Descrição de chapéu
Pedro Estevam Serrano e Georges Abboud

O 'patriotismo' de seita contra o Supremo

Parcela da sociedade tem tido dificuldade de se conectar com o mundo real

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Pedro Estevam Serrano

Doutor em direito do Estado com pós-doutoramento nas Universidades de Lisboa, Católica de Paris e Paris Nanterre, é advogado professor de direito constitucional da PUC-SP

Georges Abboud

Advogado, é professor da PUC-SP

A violência física e verbal sofrida por ministros do Supremo Tribunal Federal em Nova York, para além de atestar a deplorável situação de nossa esfera pública, mostra que a corte paga um preço alto pela ampla publicidade que a Constituição Federal impôs aos julgamentos e que a TV Justiça consolidou no afã de aproximar o cidadão do Judiciário.

Numa palavra: o preço da publicidade é o de o STF pagar mais caro, inclusive mediante risco e ameaça de violência física, pelos seus "acertos" do que pelos "desacertos". Nesse sentido, podemos destacar três exemplos recentes de acertadas decisões que foram distorcidas e, consequentemente, incompreendidas por uma parcela radicalizada da população.

Manifestantes protestam contra ministros do Supremo que participam de evento em Nova York - Igor Gielow - 14.nov.2022/Folhapress

Por exemplo, a humanitária decisão do STF que procurou conferir balizas legais e civilizatórias às operações policiais em comunidades; a declaração de parcialidade do julgador, com a consequente anulação da condenação proferida contra o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT); e a atuação da corte contra indivíduos que, sob o pretexto da liberdade de expressão, propagam ódio, desinformação e atentam contra o Estado democrático de Direito.

Atualmente, vivenciamos um dos maiores paradoxos contemporâneos, que é o de como a tecnologia, cada vez mais avançada e presente no cotidiano das pessoas, em vez de gerar mais qualidade informacional no debate da esfera pública brasileira tem contribuído para propiciar mais desinformação e a crescente divisão da sociedade, inclusive na formação de seitas ideológicas.

Nos limites estreitos do que permite um texto jornalístico, limitamo-nos a esclarecer que por "seita" compreendemos os grupos que se organizam em torno do pensamento mágico, que é a deterioração do pensamento genuíno e racional mediante a troca da realidade externa por uma falsa realidade fabricada ideologicamente.

Pessoas pertencentes a seitas enxergam uma realidade completamente diferente de outras; elas sequer compartilham um "mundo", o que elimina qualquer debate possível. Assim, a comunicação passou a ser, atualmente, a violência de um mundo mítico, povoado de realidades mágicas criadas "prêt-à-porter" para se encaixarem na estreita mentalidade de quem imagina ser o mundo uma grande conspiração contra uma verdade da qual só uns poucos tomaram conhecimento.

Uma das seitas que tem ascendido no Brasil é a que chamamos de "patriotismo de seita". Essa seita deturpa símbolos nacionais, cantando hino para pneus, se enrolando em bandeiras para pegarem caronas inusuais em caminhões e tem por mote principal considerar nossa Suprema Corte a inimiga ficcional da nação.

Compreender a complexidade do funcionamento de uma Suprema Corte é desafio para especialistas e estudiosos do direito e da ciência política. Daí a tese central se de fato o ativismo judicial arbitrário é perigo e antidemocrático. Contudo, transformar o STF em inimigo ficcional do Estado "sob o pretexto de se estar criticando o ativismo judicial" é infinitamente mais pernicioso a um regime democrático.

A verdade é que o pensamento de seita não critica o ativismo judicial. Prova disso é que, nos atuais protestos, não há uma palavra contra aquilo que foi o maior exemplo de ativismo judicial já realizado no Brasil: a Operação Lava Jato.

Contudo, nada disso é novidade: lembremo-nos do lançamento de fogos de artificio em direção ao STF, do ilustre membro do Ministério Público que supostamente planejou o assassinato de um ministro e as hostilidades internacionais anteriores a que esses mesmos magistrados já foram submetidos.

A loucura segue pegando carona em caminhões ou via companhias aéreas devidamente remuneradas. O "patriotismo de seita" brasileiro, a essa altura já abandonado a si próprio, virou produto tipo exportação, ou seja, as agressões às Instituições e aos ministros que ocorrem no Brasil passaram a ser reproduzidas no exterior, conforme os lamentáveis fatos narrados em Nova York.

Relembremos uma colocação antológica de Hannah Arendt em "Origens do Totalitarismo": "O súdito ideal do governo totalitário não é o nazista convicto nem o comunista convicto, mas aquele para quem já não existe a diferença entre o fato e a ficção (isto é, a realidade da experiência) e a diferença entre o verdadeiro e o falso (isto é, os critérios do pensamento)".

Ministro Dias Toffoli brinca e diz que vai se disfarçar antes de deixar o Harvard Club e receber xingamentos de manifestantes
Ministro Dias Toffoli brinca e diz que vai se disfarçar antes de deixar o Harvard Club e receber xingamentos de manifestantes - Folhapress

Fato e ficção, verdade e mentira convivem harmonicamente no mesmo mundo monista do pensamento mágico. Parcela da sociedade brasileira tem tido dificuldade de se conectar com o mundo real da vida.

Ocorre que as eleições acabaram, a democracia venceu e sobreviveu, e a realidade é a questão mais urgente do Brasil. Por isso, para tratar a seita, oferecemos Chico Buarque: "Mas para meu desencanto / O que era doce acabou / Tudo tomou seu lugar / Depois que a banda passou".

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.