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Intencionalidade é chave para provar crime de genocídio de Israel

É inútil mencionar os quase 30 mil mortos em Gaza ou argumentar que é um número baixo comparado ao Holocausto

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João Paulo Charleaux

Jornalista e autor de “Ser Estrangeiro – Migração, Asilo e Refúgio ao Longo da História”, trabalhou no Comitê Internacional da Cruz Vermelha

Concluir se Israel comete ou não genocídio depende de provar que as forças israelenses e o atual governo têm a intenção de exterminar a totalidade ou uma parte do povo palestino; e que as mortes de civis não são apenas decorrência de ataques desproporcionais ou de danos colaterais causados pelo enfrentamento ao Hamas.

Nesta quarta-feira (28), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) atribuiu pela segunda vez em 24 horas o crime de genocídio a Israel, como havia feito no dia anterior, em entrevista à Rede TV. Ele cita com frequência a amplitude da tragédia humanitária em Gaza, sobretudo a morte de mulheres e crianças, para embasar sua percepção sobre genocídio.

Criança dentro de um prédio atingido observa mesquita de Al-Faruq, em Rafah, destruída por bombardeios - Mohammed Abed - 25.fev.24/AFP

A Convenção sobre Genocídio de 1951 não menciona números, escala ou proporções. Então, é inútil mencionar os quase 30 mil mortos em Gaza, segundo dados palestinos, como forma de provar a existência de um genocídio, como faz Lula; assim como é inútil argumentar que esse número é relativamente baixo se comparado aos 6 milhões de judeus mortos no Holocausto, para refutar a tese de que há um genocídio em curso. Juridicamente, o que importa é a intenção de varrer do mapa, total ou parcialmente, um grupo humano. Mas é preciso provar que existe essa intenção.

"Graves violações não constituem, por si só, atos de genocídio; a menos que possa ser demonstrado que esses atos tenham sido cometidos com a intenção de destruir total ou parcialmente um território nacional, um grupo étnico, racial ou religioso como tal", advertiu na sessão de 26 de janeiro a ugandesa Julia Sebutinde, juíza da Corte Internacional de Justiça.

Em seu voto, Sebutinde quis demonstrar que mesmo graves e reiteradas violações —como a morte de civis, incluindo mulheres e crianças, e a destruição de cidades— podem constituir crimes de guerra passíveis de condenação nos tribunais nacionais e internacionais, sem que sejam necessariamente tipificados como genocídio.

Uma das formas de demonstrar intencionalidade é verificar os discursos das autoridades políticas e militares israelenses. De acordo com Paola Gaeta, especialista em sistema penal internacional no Instituto de Estudos Internacionais de Genebra, há declarações israelenses que "podem constituir um discurso genocida"; e o artigo 3º da Convenção de 1951 prevê condenação por "incitamento, direto e público ao genocídio", não apenas pelo ato em si.

Em 7 de outubro, por exemplo, o parlamentar israelense Nissim Vaturi, do mesmo partido do premiê Binyamin Netanyahu, o Likud, disse que era preciso "apagar Gaza da face da Terra". Será preciso demonstrar que discursos como esse têm reflexos nas ações concretas das tropas e se há uma diretriz clara por parte do governo israelense de eliminar os palestinos de Gaza. Israel diz que gente como Vaturi não tem esse poder.

Mas mesmo imagens postadas por soldados israelenses em redes sociais mostram atos de destruição de áreas civis, embalados por mensagens de ódio e de desprezo pela população local.

Ressalvando que não pode adiantar nenhum juízo, Gaeta disse à Folha que declarações como essa "nos fazem crer que o processo movido pela África do Sul não é de todo exagerado" e pode levar à responsabilização penal desses indivíduos, embora a Corte Internacional de Justiça julgue Estados, não pessoas.

Para ver padrões, é preciso recuar no tempo. No Tribunal de Nuremberg, nenhum nazista foi condenado pelo crime de genocídio, embora a Alemanha tenha cometido o que hoje é conhecido como o maior genocídio da história moderna.

Nuremberg funcionou de 1945 a 1946. A Convenção sobre Genocídio só foi escrita em 1948. Ela foi em grande parte inspirada no trabalho de um judeu polonês que havia perdido 40 membros de sua família no Holocausto, antes de refugiar-se nos EUA. Raphael Lemkin foi quem cunhou o termo genocídio e fez lobby para que os Estados-membros das Nações Unidas ratificassem a Convenção. O texto entraria em vigor em 1951, seis anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, mas só estrearia condenando alguém 47 anos depois, no caso do genocídio de Ruanda.

Foi só em 1998 –quatro anos após o massacre dos hutus contra os tutsis, que deixou entre 800 mil e 1 milhão de mortos em Ruanda— que uma sentença por genocídio foi expedida pela primeira vez, no caso Jean-Paul Akayesu, que leva o nome do então prefeito de Gitarama, cidade em que pelo menos 2.000 tutsis foram mortos, muitos deles a golpes de facão, no massacre de 1994.

A Convenção sobre Genocídio voltaria a ser evocada novamente para condenar os envolvidos no massacre de Srebrenica, cidade em que as tropas sérvias mataram 8.373 bósnios muçulmanos, numa operação de limpeza étnica levada a cabo em julho de 1995; e novamente em 2010, quando o Tribunal Penal Internacional emitiu uma ordem de captura –não uma sentença definitiva ainda– contra o ditador do Sudão, Omar al-Bashir, acusado pela morte de 300 mil pessoas na região de Darfur.

Antes da Convenção de 1951, havia genocídios, embora não houvesse o tipo penal. Mesmo que casos como o Holodomor (nome dado à política soviética de matar de inanição milhões de ucranianos nos anos 1930) ou o chamado Genocídio Armênio (quando o Império Otomano exterminou mais de 1 milhão de armênios entre 1915 e 1923) nunca tenham sido julgados como tal, muitos países aprovaram moções simbólicas declarando a existência de genocídios nesses casos antigos. A Ucrânia agiu assim com o Holodomor, e a França, com o Genocídio Armênio.

Nesses casos, declarações políticas podem ser aprovadas por Parlamentos nacionais, mesmo que não haja condenações judiciais dos envolvidos. Esses gestos mostram como tornou-se importante colar em indivíduos e em países o selo do genocídio, chamado por alguns juristas de "o crime dos crimes". Essas chamadas "leis memoriais" têm sido objeto de estudo de Anna Zielinska, que é especialista em filosofia moral, legal e política na Universidade de Lorraine.

Ela disse à Folha que essas "leis morais" se alinham "a favor de certos valores promovidos politicamente por um governo do momento, podendo haver leis memoriais de esquerda e de direita, dependendo dos governos em vigor, o que contribui para a escrita da história tanto do país que aprova essas leis quanto dos países cujo sofrimento é reconhecido por essas iniciativas".

No caso concreto e atual de Israel, Zielinska considera que a questão será "determinar quem é o portador das intenções: será um Exército que respondeu de uma forma que muitos consideram desproporcional aos ataques de 7 de outubro e não o fez para destruir um grupo étnico? Ou serão as intenções expressas após o início das operações por certos oficiais militares ou por certos políticos de extrema direita?"

Para ela, independentemente da decisão que venha a ser tomada pela Corte Internacional de Justiça, a solução só virá com democracia e renovação em Israel. Mas, para isso, os israelenses terão de sentir que "o mundo não os vê como uma encarnação do mal".

O debate político e jurídico sobre um possível genocídio em Gaza também pode provocar reflexos no Brasil —não apenas porque Lula se engajou por completo na polêmica, mas também porque o ex-presidente Jair Bolsonaro é alvo de cinco comunicações enviadas ao Tribunal Penal Internacional, das quais duas alegam incitação ao genocídio em crimes que teriam sido perpetrados contra povos indígenas e comunidades tradicionais brasileiras.

A professora da Direito FGV Eloisa Machado é advogada da primeira dessas petições, enviadas pelo Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos e pela Comissão Arns. Ela disse à Folha que "o crime de genocídio tem sido interpretado de maneira bastante restrita pelas instâncias internacionais, sobretudo pelo Tribunal Penal Internacional" e é preciso que o "tribunal seja menos seletivo", no sentido de promover uma "ampliação da interpretação".

Debate jurídico semelhante ocorre com a tentativa de emplacar o conceito de "ecocídio", que Renato Zerbini, doutor em direito e relações internacionais, define como "um crime contra o conjunto da humanidade, notoriamente de afronta ambiental insanável ao planeta". Zerbini disse à Folha que não considera a elasticidade desses termos exagerada, "sobretudo se concordamos com a tese de que o planeta está chegando em um ponto de não retorno quanto à degradação ambiental".

A decisão da Corte Internacional de Justiça não tem data para sair. O que há até agora é uma espécie de medida cautelar que pretende impedir a ocorrência de um crime de genocídio –o que a Corte de Haia diz que não pode ser tomado como uma antecipação de seu juízo, contra ou a favor da tese apresentada pela África do Sul.

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