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João Felipe Gonçalves

Islamofobia deslavada contra o Qatar

Ser inclusivo e plural significa ir além da imaginação e moral ocidentais

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João Felipe Gonçalves

Doutor em antropologia (Universidade de Chicago), é professor no Departamento de Antropologia da USP

A realização da Copa do Mundo no Qatar tem recebido uma avalanche de críticas, especialmente na Europa Ocidental e no Novo Mundo. Essa cruzada mobiliza tanto questões importantes, como igualdade de gênero e direitos humanos, quanto temas paroquiais e etnocêntricos, como o consumo de álcool em público, a realização da Copa durante o outono europeu e até a qualidade do futebol do Oriente Médio. Contrariando essa avalanche, chamo a atenção aqui para o caráter islamofóbico dos ataques ocidentais ao Qatar e ao torneio ali realizado.

O viés preconceituoso da investida ocidental transparece já nas acusações de que o Qatar teria comprado votos na Fifa para sediar o Mundial. Essas denúncias de corrupção não são mais reais que inúmeras outras que pesam há décadas sobre a entidade, mas nenhuma outra escolha de sede foi alvo do furor dirigido contra a do Qatar. Os muitos escândalos envolvendo a Fifa evidenciam que, mesmo se forem bem fundadas as denúncias contra os qataris, estes não criaram nada novo, mas simplesmente entraram em um incontornável jogo mercantil inventado e consolidado na Europa.

Igualmente parciais são as visões sobre a repressão à homossexualidade no Qatar. As leis específicas contra essa prática no país são raramente aplicadas, especialmente a mulheres, estrangeiros e não muçulmanos, e as proibições de sexo fora do casamento e de demonstrações públicas de afeto se aplicam a todas as pessoas. Isso significa, inclusive, que hospedar-se em um mesmo quarto de hotel do país é mais fácil para um casal homossexual do que para um homem e uma mulher que não sejam casados. Longe de defender essas restrições, apenas saliento uma complexidade que o Ocidente prefere ignorar.

O que a ofensiva anti-Qatar exige, na verdade, é que o país abrace as noções provincianamente ocidentais de identidade, de moral pública e de diversidade. Tais demandas não apenas excluem diferenças culturais reais e profundas, mas também são elitistas, pois esperam que toda a população do Qatar mude suas ideias e normas para satisfazer o pequeno número de estrangeiros privilegiados que têm recursos para financiar uma viagem ao Mundial. O mesmo vale para os protestos contra as restrições ao consumo de álcool no país, que supõem que beber cerveja em público e assistir a uma Copa do Mundo in loco são direitos humanos fundamentais.

Esse meu argumento não se aplica, é claro, às condições laborais dos migrantes que formam quase 90% da população do Qatar. Porém, em vez de validar a exploração dos trabalhadores, a realização da Copa no país a tem publicizado, problematizado e, ao que tudo indica, mitigado. E minha visita recente ao país me mostrou algo que é corroborado pelas imagens de migrantes do sul da Ásia torcendo e vibrando pelo país que os recebe: inúmeros desses trabalhadores têm uma visão altamente positiva do Qatar, a ponto de se identificarem com o país e o defenderem perante o exterior.

Ao acusar a nação árabe de usar práticas desportivas para limpar sua reputação, quem de fato realiza um monumental "sportswashing" é a Europa Ocidental, região que deu ao mundo o futebol e coisas menos louváveis, tais como o colonialismo, a escravidão transatlântica, o fascismo... E a islamofobia. A atual cruzada contra o Qatar tem duas raízes: uma medieval —o pânico europeu sobre o poder do Islã— e outra mais recente —a prática da Europa Ocidental pós-1945 de ocultar seus próprios crimes denunciando crimes nos lugares que dominou por séculos.

Muitos brasileiros adotam essa visão europeia distorcida e, de forma provinciana e egoísta, minimizam a gravidade global da islamofobia. Contra essa atitude, observo que os muçulmanos conformam um quarto da população mundial e chamo a atenção para processos violentos como o genocídio na Bósnia, a ocupação da Palestina e o "hindutva" na Índia. À semelhança de outras formas de opressão, a islamofobia mata todos os dias.

Por tudo isso, convido os leitores a aproveitar o espetáculo cosmopolita oferecido pelo Qatar, que nos ensina que, para ser de fato inclusivo e plural, o mundo globalizado pode e precisa ir além da imaginação e da moral ocidentais.

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