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Soninha Francine

Mais que contar indivíduos

Censos de população de rua são imprecisos, mas este é só um dos problemas

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Soninha Francine

Vereadora em São Paulo por dois mandatos (2005-2008 e 2017-2020), é ex-secretária municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (2017, gestão João Doria)

São fenômenos mundiais: a existência de pessoas em situação de rua, em cidades ricas ou pobres, muito desiguais ou nem tanto, e a acusação de que o censo desse grupo apresenta um número inferior ao real.

Apresentei em diversas ocasiões, inclusive em pesquisa acadêmica, minhas divergências em relação aos censos realizados na cidade de São Paulo desde o fim do século passado. No que diz respeito aos números, faço algumas ponderações.

Não são levadas em consideração as pessoas abrigadas em instituições "não oficiais", não conveniadas com a prefeitura. Como a Missão Belém, que acolhe idosos doentes, e o Centro de Acolhida Guerreiros de Deus, na zona leste, que recebe pessoas sofrendo com drogadição. São dezenas de entidades católicas, evangélicas, espíritas, candomblecistas, budistas (e de outras religiões, ou nenhuma!). Também há pessoas das ruas de São Paulo em outros municípios da região metropolitana ou em comunidades terapêuticas interior adentro.

Não aparece no censo quem está internado em serviços de saúde. Alguns permanecem em hospitais até mesmo depois da alta clínica por não terem destino certo.

Em ocupações de sem-teto, muitos não se identificam como "em situação de rua", outros se reconhecem assim. Eu incluiria estes no censo, a partir de sua própria declaração.

Mas por que a prefeitura diminuiria os números de propósito para tentar atenuar o que é visível e incontestável, a catástrofe dos refugiados urbanos? Recurso desonesto com melhor resultado seria inflar os números: o desafio, que já é gigante, pareceria ainda maior. Os bons resultados de políticas públicas seriam inchados na mesma proporção.

O censo de São Paulo não prescinde do diálogo com instituições e lideranças da população de rua para o mapeamento prévio; as equipes de campo incluem pessoas com vivência de rua. Mas nem assim conseguem estar em todos os mocós, malocas e buracos desta imensidão paulistana ou não conseguem acesso às pessoas por razões diversas —não acordam, escondem-se, expulsam. Nessas ocasiões, sou testemunha, os recenseadores consultam pessoas próximas: "Ali vive um casal com dois meninos" ou "Naquela barraca só tem o seu Antônio".

O censo é realizado à noite porque as pessoas se deslocam menos do seu lugar de pouso. Não estão na boca de rango, catando latinha, fazendo o corre. Toda opção implica vantagens e desvantagens. Em cidades menores, consegue-se fazer a contagem em uma única noite, o que reduz os riscos de não encontrar alguém.

E essa população aumenta todo dia, com pessoas que já não conseguem pagar o aluguel (ainda que de uma cama ou quarto de pensão, barraco na favela ou cortiço), que estão deixando o sistema penitenciário, saindo de internação, que desistiram ou "foram desistidas" dos albergues e as que chegam "despachadas" de outras cidades —onde esta é mesmo a política. Os números nunca serão fechados, perfeitos.

Problema maior no censo é o fato de serem contabilizados indivíduos —"x" homens e "y" mulheres— desconsiderando algo que o censo do IBGE reconhece: o conceito de família estendida. Muitos na rua vivem juntos —casais, grupos de amigos de longa convivência. Os serviços de acolhimento os separam por gênero e idade, fatiam os grupos, ignoram laços. "Vínculo" é conceito central na assistência social, e o sistema rasga os que existem.

A notícia promissora que chega com o censo é a adesão da prefeitura à política conhecida como "housing first". A oferta de alimentação, trabalho, estudo e atenção em saúde não se sustenta se a pessoa volta para dormir debaixo do viaduto, na porta do banco ou da igreja. Sem pia, sem banheiro, sem endereço.

Primeiro tem de haver um lugar decente de onde sair e para onde voltar. Esse lugar não é um albergue para centenas de pessoas, com seu atendimento em massa e regimento de colégio interno. Não se trata de "housing only", como alguns acreditam, com a oferta de um domicílio bastando para resolver por si todas as questões. Mas "housing" (falta tradução condizente!) vem primeiro e as outras atenções seguem junto, respeitando-se a singularidade das pessoas e os arranjos de afeto e solidariedade formados na rua.

Ampliar o modelo atual de atendimento institucional seria (e tem sido) inútil. É hora de ser disruptivo.

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