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Tiago Pavinatto

O Tribunal Superior Eleitoral deve tornar Jair Bolsonaro inelegível? NÃO

Nenhum questionamento pode ser considerado crime em um Estado laico

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Tiago Pavinatto

Advogado e professor, é mestre e doutor em direito (USP), jornalista e apresentador de TV; autor, entre outros, de "Estética da Estupidez" e "Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana Fora do Armário" (ed. Almedina)

Faz três anos que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) enterrou a tese do "abuso de poder religioso" como ilícito eleitoral. A hipótese elaborada pelo ministro Edson Fachin foi rechaçada logo no início do julgamento de uma vereadora que também era pastora em Luziânia (GO) —o Ministério Público Eleitoral a acusou de usar sua posição na igreja para promover sua candidatura e influenciar o voto de fiéis. O ministro Alexandre de Moraes deixou claro que a ideia era insustentável, pois não estava —e ainda não está— expressamente inserida na lei eleitoral.

Em 1801, o jurista alemão Paul Johann Feuerbach (1775-1833) condensou a base do direito moderno em uma lição que tem se provado insubstituível ao longo da noite dos tempos: "nullum crimen nulla pœna sine lege". Não pode haver crime nem condenação sem lei: eis o princípio da legalidade que, apesar de resumido por Feuerbach, já se fazia sentir no texto da "Magna Charta Libertatum", ainda no século 13, bem como no "Bill of Rights" das colônias inglesas na América e na revolucionária "Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen", de 1789, na França.

Carta aos Brasileiros prega vigília cívica e repeito ao resultado das urnas
Bolsonaro durante pronunciamento a embaixadores no Palácio da Alvorada, em julho de 2022. - Reprodução - Reprodução

A Constituição brasileira de 1988 não deixou de incluí-lo como cláusula pétrea no rol dos direitos e garantias fundamentais do seu art. 5º: "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal", diz o seu inciso XXXIX.

Na qualidade de princípio geral, a reserva legal ("lege") deve apresentar quatro características:

1 - "prævia" (ninguém pode ser condenado por ilícitos civis ou criminais ou de qualquer outra natureza sem a existência de lei prévia);

2 - "scripta" (somente a lei escrita pode fundamentar penalidades, e não costumes, sentimentos, princípios e valores);

3 - "stricta" (a aplicação é estrita ao texto, e não se admitem analogias nem de normas isoladas nem de princípios jurídicos);

4 - "certa" (a hipótese penal deve ser específica, nunca genérica).

Disso decorre que o julgamento da ação de investigação judicial eleitoral (Aije) promovida pelo PDT contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e seu então candidato à Vice-Presidência, general Walter Braga Netto, marcado para a próxima quinta-feira (22), no TSE, unicamente pode resultar em improcedência. Caso contrário, o acórdão padecerá de antijuridicidade, de patente injustiça.

Nenhum dos 67 artigos que tipificam os crimes no Código Eleitoral versam sobre qualquer coisa que se assemelhe ao pretendido crime de abuso de poder político do então presidente e candidato à reeleição em virtude de questionamentos sobre a lisura do processo eleitoral e do Judiciário nacionais em reunião com embaixadores estrangeiros.

Da mesma forma, o artigo 22 da lei complementar 64/1990 (Lei de Inelegibilidade) não pode tornar Bolsonaro inelegível, pois, no "caput", estipula-se que o abuso de poder condenável deve se dar "em benefício de candidato ou de partido político".

Mesmo que o seu inciso XVI desconsidere "a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição", a previsão escrita no "caput" é certa e deve ser aplicada de maneira estrita: a hipótese de inelegibilidade se restringe aos casos de abuso de poder que pretendem favorecer apenas um lado da disputa eleitoral. No caso de Bolsonaro, se existiu algum discurso abusivo, ele foi direcionado contra todo o sistema eleitoral e, por isso, colocou em pé de igualdade a sua própria candidatura às demais: todas poderiam ser, igualmente, vítimas.

Por fim, nenhum questionamento pode ser crime em um Estado laico e jamais configurará abuso de poder quando a resposta à altura é possível ao interlocutor.

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