul deixou de existir, muitas eleições entraram em processo de crise, como [Jair] Bolsonaro no Brasil, que não reconheceu a derrota por semanas.

Havia uma expectativa de que o encontro em Brasília fosse uma espécie de reativação da Unasul, mas a menção ao grupo foi vetada no comunicado final. Mesmo assim, acha que o órgão tem futuro? A convocatória foi a um retiro presidencial para voltar a construir pontes, e não uma conferência da Unasul. A Unasul talvez esteja em último lugar; primeiro é preciso reconstruir um monte de coisas. Havia presidentes que não falavam entre si, que nem se conheciam. Não estamos apaixonados pelo nome Unasul nem pela instituição, e sim pelos instrumentos, pela possibilidade de voltar a ter conselhos de infraestrutura, de saúde, como os 20 grupos de trabalho que a Unasul já teve. Para nós, pode ter outro nome, colocar sob outro organismo, dá no mesmo, desde que se faça.

Mas nós achamos que a Unasul é o caminho e vamos começar a demonstrar o porquê aos demais que não estão totalmente convencidos. Tomara que a gente consiga convencer [o presidente uruguaio Luis Alberto] Lacalle Pou, por exemplo, de que é bom para ele e de que é preciso desideologizar a integração. [O venezuelano Hugo] Chávez assinou o tratado da Unasul, mas [o colombiano Álvaro] Uribe também. Participava Cristina Kirchner, mas também [o chileno Sebastián] Piñera. Ou seja, se em algum momento essa convivência deu certo e foi possível trabalhar, agora também pode ser.

E como pretendem fazer isso? Com a demonstração concreta dos resultados que a Unasul pode dar. Por exemplo: ela tinha o Conselho de Defesa Sul-Americano, onde se construía uma nova doutrina que entendia que somos uma zona de paz, então não temos que preparar nossos Exércitos para enfrentar países vizinhos como no resto do mundo, e sim pensar na defesa dos nossos recursos naturais. É algo que convém a todos. Tínhamos também o Instituto de Governo de Saúde, com um banco de 30 medicamentos que eram comprados pelo bloco e permitiam uma economia de US$ 1 bilhão por ano.

Com esses tópicos, quero te mostrar que a ideologia não está por trás de nada, são projetos concretos, que dão soluções aos nossos povos, às nossas economias. É possível, por exemplo, liberar a livre circulação de estudantes entre os nossos países, que hoje só pensam em estudar nos EUA ou na Europa.

O Uruguai argumentou que "basta de instituições". Para quê serviria outro grupo? Nós, sul-americanos, formamos um organismo em média a cada três anos. E depois aparecem novos organismos com tarefas similares e vamos sobrepondo funções, orçamentos, funcionários e cada vez dá menos resultados, ficamos presos na burocracia. De fato, precisamos convergir.

No caso da Unasul, Mercosul e Cepal, não há sobreposição. O Mercosul está inscrito na Organização Mundial de Comércio, pensado para promover um mercado comum entre os países do bloco. A Unasul nasce da política, não da economia, e é reconhecida pela ONU, ou seja, está pensado mais para decisões de desenvolvimento, cultura. E a Celac funciona como a chancelaria política da América Latina e do Caribe, frente a outros blocos ou potências como União Europeia, China, EUA. Deveria ser o lugar para discutir uma posição comum sobre a Guerra da Ucrânia, por exemplo.


Raio-x | Matias Capeluto, 36

É diretor-executivo da Casa Pátria Grande, ligada à Presidência da Argentina e herdeira dos bens da Unasul (União de Nações Sul-Americanas). Formado em ciência política pela Universidade de Buenos Aires e diplomado em integração regional pela Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais, é também presidente do partido político Red por Buenos Aires.

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