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José Medina Pestana

A doação presumida de órgãos deve voltar a vigorar? NÃO

Conflitos com familiares podem comprometer o programa de transplantes

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José Medina Pestana

Médico nefrologista, é diretor do Hospital do Rim da Fundação Oswaldo Ramos, professor titular da Unifesp, membro da Academia Nacional de Medicina e ex-presidente da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos

No Brasil, a doação de órgãos sempre respeitou o consentimento requerido obtido de um dos familiares, exceto por um período de quatro anos, quando a doação presumida foi estabelecida pela lei 9.434, em 1997, e revogada em 2001 pela lei 10.211. Neste período, todo brasileiro foi tornado doador após a morte —a menos que tivesse documentado sua oposição em carteira de identidade ou de motorista.

Entre os documentos pessoais emitidos nesse período, predominou a recusa em função da falta de informações apropriadas para a tomada imediata da decisão, bem como pela imaginação popular de que os órgãos fossem removidos sem seguir os rituais diagnósticos de morte. Essa mudança também foi criticada por ferir um dos princípios de respeito pelas pessoas, que prevê autonomia de escolha, e, ainda, que a ausência de manifestação prévia não deve presumir uma ação. Baseadas nessas considerações, e mesmo respaldada pela legislação, nenhuma equipe retirou um órgão sequer sem a autorização familiar.

Doação de órgãos de pessoas mortas depende de autorização da família - Andrii Zastrozhnov/Adobe Stock

Os países onde o consentimento presumido está estabelecido mostram que essa mudança de abordagem, por si só, não aumenta a disponibilidade de órgãos: depende também da disseminação de conceitos que promovam a doação através de programas qualificados e meios de comunicação eficientes. Bulgária e Luxemburgo são exemplos negativos por se situarem entre os países menos eficientes, mesmo utilizando o consentimento presumido.

Por outro lado, na Espanha, nação com a maior taxa de doadores do mundo, o sucesso decorre da introdução de qualificados coordenadores intrahospitalares de transplantes, investimento sustentado na educação da população e treinamento para enfermeiras e médicos de unidades de emergência e terapia intensiva, resultando em um clima social positivo e incremento na notificação de potenciais doadores.

Na Espanha, embora a legislação considere o consentimento presumido, a doação só se concretiza após o aval dos familiares no momento da morte, o que é bastante razoável por facilitar a abordagem: em vez de solicitar a doação, é oferecida à família a possibilidade de reverter a premissa. Essas medidas conquistaram a confiança da comunidade, e a recusa familiar tem sido inferior a 20%.

No Brasil, nos últimos 20 anos, depois da retomada do consentimento familiar, o número de doadores por milhão de habitantes cresceu de 5,1 para 19, baseado em uma orientação simples e não burocrática, preconizada pelo Sistema Nacional de Transplantes (SNT) para a manifestação de pessoas que desejam ser: "Avise sua família, ela sempre vai entender isso como seu último desejo e uma maneira de você continuar contribuindo com o bem-estar social mesmo após a morte".

Assim, estados que, além de incorporarem essa recomendação, intensificaram a organização de equipes para transplantes, o treinamento de profissionais de saúde e a comunicação com a população, como Santa Catarina, Ceará, Paraná e Pernambuco, chegaram a alcançar taxas de doadores semelhantes às da Espanha. Nesses estados, a negativa familiar é menor que 30%, e a ausência de manifestação em vida permanece como o principal argumento utilizado.

Portanto, o aumento do número de transplantes no país não está vinculado à alteração unidimensional na legislação, mas à correção da disparidade geográfica no número de órgãos captados entre as diferentes regiões quando assimilarem os conceitos implementados pelos estados que alcançaram sucesso semelhante ao de países que lideram a atividade no mundo.

O programa brasileiro de transplantes tem estrutura sólida e crescente e, neste momento, não precisamos arriscar com mudanças radicais que possam comprometer suas conquistas pelo potencial de gerar conflitos entre profissionais de saúde e familiares.

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