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Natalia Viana

Julian Assange deve ser extraditado para os EUA? NÃO

Risco ao interesse público; trata-se de chocante expansão da Justiça americana para o resto do mundo

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Natalia Viana

Diretora-executiva da Agência Pública de Jornalismo Investigativo, é autora do livro “O Vazamento”, a ser publicado pela editora Fósforo

Em julho de 2019, quando Julian Assange foi arrancado da Embaixada do Equador em Londres por policiais, de barba branca e ar assustado, fazia quase uma década que ele estava privado de liberdade.

Detido pela primeira vez semanas depois de publicar documentos secretos das embaixadas dos EUA em todo o mundo, ele depois foi mantido em recolhimento obrigatório em uma casa no interior da Inglaterra, com uma tornozeleira eletrônica. Eu sei porque estava lá. Colaborava com o seu trabalho jornalístico, vi a tornozeleira e a rotina degradante de ter que se apresentar à delegacia todas as manhãs apenas por ter publicado documentos de interesse público. Os documentos revelaram abuso de poder, conchavos com governos estrangeiros e crimes de guerra.

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Fundador do WikiLeaks, Julian Assange é preso na embaixada do Equador em Londres, em 2019 - Reprodução/Ruptly

Depois, em 2012, Assange pediu asilo no Equador —e recebeu— pela sua condição de perseguido político.
Durante muitos anos, o governo americano não fez fez qualquer acusação criminal contra Assange. No governo Obama, procuradores decidiram que acusá-lo poderia ser um risco à liberdade de expressão.
Mas tudo isso mudou.

A justificativa para retirá-lo da embaixada daquela maneira violenta era que a Justiça britânica queria detê-lo por 11 meses por ter violado as regras do seu recolhimento obrigatório. O caso da Suécia, onde era acusado de crimes sexuais, havia sido encerrado dois anos antes.

No dia seguinte ao cancelamento do seu asilo equatoriano, quando Julian já estava sozinho em uma cela na prisão de segurança máxima de Belmarsh, os EUA revelaram seu pedido de extradição. Das 18 acusações do governo americano que embasam o pedido, 17 são de violação à Lei de Espionagem, uma lei de 1917, justamente pela publicação dos documentos secretos do governo dos EUA. A pena pode ser de até 175 anos de reclusão.

Já faz mais de quatro anos que Julian está na prisão de segurança máxima em Londres. Neste tempo, ele foi sujeito a espionagem, ataques pessoais, isolamento por períodos prolongados —o tratamento que recebeu foi tão cruel que o relator para tortura das Nações Unidas classificou de análogo à tortura.

A obstinação do governo americano é ainda mais chocante porque nunca nenhum jornalista, publisher, diretor ou dono de veículo de imprensa jamais foi julgado pela Lei de Espionagem, criada para julgar espiões da Primeira Guerra.

Pior: nem Assange é americano nem pisou os pés nos Estados Unidos para obter os documentos. Trata-se, portanto, de uma expansão da extraterritorialidade da Justiça americana para o resto do mundo.

Se Assange for extraditado, o precedente é tão grave que coloca em risco qualquer jornalista, de qualquer país, que tenha trabalhado com documentos secretos do governo americano. Assim como muitos dos jornalistas desta Folha, que foi o sexto jornal mundial a tornar-se parceiro do WikiLeaks na publicação dos mesmos exatos documentos, rendendo capas históricas naquele longínquo ano de 2010.

Se a extradição for adiante, quem estará no banco dos réus não é só Assange, mas todos os jornalistas que se engajam em publicar informações de interesse publico.

Não é à toa que jornalistas têm um regime especial de proteção nas Constituições de países democráticos, como nos EUA e no Brasil. É porque temos não apenas o compromisso mas o dever de publicar fatos de relevância pública.

Justamente como fez Julian Assange.

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