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João Carlos Martins

A ignorância da inteligência artificial

Algoritmo falho não respeita a dignidade dos músicos

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João Carlos Martins

Maestro e pianista

De quando em quando temos uma notícia que nos impressiona pelo avanço da tecnologia e da ciência, como fotos de Plutão e suas luas, feitas pela espaçonave New Horizons, ou dos robôs exploradores Opportunity e Curiosity, que registraram inúmeras imagens de pedras em Marte.

Atualmente, a inteligência artificial, com seus algoritmos que fazem parte do nosso cotidiano, têm lacunas inexplicáveis.

No meu caso, refiro-me à música, principalmente no que diz respeito à arte interpretativa (música instrumental e individual). Quando o grande jornalista Gilberto Dimenstein (1956-2020) e o ator Alexandre Nero me convenceram a ter meu próprio Instagram (@maestrojoãocarlosmartins), com o argumento de que seria mais uma peça no tabuleiro de democratização da música clássica, principalmente no Brasil, aceitei a ideia. Todos os sábados iniciei uma pequena postagem tocando ou regendo em algum lugar do Brasil ou do mundo, sempre com imagens ou trilhas sonoras ao vivo.

João Carlos Martins toca no Carnegie Hall, em Nova York, com a orquestra NOVUS NY
João Carlos Martins se apresenta no Carnegie Hall, em Nova York, com a orquestra Novus NY - Gabriel Araújo

Qual a minha surpresa, em ambos os casos, quando tive alguns bloqueios. Imaginem eu regendo com a minha expressão facial a minha Bachiana, tocando Brahms, e o algoritmo legendando que se trata da Filarmônica de Berlim. Claro que é uma honra ser comparado a essa grande orquestra, mas é fake.

Imaginem ainda eu tocando Chopin, Schubert ou Liszt e ter a trilha totalmente bloqueada, ou regendo a "Heroica", de Beethoven, e ser bloqueado —apesar de as imagens serem reais.

Talvez a solução seria a obrigatoriedade de o artista sempre fazer constar em sua postagem "áudio original" e, caso fosse fake, evidentemente que seria identificado e rejeitado pela classe artística, principalmente aquela que considera a cultura a alma de uma nação —além desse ato também ser um crime.

Comecei por uma pedra em Marte para chegar à música e sua arte interpretativa. Claro que o algoritmo é capaz de reconhecer o compositor, mas raramente o intérprete, pois as delicadas nuances perceptíveis aos seres humanos não são perceptíveis para o algoritmo.

Hoje em dia, como não tivemos mais um Bach, um Beethoven ou um Mozart nos séculos 20 e 21, a interpretação transformou-se na única forma de distinguir a individualidade do intérprete.

Hoje se fala muito em fake news, mas espero que "fake playing news" não seja assunto da ignorância artificial, que não respeita a dignidade de um músico que fica horas, dias, semanas, anos para mostrar a que veio no mundo da música e para demonstrar como a individualidade do intérprete pode conviver com a personalidade do compositor.

Por outro lado, músicas de domínio público, como é o caso da música clássica, especificamente, muitas vezes têm o registro da gravação de alguma orquestra que reivindica os direitos autorais. Me pergunto: esta é uma forma de democratizar a música clássica ou afastar o público digital, infelizmente ainda pequeno, deste maravilhoso universo que nos foi legado pelos grandes compositores do século 16 até meados do 20?

PS: Caso contrário, deixem o algoritmo tocar!

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