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Guilherme Casarões

Um olho em Maduro, o outro em Milei

Crises domésticas de ambos têm o potencial de transbordar para cá

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Guilherme Casarões

Cientista político e professor da FGV-Eaesp (Fundação Getulio Vargas - Escola de Administração de Empresas de São Paulo) e da Brown University (EUA)

Lula iniciou seu terceiro mandato com a missão de recolocar o Brasil no tabuleiro mundial. Era tanto um desejo nostálgico de reeditar a política externa "ativa e altiva" de outrora quanto uma necessidade de limpar a reputação brasileira, arrasada durante os anos Bolsonaro.

Após visitar 24 países e passar dois meses no exterior, Lula fecha seu primeiro ano de governo com saldo positivo. O mundo voltou a respeitar o Brasil. É muito sintomático, por outro lado, que até mesmo os apoiadores do governo avaliem que Lula viajou demais. O próprio presidente já admitiu que, a partir do ano que vem, dedicará seu tempo a percorrer o Brasil para ouvir as demandas da população.

Nicolas Maduro e Javier Milei
O ditador venezuelano, Nicolás Maduro, e o presidente argentino, Javier Milei - Montagem sobre fotos de Marcelo Garcia e Luis Robayo/AFP

Isso não quer dizer que Lula deixará de se dedicar à política externa, mas será fundamental que ele escolha melhor suas batalhas internacionais. Se o foco de longo prazo do governo é lidar com a agenda climática, que traz consigo suas próprias contradições, o curto prazo será dedicado à vizinhança.

Por aqui, há um velho problema, chamado Nicolás Maduro, que agora concorre com um novo problema, que atende por Javier Milei. Lula terá que lidar com os dois extremos da política sul-americana na porta de casa. As crises domésticas de ambos têm o potencial de transbordar para cá —e tirar o sono de um governo ansioso para se dedicar aos seus imbróglios particulares.

O caso da Venezuela é, sem dúvida, o mais grave. Desde o início de seu mandato, Lula buscou normalizar as relações com o governo venezuelano, reconhecendo nele um parceiro estratégico. Mas, em vez de demonstrar preocupações quanto à prolongada crise política do país vizinho, o presidente brasileiro chegou a relativizar as ameaças à democracia impostas pelo regime de Maduro.

Poderia ser só uma forma de manter os canais abertos com a Venezuela, no espírito de criar condições democráticas rumo às eleições presidenciais do ano que vem. Contudo, ao resgatar o histórico pleito venezuelano sobre a região guianense de Essequibo, na fronteira do estado de Roraima, Maduro trouxe um embaraço adicional à posição brasileira. O desafio de Lula não é mais somente garantir a democracia na Venezuela, mas evitar uma guerra regional nas portas da Amazônia.

As ameaças de movimentações militares deixaram a Guiana em alerta e o governo Biden de sobreaviso. Os Estados Unidos são parte interessada, uma vez que as enormes reservas de petróleo em Essequibo, descobertas em 2015, são exploradas pelo gigante americano ExxonMobil.

Menos de uma semana após um controverso referendo que autorizou a anexação do território, Maduro já determinou a criação de uma zona de defesa, autorizou a estatal petrolífera PDVSA a conceder licenças de exploração energética e apresentou novos mapas oficiais. Os esforços das autoridades brasileiras ainda não parecem ter surtido efeito em minimizar as apreensões ao norte.

Ao sul, a situação política da Argentina é igualmente central para Lula. A chegada de Javier Milei à Casa Rosada, após uma campanha radical que mobilizou o candidatíssimo Trump, a família Bolsonaro e outras lideranças de extrema direita, promete abalar os laços com o Brasil.

A recente visita a Brasília da nova chanceler argentina, Diana Mondino, dá sinais de que Milei manterá relações no mínimo cordiais com o governo Lula. Mas as incertezas quanto à sobrevivência do Mercosul permanecem, o que explica a insistência brasileira, ainda que retórica, com a aprovação do acordo com a União Europeia. Sem o compromisso argentino, o bloco sul-americano está fadado à irrelevância.

Isso é péssimo para o Brasil. Desde a redemocratização, a estratégia brasileira para a região envolve dois pilares —manter a estabilidade política do continente e promover algum desenvolvimento econômico na vizinhança. Pode-se questionar a capacidade do Brasil em assegurá-la, mas não o sentido dessa estratégia.

O ano de 2024 será o maior teste histórico da liderança brasileira. De região de paz, a América do Sul virou um foco de volatilidade e tensões políticas e econômicas. Já tendo se dedicado às grandes questões do mundo, agora Lula deverá concentrar sua política externa no nosso entorno, com um olho nas aventuras militares de Maduro e outro no isolacionismo libertário de Milei.

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